segunda-feira, 2 de junho de 2014
Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"
Leituras acidentais de um ocidental. Quarta crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Junho de 2004.
Leituras acidentais de um ocidental
Fernando Correia de Oliveira
Entre Washington, Jerusalém e Meca…
Quando terminou a guerra-fria e alguns teóricos como Francis Fukuyama elaboraram sobre “o fim da História”, o britânico John Le Carré, que foi diplomata e espião antes de se tornar num escritor célebre a viver de quadros imaginados sobre essa mesma guerra-fria, disse: “Que disparate. Agora é que os verdadeiros problemas vão começar”. Não poderia estar mais certo.
A principal bandeira do Islão na cruzada que mantém em crescendo contra o Ocidente, seja na sua versão moderada, seja na sua versão mais radical, é a chamada questão palestiniana. E, aqui, o Islão tem razão: por imperativo moral de democracias saídas vitoriosas da II Guerra Mundial, com os Estados Unidos à cabeça, respondeu-se ao Holocausto com a criação de Israel. Sem se ter perguntado nada aos que viviam no território onde o novo Estado seria implantado. A reacção árabe foi imediata, mas as derrotas sucessivas, humilhantes, também. Mesmo assim, e para uma opinião pública ocidental informada e sem medo das reacções primárias do lobby sionista, a questão do Médio Oriente nasceu com a prática de uma tremenda injustiça – espoliação de terras, refugiados, fronteiras internas, ocupação – são o caldo de cultura de radicais patriotas que, muitas vezes laicos, tomam as vias do terror.
Como bem recordou John Le Carré em entrevista recente, “Israel criou-se a partir da opressão sofrida pelo povo judeu, mas o povo palestiniano também se criou a partir da opressão. E agora temos o mesmo processo no Iraque. A ocupação norte-americana está a fortalecer o espírito de resistência das diferentes comunidades iraquianas”. (1)
O desastre a que conduziu a intervenção norte-americana no Iraque (fazendo do país um caos, fomentando actos terroristas da Al Qaida em zonas onde a organização de Osama Bin Laden não existia) culminou agora no escândalo das torturas de presos, num plano aparentemente autorizado pelo secretário de Estado Donald Rumsfeld.
A chamada superioridade moral do Ocidente sofreu um golpe tremendo com a publicação de fotografias sadomasoquistas, de alto teor sexual, lembrando a parafernália nazi.
As opiniões públicas ocidentais, especialmente europeias, viram as fotos como verdadeiras “armas de destruição maciça” da credibilidade da Administração norte-americana, já de si tão abalada com a questão da inexistência de adm’s no Iraque de Saddam Hussein.
Para John Le Carré, “Aznar, Blair e Bush acabam por acreditar nas suas mentiras, e os Estados Unidos estão a ponto de converter-se num país fascista”. (2) Será o escritor um perigoso esquerdista? Um filo-islamista disfarçado? E a revista The New Yorker, que denunciou o papel directo de Rumsfeld nas torturas? Será uma publicação cripto-comunista, quando o comunismo está morto e enterrado? Ou será apenas, como gosta de dizer uma certa direita portuguesa, “a mão liberal e esquerdista dos media”?
Ou Bush e a sua Administração são afastados nas eleições de Novembro, ou a senda para onde este grupo está a arrastar o Ocidente e o resto do mundo terá um fim. O Fim. John Le Carré, na entrevista citada dá, convenhamos, uma resposta típica da esquerda “caviar” quando interrogado sobre como acabar com a nova desordem mundial: “Tão importante ou mais do que a guerra contra Saddam ou Osama é a guerra contra a pobreza, a escassez ou o imperialismo”. (3)
Mas, como vão observando espíritos mais independentes, se a miséria fosse a verdadeira causa do terrorismo global, a África e a América Latina seriam os principais exportadores dessa peste que marca o início do século XXI.
