Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

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sexta-feira, 18 de julho de 2014

João Ubaldo Ribeiro, relógios astrais, roda de escape, badaladas e outras coisas que tais....


[...] E, na verdade, a almazinha que ficou tanto tempo desconsolada e errante depois que, ainda tão verde e indefesa, se viu obrigada a abandonar o corpo do Alferes Brandão Galvão, não era originalmente uma alma brasileira, pois é muito difícil que as almas se destinem a nascer somente numa nacionalidade qualquer, ou venham a apegar-se a alguma. No caso dessa, tudo começou, como tantos eventos importantes, por obra do acaso.

[...] Esperou muito tempo, a celagem da manhã se desdobrando, a água se tornando vermelha e dourada, as nuvens esfiapadas se desmanchando, os passarinhos principiando toda sorte de atividade, a maré chapinhando como um relógio. [...]

[...] Quando, fortuitamente, o Poleiro das Almas está repleto de almazinhas recém-nascidas, a agitação febril de tantos jovens ansiosos pelo aprendizado e pelo cumprimento de suas sinas chega a fazer fibrilar o cosmos e a perturbar um pouco o perfeito funcionamento dos relógios astrais e demais mecanismos celestes. Nesses casos, é comum que, em revoadas nervosas e espasmódicas, como lavandeiras que estejam a mariscar e sejam espantadas por uma pedra, as almas novas desçam iguais a flechas em direção ao planeta, chispando de um ponto a outro com a velocidade de relâmpagos, até acharem um ovo, um útero, uma semente, algo vivo para animar. [...]

[...] Amicto olhou para o relógio, deteve-se em observar a roda de escape, cujos dentes se viam por trás do vidro e do pêndulo enfeitado por miniaturas esmaltadas. Sete horas já eram, o ponteiro comprido começava a transpor o segundo I do XII exoticamente serifado que encimava o mostrador. Ele sabia que as horas batiam um pouquinho depois de marcadas pelos ponteiros, esperou impaciente o momento em que a roda esbarraria numa resistência maior que a rotineira, daria um pequeno tombo e accionaria o mecanismo do gongo. 0 funcionamento do escritório começava oficialmente às sete, mas ele se orgulhava de estar sempre lá às seis e meia, às seis até, se considerado o tempo em que, colocando e retirando o pince-nez, passava em andar pompeado pelo Terreiro e pelo Maciel, examinando os arredores e os circunstantes como se os estivesse permanentemente avaliando. [...]

[...] A uns dez minutos das sete horas, tinha terminado, brilhava de satisfação, chegava a desejar ter uma barriga alta sobre a qual entrelaçasse os dedos e girasse os polegares em redor um do outro. Às vezes caminhava na saletinha, às vezes falava sozinho, às vezes arrumava todos os objetos sobre a escrivaninha com tanta precisão que fechava um olho para ter certeza do rigor dos alinhamentos, às vezes se fixava nos mecanismos do relógio. A roda de escape enganchou, empacou na mesma posição mais do que o esperado, deu um pulinho repentino, a corda do gongo zumbiu e as sete badaladas começaram a soar. Amleto contou-as com prazer e, na sexta, levantou-se para destravar o ferrolho da Porta da frente da saletinha. [...]

[...] Interrompeu-se quando ouviu a porta abrir, fitou Amleto meio de lado, a bengala quase em riste. Fez uma mesura esquisita, ainda de lado, sorriu.

- Ouvi as pancadas do relógio já do corredor - disse.

Devia saber que Vossa Senhoria ia estar abrindo a porta precisamente a essa hora, Vossa Senhoria nunca falha! Muito bom dia, antes de tudo, muito bom dia! Sim, senhor! Nunca falha, quisera o irmão sineiro ter tão bom relógio na cabeça! Sabia que Amleto gostava de elogios a seus hábitos metódicos, falava como quem esperava realmente agradar, embora, talvez de propósito, a falta de sinceridade transparecesse. [...]

[...] Se não falasse, tampouco ele falaria, pois, em sua atitude costumeira, mãos gorduchas cruzadas sobre a barriga, boca incrivelmente aberta, lábios húmidos, olhos inexpressivos e bochechas pendidas, não parecia nunca pensar, mas estar sempre como um relógio sem corda, esperando indiferente que
alguém o interpelasse. [...]

[...] Ganhara uma nova intimidade com o tempo, ali trancado sem relógio, sem calendário, sem preocupações e sem conversa [...]

João Ubaldo Ribeiro, hoje falecido, in Viva o Povo Brasileiro

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