O Jornal de Letras, Artes e Ideias nº 1391, de 24 de Janeiro, inclui um extenso trabalho sobre a figura de José Pacheco Pereira, recentemente distinguido com o Prémio Vasco Graça Moura, Cidadania Cultural, e fundador do Arquivo Ephemera.
Além das seis páginas no interior, o tema é a manchete deste número do JL. Estação Cronográfica é voluntária do Ephemera desde há cinco anos e responsável pelos Núcleos do Tempo e da Gastronomia do maior arquivo privado do país.
Há uma pergunta recorrente que nos fazem quando sabem o que
fazemos – “interessa-vos…”, e a nossa resposta é sempre, sem deixar terminar a
frase – “interessa-nos tudo”. O diálogo prossegue invariavelmente: “Mas,
tudo!?”. Sim, tudo.
É difícil explicar o que é, na prática, o Ephemera. É
preciso visitar as casas da Marmeleira, onde tudo começou, e ou os dois
armazéns do Barreiro e o de Santa Iria para ver do que estamos a falar, para se
compreender o âmbito da actividade do arquivo.
Costumamos dar o exemplo dos panfletos dos supermercados.
“Mas isso interessa para alguma coisa?”. Claro que sim. No Núcleo de
Gastronomia temos centenas desses panfletos, desde finais da década de 1970.
São óptimas fontes para se saber os preços desde há meio século, os hábitos de
consumo da altura, as novidades em produtos alimentares e outros que foram
desaparecendo, as técnicas de marketing…
Numa exposição que realizámos em 2020 na Junta de Freguesia
da cidade de Viseu, apresentámos discos, livros de gastronomia ou embalagens de
doces e salgados típicos da região (outro artigo que o Ephemera guarda,
testemunho de pequenas produções locais, com embalagens e logótipos muitos
deles desenhados há 100 anos ou mais).
Mas o que terá tido maior êxito foi a mostra, sob o tampo de
vidro de uma enorme mesa, de cerca de 200 cartões de restaurantes de Viseu e
arredores. “Olha, o meu como de água foi aqui”, “Será que ainda existe?”, “Já
lá não vou há uns anos, tinha um belo cabrito no forno…”, “nunca fui a este, já
me disseram que é bom, tenho de experimentar”.
O Ephemera é isto – a preservação da memória analógica, em
papel, do que cada vez mais está a passar ao mundo do digital. São já poucos os
restaurantes que fornecem cartão de visita, está tudo na Internet. Até os menus
se vão desmaterializando, com as soluções QR Code.
No Núcleo de Gastronomia possuímos mais de 6 mil cartões,
centenas de facturas do tempo em que elas ainda eram personalizadas no topo com
letterings belíssimos, cerca de 500 menus gerais ou personalizados para
ocasiões especiais, alguns deles do início do século XX, nacionais e
estrangeiros.
Nas exposições que o Ephemera faz notamos que os objectos
tridimensionais são muitas vezes mais apelativos que os simples documentos em
papel. Eles ajudam a contextualizar com uma linguagem mais forte, mais directa
e fácil de “ler” o tema que se esteja a expor. O objecto ganha cada vez mais
importância no acervo do Arquivo.
No Núcleo de Gastronomia possuímos quase uma centena de
garrafas de vinho com uma característica – têm rótulos cujo tema inclui aves.
Não fazia ideia de que existissem tantos…
O Ephemera é também isso – numa exposição, consegue dar
perspectivas únicas não apenas pela qualidade do material exposto, mas tambem
pela quantidade específica, num portfólio tão variado como massivo, único no
país.
O Arquivo possui uma biblioteca gastronómica com mais de 2
mil volumes, com obras desde o século XIX. Raro é o espólio ou acervo que nos
chega que não traga livros de cozinha. Mas ao que damos mais valor, como nos
restantes núcleos, é ao item único. Neste caso, às receitas de família,
manuscritas, raras vezes assinadas, mas algumas delas com a garantia de terem
passado por 3 ou 4 gerações. Planeamos editar em livro alguns desses conjuntos.
A língua portuguesa, sintomaticamente, tem apenas uma
palavra para o tempo cronológico e para o tempo meteorológico. O inglês tem
“time” e “weather”, o alemão “zeit” e “wetter”.
Quando comecei o meu voluntariado no Ephemera, há cinco
anos, fui convidado a coordenar o Núcleo do Tempo, dada a minha carreira,
paralela ao jornalismo, de investigação nessa área. Quando me apresento como
investigador e voluntário do Ephemera na área do tempo, perguntam-me se amanhã
vai chover…
No Núcleo do Tempo do Ephemera há obras sobre o tempo
cronológico, calendários, agendas, almanaques. Algum desse material, só através
do meu voluntariado tomei contacto com ele, o que tem ajudado nas minhas
investigações.
Como voluntário e responsável pelos núcleos de Gastronomia e
Tempo, quase sempre consigo ter limpas, ao fim do dia, as mesas onde trabalho,
no Barreiro ou em Santa Iria, arrumando o material que vai chegando. Para, na
semana seguinte, encontrar de novo as mesas cheias. No Ephemera, não podemos
ter angústias de Sísifo…
Uma das coisas que deixa triste um voluntário do Ephemera é,
quando explicamos o que fazemos nas várias áreas (há outros núcleos, como Acervos,
Fotografia, Cartofilia, Cinema, Desporto, Turismo, História, etc.) as pessoas,
invariavelmente, dizem: “Se soubesse, olhe, ainda há pouco tempo deitei fora…”.
Ficamos tristes, mas não frustrados, que ainda há um mundo infinito de
potenciais acervos e espólios a resgatar.
O trabalho, no arquivo, é frequentemente muito físico –
recolher material na casa de quem os doou, carregar esse material para zonas
específicas dos armazéns. O ambiente é de grande azáfama, com os voluntários,
especialistas nas suas áreas, a trocarem impressões sobre o que vai chegando,
sobre o que vai para onde.
Poderia dizer que as minhas terças (Barreiro) e quintas
(Santa Iria) são de prazer, descontracção e camaradagem, mas também de
aprendizagem e desafio à criatividade. O Ephemera é um imenso espaço de
liberdade, sob a batuta do José Pacheco Pereira.
Poderia dizer isto e acabar assim o meu testemunho. Mas não
é apenas isso. O trabalho no Ephemera fez-me encarar o mundo de outro modo – no
meu dia-a-dia, faço acção directa na recolha de papeis, cartazes e outra
parafernália para a qual não ligaria antes (com algum nervosismo da minha
mulher, confesso). Olho para as paredes, cá e lá fora, à procura de pichagens
para fotografar (outro acervo único do Ephemera e dos seus voluntários
espalhados pelo mundo).
Hoje, procuro encarar o mundo com olhos de daqui a 50 anos e
interrogar-me: isto vai ou não ser valioso para os de 2074? Quase tudo será,
arrisco. O que é analógico, claro. Que o que é já hoje digitalizado terá há
muito desaparecido, perdido para sempre.
Longa vida ao Ephemera!
Fernando Correia de Oliveira, jornalista, investigador na área do Tempo, mais gourmand que gourmet, voluntário do Ephemera
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