Hosni Mubarak, o Presidente egípcio, é dos poucos dirigentes árabes moderados que vai sobrevivendo no fio da navalha, entre o diálogo pragmático com Israel e o Ocidente e uma opinião pública interna maciçamente contra a sua política. Por aquelas bandas, “existe um ódio aos americanos jamais igualado”, afirma ele. (4)
O Presidente egípcio recorda coisas que os norte-americanos não gostam de ouvir: “A causa principal do terrorismo é a injustiça (na questão palestiniana). O mandatário do primeiro atentado contra o World Trade Center (em 1993), Omar Abdel Rahman, trabalhou com Osama Bin Laden no Afeganistão. (Depois da invasão soviética no Afeganistão), os americanos mobilizaram um grande número de pessoas nos países muçulmanos, entre eles Omar Abdel Rahman e Bin Laden, e enviaram-nos para o Afeganistão, para combaterem o comunismo. Quando Gorbachov retirou as suas tropas, os mujahedin e os islamistas foram recuperados pelos grupos terroristas. Omar Abdel Rahman foi viver para os Estados Unidos e fez explodir o World Trade Center. E Bin Laden comandou os atentados de Nova Iorque e de Washington (de 11 de Setembro de 2001)”.
E Mubarak conclui: “É perigoso explorar a religião. Eles utilizaram o Islão contra o comunismo. E, hoje, eles dizem que o Islão é um perigo. Não nos devemos imiscuir na fé e na crença das pessoas”.
Para Mahomed Yiossuf Mohamed Adamgy, director da revista islâmica portuguesa Al Furqán, “A solução para as facções radicais nos países islâmicos não deve ser a ‘secularização forçada’. Pelo contrário, uma tal política incitaria mais a reacções das massas e alimentaria o radicalismo. A solução é a disseminação do verdadeiro Islão e de um papel modelo de um muçulmano que abraça os valores humanitários do Alcorão, tais como direitos humanos, democracia, liberdade, bons princípios morais, ciência e estética, e que oferece felicidade e glória à humanidade”. (5)
A esta posição idílica, tão longe da realidade, da prática e da vivência quotidiana de centenas de milhões de seguidores de Maomé, não ajuda nada na guerra da opinião pública o cartão de visita que é a Al Qaida, a sua propaganda e, acima de tudo, os seus actos.
Ralf Darendorf, actual membro da Câmara dos Lordes britânica, num dos seus habituais artigos sindicados, publicados nos jornais de referência de todo o mundo ocidental, dizia há semanas: “Aquilo que descrevemos sob a designação de Al Qaida é um movimento essencialmente destrutivo e negativo. Não oferece uma visão alternativa do mundo moderno, mas apenas a reivindicação implícita de que a modernidade não é necessária nem desejável”.
Aos adeptos do politicamente correcto, dos que relativizam tudo, aos que acham sempre “fantástico” tudo o que seja multi-étnico, multi-cultural, Darendorf dá algum alento: “Temos que aceitar que há limites para a tolerância. Pôr de parte os valores e costumes das sociedades livres é problemático, mas em última instância aceitável. As manifestações de diferença não agressivas – incluindo o uso do véu por estudantes e professores islâmicos em países de maioria cristã – deveriam ser toleradas”.
E onde pararia essa tolerância? Quando uma mulher islâmica vai a um hospital público e se recusa a ser vista por pessoal médico masculino, aceita-se? E quando uma médica islâmica, quadro de um hospital público, se recusa a ver pacientes masculinos, aceita-se? E quando ela vai tirar o passaporte ou a carta de condução, e só quiser tirar a fotografia de cabelos (ou mesmo de cara) tapados, aceita-se? E o que fazer às dezenas de jovens europeias de famílias islâmicas emigradas, forçadas a casarem-se em uniões arranjadas, muitas vezes com homens que nunca viram e que vivem nos países de origem dos seus pais? E que fazer com as mulheres “repudiadas” pelos maridos, à maneira islâmica, nos países de origem do casal, quando antes se casaram, pelo civil, no país de acolhimento?
E quando a lei islâmica, a sharia, começar a ser imposta na sua totalidade, no seio das comunidades islâmicas a viverem na Europa, como proclamam não poucos imãs em França, na Bélgica, na Grã-Bretanha? Expulsam-se os pregadores que defendem a lapidação da mulher adúltera, como aconteceu recentemente com seis que incendiavam com os seus discursos mesquitas em território francês? E isso não irá ajudar ainda mais ao fecho das comunidades, ao extremismo?
Quando a guerra-fria estava no auge, esquerdistas alemães terão inventado um slogan célebre: “antes vermelho que morto”, aceitando implicitamente a vitória da União Soviética sobre uma Europa sob ameaça nuclear vinda de Moscovo. E hoje, que dirão os filhos dessa quinta coluna? “Antes islamizado, que morto”?.
1 – John Le Carré, in El País Semanal, 9 de Maio de 2004
2- ibidem
3- ibidem
4 – Le Temps, 22 de Abril de 2004
5 – PÚBLICO, 12 de Abril de 2004
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