Em Março de 1978, a António Moura Lda. produzia uma “Proposta para uma política da distribuição conjunta dos Depositários da Reguladora”. Por essa altura, a empresa, sediada na Praça da Figueira, em Lisboa, com instalações de assistência e reparação em Picoas e sucursal no Porto, era o maior importador de relojoaria do país.
O documento faz parte do acervo oferecido por António LuísMoura ao Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera, que coordenamos.
Anotações manuscritas adstritas à proposta dizem que a António Moura Lda. vendeu em 1978 cerca de 15 contos em relógios Reguladora, 15 por cento de coluna e 85 por cento de parede. As três páginas dactilografadas do documento lançam um projecto de estratégia concertada entre os quatro Depositários de relógios Reguladora. Não são mencionados esses Depositários mas, além da própria António Moura, a Andrade Melo, do Porto, seria outro, esta última tradicionalmente com papel líder na representação da marca portuguesa de relógios de pêndulo.
Avalia-se a situação em 1979 e diz-se que a Reguladora não é
conhecida do grande público; tem um fraco sector de comercialização; produto de
qualidade, mas ultrapassado na estética, devendo ser uma empresa não rentável.
Defende-se uma campanha de publicidade e aposta na internacionalização.
Em Março de 2003, publicámos História do Tempo em Portugal,
depois de três anos de investigação, nomeadamente sobre a Reguladora.
No ano seguinte, fomos convidados pela Administração da
fábrica a fazer uma comunicação em Calendário, Vila Nova de Famalicão, nas históricas
instalações do complexo fabril, subordinada ao tema "O Tempo em Portugal –
Relojoaria Mecânica e Mentalidades".
Eis o resumo:
Os relógios de sol, que vieram com a ocupação romana, e a
relojoaria grossa, férrea ou de torre, que veio com relojoeiros franceses e que
se estabilizou com a aliança matrimonial da dinastia de Aviz com a Casa inglesa
de Lencastre.
A introdução dos relógios portáteis, de sol e mecânicos, por
parte da família Behaim, que comerciava em Lisboa, mas era originária da
Floresta Negra.
A introdução dos relógios mecânicos nas cortes chinesa e
japonesa, por intermédio do Padroado Português do Oriente, nos séculos XVI e
XVII, e a sua importância para a fixação dos ocidentais nessas paragens.
O tempo glorioso de D. João V, em que a corte portuguesa
comprava os melhores relógios do mundo, seguido do desastre do terramoto de
1755, que destruiu grande parte do património relojoeiro monumental de Lisboa e
arredores.
O período do Marquês de Pombal, em que se assistiu à
laicização do tempo nacional, por um lado, e à fundação da primeira fábrica de
relógios portuguesa, por outro.
Os astrónomos jesuítas em Portugal e os “estrangeirados” do
século XVIII, como João Jacinto de Magalhães e Jacob de Castro Sarmento
Veríssimo Alves Pereira e Augusto Justiniano de Araújo,
figuras da relojoaria do século XIX português.
Os casos de A Boa Reguladora, A Boa Construtora, Cardina
(Nazaré) ou Jerónimo (Braga), exemplos de relojoaria de fabrico nacional no
século XX português.
Isto, no âmbito da exposição “A Boa Reguladora – Uma viagem no Tempo”, inaugurada a 29 de Junho e que se prolongou até Setembro de 2004. Terá sido o último grande esforço público dos donos da Reguladora em relançar a marca. Em baixo, aspectos da exposição (fotos Fernando Correia de Oliveira),
Fizemos então uma reportagem na revista Internacional Horas e Relógios (já extinta):
A Boa Reguladora – uma viagem no Tempo
São 136 peças de um acervo que esteve durante muito tempo
esquecido, se não abandonado. Trata-se de um importante património para a
arqueologia industrial portuguesa, pois é exemplo único de perenidade nacional
no que respeita ao fabrico de relógios. A exposição de A Boa Reguladora, em
Vila Nova de Famalicão, agora inaugurada, será o primeiro passo para a
concretização de um museu de uma fábrica que quer renascer.
“A Boa Reguladora – Uma viagem no Tempo” é o título da
exposição que está patente no centro histórico de Famalicão, no antigo edifício
Casa Malheiro, e que permite uma viagem pelas várias etapas da única fábrica de
relógios portuguesa que existiu no último século e meio.
