O relógio das horas em branco
Vicente Fatone, em 1943, publicou o texto em “El reloj de las horas en blanco”, no jornal “El Mundo”, com o pseudônimo Juárez Melián. Leio-o para vocês:
Meu avô me surpreendeu outro dia com essa observação, que deve ter lido em alguma parte:
― Nesse mundo todos somos um pouco esquisitos, menos você e eu. E você não irá acreditar: você também, às vezes, tem suas esquisitices.
Por mais que contestasse, direcionei meu olhar para o relógio que meu avô coloca à noite sobre seu criado-mudo e durante o dia em seu escritório. É um relógio que, num primeiro momento, teve o vidro quebrado, e depois caíram seus ponteiros.
Meu avô está empenhado em não o mandar para o relojoeiro. O relógio funciona, isso é certo. Porém, para que diabos pode servir um relógio assim? Sim, isso não é birutice…!
Meu avô é inteligente. Adivinhou, em seguida, o que eu pensava, e aproveitou para me dar uma conferência – como nos seus belos tempos de professor – sobre seu relógio em branco:
― Meu relógio funciona, e esse é talvez seu único defeito. Um relógio que funciona é menos útil que um relógio parado… Pois bem, você poderia poupar esse sorriso insolente. De um relógio que funciona jamais saberá se marca ou não a hora exata. Mesmo o relógio do Ministério da Marinha mostra uma possibilidade de erro de um décimo de segundo. Em troca, de um relógio parado sabe-se que, pelo menos, duas vezes por dia marca a hora exata. Tudo está em olhar o relógio no momento oportuno. Você não sabe em que momento deve olhá-lo para surpreendê-lo marcando a hora exata: porém, isso não é culpa do relógio: a culpa é sua.
Esse relógio sem ponteiros é ainda mais exato do que os relógios parados. É inútil que o observe para saber qual é a hora. Se o relógio estivesse parado, isso não o aborreceria. Aquilo que o aborrece é que o meu relógio não marque a hora e, mesmo assim, siga em frente. E o que mais o aborrece é que eu todos os dias dou corda nele e que o coloque aqui, em meu escritório. Porém este é um relógio despertador; e todas as manhãs toca às sete em ponto.
Como você pode ver, meu relógio não tem ponteiros e, mesmo assim, funciona bem. Por isso não quero levá-lo para que coloquem ponteiros nele. Se o relojoeiro se equivocar e não colocar os ponteiros com precisão (para tal propósito deve ter outro relógio como guia), o despertador deixará de tocar como o faz até agora, às sete em ponto, para começar a tocar às sete e quinze ou às sete e meia.
Não demonstre, portanto, desinteresse pelo meu relógio sem ponteiros. Eu sei que você fica intrigado… E é lógico porque com este relógio realizei um milagre um pouco difícil de explicar, como todos os milagres. E especialmente difícil para explicar para você, que fala, às vezes, dos novos tempos e do novo ritmo das coisas, e que a cada instante está dizendo que é hora de fazer isso ou aquilo e que é hora de acabar com isso ou com aquilo.
O que consegui com este relógio é ficar sozinho. Entende?… O que vai entender!? Não quero dizer que fiquei sozinho no espaço: não. Isso vocês já conseguiram me largando nesse escritório. Fiquei sozinho no tempo, que era aquilo que buscava. Não sincronizo com ninguém, e menos ainda com você. Com meu relógio em branco e comigo passa aquilo que já estava dito nos versos de Martín Fierro:
El tiempo sigue sus giros
Y nosostros solitarios…
Há um momento pela manhã – quando o relógio me anuncia que são sete horas –, em que sincronizo com você, que deve ir para o trabalho. Porém quando me levanto já deixo de sincronizar porque fiquei sozinho, sem hora, apesar de meu relógio funcionar de modo exato. Meu relógio já não marca hora nenhuma: jamais me permite saber que hora é. E, sem dúvida, meu relógio nunca me deixa fora do tempo, como você acredita. Meu relógio marcha e, ao menos, eu estou no tempo embora não veja os ponteiros. Para você é como se fosse um relógio parado. Porém não está parado: funciona e funciona bem. Eu o escuto funcionando e sei que marca meu tempo. Às vezes fico observando-o e escutando-o. Tic tac, tic tac…, tic, tac… Não tem ponteiros, isso é verdade. Parece um relógio fantasma. É o único relógio que não foi cantado por aquele discreto poeta que por casualidade era filho de um relojoeiro. Porém este relógio sem ponteiros é definitivamente o que marca sua hora irrepreensível, sua hora que nunca erra sobre o desmesurado quadrante da Terra.
Este relógio fez você pensar que eu sou um biruta. Quem se guia por um relógio assim?… Porém, este é o relógio das horas em branco: dessas horas que não se apressam por mais que você esteja apressado e por mais que fale do novo ritmo dos tempos: dessas horas que você, obcecado por esse novo ritmo, pode, por acaso, jamais vir a conhecer. Entendeu, portanto, o que significa meu relógio sem ponteiros?… Não?… Tudo bem, não importa.”
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