Em cima, pormenor de uma das duas torres reljoeiras do Convento de Mafra; em baixo, D. João V; uma gravura da época da construção do convento.
Passou à História com o cognome de Magnânimo. Mas, para muitos aspectos da arte e da cultura nacionais, foi verdadeiramente “magnífico”. A relojoaria nacional, de que era um grande apreciador, beneficiou muito durante o seu reinado de quase 44 anos, mas apenas através de peças importadas.
D. João V (1689-1750) era conhecido por toda a Europa como um monarca de gostos caros e exclusivos. E, mercê do ouro do Brasil, os seus caprichos eram sempre realizados. Portugal continuava, apesar disso, um reino pobre, que se tinha empenhado na guerra da Sucessão de Espanha (com resultados desastrosos para a economia nacional), e onde o luxo das classes dominantes era chocante em relação à vida que o povo levava (daí as várias pragmáticas decretadas contra o escandaloso espectáculo da ostentação de vestuário, jóias e outros luxos importados).
No meio deste desbaratamento de recursos (e de um acordo de comércio com a Inglaterra — o célebre Tratado de Methuen — que hipotecava mais uma vez a hipótese de industrialização nacional) D. João V sempre deixou obra arquitectónica, que encomendou a mestres nacionais e estrangeiros (na sua maioria, italianos, dos melhores do seu tempo). Esses monumentos eram providos de relógios monumentais, também eles encomendados às melhores manufacturas de então.
Por outro lado, os palácios reais portugueses iam sendo providos, a pouco e pouco, de outros relógios, de pé alto, de mesa. Os embaixadores portugueses em Paris ou Londres andavam sempre à procura de novas máquinas, as mais luxuosas e complicadas que aparecessem, para as enviar ao rei.
D. António Caetano de Sousa, o padre teatino a que já se fez referência, descrevia assim o ambiente da corte de D. João V: “Assim tem [o rei] uma numerosa e admirável livraria, onde se vêem as edições mais raras, grande número de manuscritos, instrumentos matemáticos, admiráveis relógios, e muitas outras coisas raras que ocupam muitas casas e gabinetes”.
Romanceando, mas traduzindo esse mesmo ambiente de luxo, diz-nos Rebelo da Silva na obra A Mocidade de D. João V: “Os sinetes de rubis dos dois relógios, os botões de brilhantes dos punhos... faziam empalidecer de inveja qualquer dos fidalgos moços e presumidos da roda do príncipe real”. Ou ainda: “Dois rubis de valor, esquecidos nos sinetes do relógio, desmentiam a simplicidade do resto do fato”.
Os relógios que equipavam as torres das igrejas ou dos municípios portugueses de então eram de fraca qualidade e, com D. João V, começam a chegar novas máquinas, muito mais precisas, que vão substituindo a pouco e pouco as da geração anterior. Até mesmo o relógio da Sé de Lisboa era pouco fiável. Uma carta de 23 de Novembro de 1719, dirigida pelo secretário de Estado, Diogo de Mendonça Côrte Real, ao presidente do senado municipal da câmara encarregado da parte ocidental da cidade, reza assim: “S. Magestade, que Deus guarde, é servido que V. Ex.ª ordene que o relógio da Sé de Lisboa oriental se ponha pelo sol, e, quando não haja relógio de sol, se ponha pelo dos padres da Congregação do Oratório”. A relojoaria férrea ainda se acertava então pelo sol.
No livro Assentamentos de Ordenados, do município de Lisboa, feito depois de 1751, lê-se na rubrica “Relojoeiro da cidade”, a frase “tem de ordenado 37.600 réis, nada mais”. O Sineiro da Sé ganhava então 12.000 réis.
Mas a grande “assinatura” do reinado de D. João V é, obviamente, o convento de Mafra. Construído entre os anos de 1717 e 1750, pagando a promessa do rei de o fazer quando lhe nascesse herdeiro, o conjunto arquitectónico de Mafra espanta pela grandiosidade: 11 capelas, 45 tribunas, 6 grandes órgãos, 21 retábulos em mármore, 40 estátuas de grande porte vindas de Itália, 880 salas e quartos, 300 celas, 4.500 portas e janelas, 154 escadarias e 29 parques estendem-se por uma área coberta que, por junto, dá uns impressionantes 37.790 metros quadrados.
Projectado pelo germano-italiano João Frederico Ludovice, o Convento foi entregue a 12 monges franciscanos, que recebiam da Coroa suprimentos e dinheiro como se fossem 300. D. João V não se poupava a exageros, tendo como meta a superar o palácio real espanhol do Escorial.
Nas palavras de alguns, “monumento maior do que o país”, o conjunto de Mafra é hoje ocupado parcialmente pelo Exército português e o ambiente da sua construção inspirou o Nobel José Saramago para uma das suas obras mais conhecidas, o Memorial do Convento.
Do ponto de vista relojoeiro, as duas grandes torres, que sobressaem nos 220 metros de fachada, foram equipadas com magníficas máquinas, ligadas por sua vez a um sistema de carrilhões dos maiores que alguma vez se construíram no mundo. Os relógios foram encomendados às oficinas de Nicolau Lerache e Guillerme Withlobix, de Antuérpia, que aliás construíram todo o conjunto mecânico dos carrilhões. As peças dos relógios e os sinos foram acompanhados, desde Antuérpia até Mafra por uma equipa de operários especializados daquelas oficinas, para proceder à sua montagem. Ficaram por Mafra durante mais de um ano, recebendo um ordenado diário de 3.200 réis, além das despesas de transporte.
Um peso de chumbo, de quase 900 quilos, ligado às rodas de balanço, primitivamente por meio de cordas de linho, depois substituídas por correntes de ferro, constitui o “motor” para que cada relógio tenha força suficiente para fazer soar os carrilhões. Um outro peso, também em chumbo, é em cada um dos conjuntos o “motor” para dar horas e quartos. Os quatro pesos descem livremente por cavidades abertas nas paredes do convento. O relógio da torre Norte, conhecido como “O Romano”, tem mostradores de apenas seis horas. Foi munido de uma complicação: um sistema de despertador automático, fazendo soar sinos diariamente, ao nascer e ao por do Sol. O da torre Sul, conhecido como “O Português”, tem mostradores de doze horas.
Segundo os registos, nos primeiros 170 anos de existência, os mecanismos necessitaram apenas de reparações pontuais. Mas, no final do século XX, já nenhum funcionava. Com o restauro recentemente feito, pela firma holandesa Royal Eijsbouts, especialista internacional em carrilhões, uma das torres está neste momento em perfeitas condições de funcionamento. Estuda-se agora a hipótese de restauro do outro conjunto relógio-carrilhão.
Dos guardiães de tão magníficas peças que foram passando por Mafra, ressalte-se o nome de Joaquim da Conceição Gomes, que em 1853 se iniciava no cargo de ajudante de relojoeiro do convento. Autodidacta, escreveu também muito sobre a história do monumento.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
2 comentários:
Não é um comentário, mas uma pergunta.
O relógio da torre norte marca horas ou minutos?
Se marca horas porque a escala de 0 a VI ?
Agradeço a informação antecipadamente.
Marques Cardoso
O relógio com marcações de I a VI é o chamado "Romano", bate horas e meias horaas, tal como o que está na outra torre, o "Português", mas cujo ponteiro dá 4 voltas a cada 24 horas em vez das habituais duas. Ver: http://discoverplaces.travel/en/canepinas-six-hour-clock-history-italian-roman-time/
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