Iniciativa conjunta da nova gerência da Reguladora e da
Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, a exposição reúne 136 peças, entre
relógios, peças, catálogos e instrumentos e ferramentas daquela que foi caso
único no panorama nacional. Estará patente até 30 de Setembro.
Rica em história e tradição, a Reguladora está em risco de
perder um conhecimento relojoeiro acumulado ao longo de gerações, já que aos
tempos áureos – que duraram até quase ao 25 de Abril de 1974 – se seguiram
algumas décadas de indefinição e ultrapassagem em termos técnicos e estéticos
por uma concorrência aguerrida e estrangeira. Com uma nova gerência, apostada
em não deixar perder o nome forte da marca, a Boa Reguladora quer agora criar
um museu de manufactura, arrancar com um ciclo de colóquios e conferências
subordinadas ao Tempo, à Relojoaria e à indústria micro-mecânica, candidatar-se
a fundos europeus para formação de relojoeiros. E lançar novos modelos do seu
vasto catálogo, inspirados no passado, mas que possam agradar ao gosto do
século XXI. Seria uma pena que esta empresa, única, desperdiçasse o seu nome ou
visse o seu património desaparecer ingloriamente. Há toda uma vasta história
por contar:
O Catálogo da Exposição Industrial Portuguesa de 1897,
realizada no Palácio de Cristal, no Porto refere no seu artigo 187 a firma
Carvalho, Irmão & Cª, Fábrica de relógios “A Boa Reguladora” (Vila Nova de
Famalicão). A firma levou à feira uma colecção de relógios de mesa e de parede,
além de material em diversos graus de fabricação.
No catálogo que o próprio expositor mandou imprimir para a
ocasião explica-se: “A iniciativa da introdução do fabrico de relógios no nosso
país deve-se exclusivamente ao génio altamente empreendedor e tenacíssimo do
nosso falecido sócio, João José de S. Paulo. A fábrica primitiva, que foi
estabelecida em 1893, na Rua Gomes Freire, desta cidade [Porto], sob a firma de
S. Paulo & Carvalho, foi depois mudada para Vila Nova de Famalicão, onde se
acha instalada em um edifício de construção ligeira, mas amplo e em condições
de se poder dar ao fabrico o desenvolvimento que a pronta extracção dos seus
produtos exige” (sic).
“Hoje, prossegue o catálogo, a fábrica ‘A Boa Reguladora’
pertence à família Carvalho, Irmão e Cª, possui trinta e quatro máquinas
diversas, sendo a maior parte movidas a vapor, e, com um pessoal composto de
trinta e seis operários, de ambos os sexos, produz uma média mensal de cento e
sessenta relógios de modelos diversos para mesa e parede.
“Esta produção, que não é ainda metade da quantidade que o
país importa, vai aumentando pouco a pouco segundo o número de modelos novos
que entram em fabricação e na proporção do terreno ganho no mercado pelos
produtos da nossa fábrica”.
Como estavam equipados os relógios d’A Boa Reguladora? “O
tipo de máquina que adoptámos para os nossos relógios é cópia fiel do calibre
usado pela principal fábrica americana ‘Ansonia Clock Cny’, modificando-lhe
apenas o sistema de contar as horas, de que temos privilégio por alvará de 18
de Maio de 1893. Todas as peças de que se compõem as máquinas são fabricadas
com tal precisão e uniformidade de dimensões, que a substituição de qualquer
delas se torna muito fácil e pronta”.
Num país sem tradição na micro-mecânica em geral e ainda
menos na relojoaria, “grandes foram as dificuldades com que a princípio
lutámos, e que sempre se opõem à implantação de uma indústria complicada e
inteiramente estranha no nosso país, como a da relojoaria; essas fadigas,
porém, têm sido compensadas em parte, não só com a satisfação de vermos os
nossos produtos premiados com medalha de ouro na exposição agrícola e
industrial de Gaia, um ano apenas depois de instalada a fábrica, mas também
pela boa aceitação que têm tido no mercado todos os relógios por nós
fabricados, sem excepção mesmo dos primeiros que nos serviram para
experiências. É-nos também muito grato poder declarar que a dependência que
existe entre a nossa fábrica e a indústria estrangeira, se limita apenas à
importação do material em bruto, tal como ferro e aço em fio, latão em grandes
chapas e diversas qualidades de madeiras, em pranchões e em folha, que se
empregam na marcenaria instalada na mesma fábrica”.
Quais as perspectivas do negócio, quatro anos apenas depois
de ter começado? “Consideramos a nossa indústria ainda na infância, mas
julgamos poder em poucos anos suprir as exigências do mercado interno. Só
depois trataremos de estudar a possibilidade de exportação dos nossos artigos
para o Brasil, para as nossas possessões, e talvez para Espanha, imitando a
relojoaria francesa, única que tem aceitação naquele país”.
Os relógios d’A Boa Reguladora foram fazendo, durante
décadas, o seu nome, encontrando lugar em milhares e milhares de lares
portugueses.
João S. Paulo e José Carvalho logo iniciaram no Porto o
fabrico de relógios como se tinham proposto. Não pensaram em relógios de uso
pessoal como os de bolso (relojoaria fina) nem em relógios de torre (relojoaria
grossa), ficando-se pelo meio-termo, os relógios de parede e de mesa – visando
competir com os que o mercado português importava da Alemanha e dos Estados
Unidos. Sobretudo estes últimos, eram muito apreciados pela robustez e
simplicidade do seu mecanismo, o que os tornava muito competitivos.
O primeiro modelo fabricado na fábrica do Porto foi o
“Batalha”, relógio de mesa batendo horas e meias horas. Sendo o primeiro, foi
também um modelo que nunca deixou de se fabricar.
Tinha a Sociedade “S. Paulo & Carvalho” apenas 3 anos de
existência quando o sócio João José S. Paulo, por razões de saúde, cede a sua
posição a José Carvalho, vindo a falecer, pouco depois, com apenas 30 anos. Foi
nessa altura constituída nova sociedade entre José Carvalho, seu irmão mais
novo, Lino Carvalho, e o credor de S. Paulo, Joaquim Martins de Oliveira Rocha,
este último como sócio capitalista.
Lino Gomes da Costa Carvalho era relojoeiro estabelecido com
oficina e casa comercial na rua de Stº António, em Famalicão. Dado que os dois
sócios activos eram daí, resolveram transferir a fábrica para lá.
Em 1901, a dívida de S. Paulo é paga e Oliveira Rocha deixa
a sociedade, que fica nas mãos dos irmãos Carvalho.
Desde os primeiros anos que a Reguladora é uma empresa
industrial integrada. O relógio fabricava-se totalmente, em todos os seus
componentes. Para a fabricação das caixas, a madeira era comprada em toros,
serrada, aparelhada e acabada por marceneiros. A par da actividade relojoeira,
e aproveitando a actividade de serração e carpintaria, a empresa trabalhou
também para a construção civil. A força motriz das máquinas a vapor entretanto
adquiridas era paralelamente utilizada na moagem de cereais. Em 1908 já a Reguladora
possuía geradores de energia eléctrica. Por iniciativa de José Carvalho,
estudou-se a iluminação eléctrica pública de Famalicão, concretizada no ano
seguinte e tornando a localidade no primeiro município da província a ter essa
melhoria. A Reguladora teve até à década de 50 do século XX a concessão de
distribuição eléctrica à Vila.
Quando, em 1914, deflagrou a I Guerra Mundial, já A Boa
Reguladora tinha atingido uma dimensão industrial assinalável para a região.
Numa área fabril de 10 mil metros quadrados trabalhavam 220 operários de ambos
os sexos. A força motriz era de “220 cavalos em 3 motores” e a produção de
relógios foi, nesse ano, de 6.408 unidades.
Nos anos 30 e 40, já por influência de António Augusto do
Nascimento Carvalho, neto de José Carvalho, assiste-se à evolução dos modelos
da Reguladora, mais precisos e mais técnicos: surgem os “Carrilhões” com toque
Westminster e, mais tarde, os Avé Maria de Fátima com toques nos “quartos” e
nas “horas”. Abriu-se com grande sucesso o mercado brasileiro. Na II Guerra
Mundial, debatendo-se com falta de matérias-primas, a Reguladora viu-se
obrigada a fundir latão ou a comprar cabos, retirados por desgaste, do elevador
do Bom Jesus de Braga. Por uma questão de honestidade, os maquinismos dos
relógios dessa época levavam a marca “Fabrico de Guerra”, mas ainda hoje são
apreciados pelos relojoeiros pela sua robustez.
Terminada a guerra, o mercado brasileiro entra em crise e
praticamente termina para a Reguladora. Começava a haver dificuldade de
escoamento para a capacidade de produção. Procuram-se novos produtos. Em 1952
surgem os despertadores, artigo de grande consumo, mas de tecnologia mais
exigente: escapes de volante com oscilador espiral. Com o seu característico
tic-tac bastante sonoro, o despertador da Reguladora passou a figurar até nas
habitações mais humildes.
Com vista à expansão e diversificação de actividades,
procurou-se um novo produto que, não sendo relógios, pudesse, contudo, tirar
rendimento de grande parte do parque de máquinas e equipamentos existentes. O
Contador de Água parecia ser o produto ideal, pois tinha uma importante
componente de engrenagens, era de grande consumo e Portugal estava nessa altura
quase totalmente dependente da importação. Em 1954 foi assinado um contrato de
assistência técnica com a firma belga Contimeter. No ano seguinte, iniciou-se a
produção de contadores. Em 1957, com a mesma firma belga, assina-se o contrato
de assistência técnica para o fabrico de contadores, mas agora de energia
eléctrica.
No capítulo dos relógios, a década de 50 assiste a uma
exportação considerável para o mercado espanhol. Na década de 60 continua o
fabrico de relógios de parede, de coluna, de mesa e despertadores. No final
dessa década são lançados os primeiros relógios electrónicos alimentados a
pilhas, primeiro com oscilador mecânico e depois com oscilador de quartzo.
[em 1972, a Reguladora instalou em Moçambique, então colónia
portuguesa, uma linha de montagem de despertadores].
A partir de 1972 a Reguladora dispunha da totalidade da
tecnologia para o fabrico de contadores de água e contadores eléctricos. Em
1982 começa a fabricar aparelhos de protecção diferencial – disjuntores e
interruptores. Em 1983 inicia-se a produção de fiscalizadores de chamadas
telefónicas e de interruptores horários de quartzo.
No período conturbado do pós-25 de Abril de 1974, a
Reguladora, como centenas de outras unidades fabris por todo o país, chega a
estar em regime de co-gestão, que acabaria pouco depois.
Em meados da década de 90, o negócio da relojoaria pura
autonomiza-se, com a venda das restantes componentes. Embora não fabrique já
desde 1995 os seus movimentos (importando os mecânicos da Alemanha e os de
quartzo da Suíça), A Boa Reguladora, que vai na quarta geração como negócio de
família, continua a comercializar os seus relógios. E quer agora, com esta
exposição, recolocar-se no mercado nacional, onde ainda continua a ter uma
imagem muito forte.
Mas os esforços da Administração foram em vão. O capítulo
verdadeiramente industrial da Reguladora acabava anos depois. A marca Reguladora
ainda existe. Em meados da década de 2000, a empresa foi adquirida por dois dos
seus antigos trabalhadores, que decidiram voltar a vender e a dar assistência
técnica aos milhares de relógios vendidos ao longo de mais de um século. Nascia,
assim, a Regularfama, que tem apresentado alguns modelos de pulso, com a marca Boa
Reguladora no mostrador.
A mais perene experiência industrial de relojoaria pendular
em Portugal chegava ao fim. Uma herança inesperada, pouco conhecida: João
Boavida fazia notar há anos no blogue De Rerum Natura, o papel da mão-de-obra
especializada da defunta A Boa Reguladora, na vizinha Leica, fábrica alemã de
instrumentos de precisão. Os responsáveis da Leica reconheciam que a sua força
de trabalho, formada na grande escola que foi A Boa Raguladora, esteve na base
do êxito da empresa.
Em baixo, fotos, catálogos, facturas e outros elementos relacionados com a história de a Boa Reguladora (arquivo horológico de Fernando Correia de Oliveira)
Etiqueta em relógio de mesa de A Boa Reguladora onde, nomeadamente, se refere o Privilégio concedido à empresa, por Alvará do Governo, de 18 de Abril de 1893
A estação de caminhos-de-ferro, em Famalicão, onde os relógios eram exportados
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