Elogio do Verão
Por mais paradoxal que isto pareça, estou persuadido de que um dos grandes agentes de democratização social, no Mundo, tem sido o meu preguiçoso amigo Verão. Não conheço maior nivelador de classes – do que esta inefável estação do ano, em que , com um fervor crescente, a humanidade se despoja de todos os seus atributos hierárquicos e estéticos, desde o fato até ao sexo.
O Inverno é um aristocrata. Cria, pela tirania do conforto e do hábito, a distância que separa os homens. O Inverno é ainda hoje o casaco de peles, o colarinho engomado, a gravata, a peúga, o colete, o pudor. No Inverno a calça ainda persiste em ser a calça; a saia, ainda teima em ser a saia – dois estados aparte, duas hegemonias distintas. O Inverno ainda tem o vago preconceito da idade e da indumentária.
O Verão, a pouco e pouco, acabou com todas essas distinções subtis. Conheço um respeitável desembargador que, de Novembro a Julho, ninguém ousaria conceber na rua sem o seu fraque jurídico, o seu bigode grisalho, um par de polainas – e a vara da Justiça, inseparavelmente, na mão. Vi-o ontem, passeando tranquilamente, numa praia perto de Lisboa, de sandálias, joanetes à mostra, envolto num roupão azul e cor-de-rosa, a cabeça coberta por um turbante de banho – magnífico e familiar. Podia ser o senhor desembargador ou a senhora desembargadora. Esta confusão, que, com os primeiros frios, lhe seria afrontosa, é-lhe perfeitamente indiferente quando a aragem do Oceano o toca.
O calor iguala, na verdade, os homens. O Verão encaminha vertiginosamente a humanidade para a graça primitiva e inocente do Paraíso – antes da maçã. Estou mesmo em crer que foi o Inverno que inventou a maçã. Pelo menos é ele, com os seus velhos prejuízos plásticos e históricos, que a mantém naquela agradável categoria de fruto pecaminoso e feminino.
Quando Agosto, tórrido e luzidio, desce sobre a gente, é ver como todas as barreiras tradicionais se despenham, sob a acção implacável da Natureza. Uma a uma, caem todas as Bastilhas. Primeiro, a Bastilha do sapato; depois a ceroula, a saia, a camisa, o chapéu – outras tantas prisões inventadas para o suplício da espécie. Papá veste os calções do menino. Mamã enverga as calças do papá. A patroa veste, sorridente, a chita às ramagens da criada. A criada permite-se o pijama da patroa.
Liberto da meia e da pelica, o pé nu proclama a fraternidade humana. A humanidade descalça-se e declara a guerra à bota. E este singular exemplo de igualdade cria, por esses campos e por esses areais à borda de água, uma multidão polícroma e oftálmica, toda de óculos pretos, penugem à vela, ostentando uma epiderme variada, que vai do tom da torrada à tonalidade do sável frito – e em que as fronteiras que dantes separavam a infância da velhice, Adão e Eva, a avó e o neto, o luxo e a pobreza, a cidade e a praia, se diluem, como sombras. Uma juventude, nova e contagiosa, parece descer do céu – surpreendente encanto estival que o Sol trás à Terra, como um fruto de ouro.
Há anos, numa praia da França, ao apear-me numa estação do caminho-de-ferro, encontrei-me na frente de um conhecido príncipe, herdeiro de um grande trono da Europa – ao lado dum carregador da gare. Ambos vestiam as mesmas calças de ganga azul, a mesma camisola às riscas, as mesmas sandálias de couro e a mesma surda melancolia, entre o burburinho da chegada do comboio. Na precipitação da descida, confesso que me enganei. Só depois vi. Deus me perode, que tinha entregado as malas à Alteza veraneante e havia feito uma respeitosa reverência ao moço da bagagem. Temos de concordar em que essa confusão, que seria do pior gosto no Inverno, aparece perfeitamente natural, a banhos.
Por mim, considero este regresso à Natureza como uma das grandes experiências sociais do nosso tempo. É a vida que nos une. É a mentira que nos separa. Ainda não vi que os excelente camarada Verão fosse mais imoral do que o senhor Inverno, que é embiocado e triste, agressivo e distante. Pode essa promiscuidade física duma paisagem humana, despida de ilusões e de véus, sem sempre ter a correcção irrepreensível da beleza. O meu sesembargador não é talvez apolíneo, nem a graça da luz bronzeia somente Vénus, na sua rubra claridade.
Perdoemos, no entanto, o pecado da imperfeição pela lição de alegria, de graça e de cor que exalta os homens perante Deus e perante o Sol – feias ou lindas criaturas, costureiras ou duquesas, obesos ou magros, mas feitos do mesmo barro, talhados no mesmo par de calças, por detrás das mesmas lunetas esfumadas, nessa impávida aspiração, que dura três meses por ano, à folha de parra – a primeira e ainda hoje a mais ilustre de todas as folhas da criação.
Com o Outono caem as folhas – a da parra também. Outubro restitui-nos á casta, ao pergaminho, à própria personalidade. O meu desembargador, enfiando a toga, se encontrar na rua o seu roupão de Agosto, afastará dele os olhos, graves e indignados. A minha deliciosa vizinha de hoje, rósea e descalça, corta, às primeiras chuvas, as relações com as pantalonas brancas que lhe dão agora um ar, tão balouçado e exótico, de marujo.
A fantasia perde os seus direitos e a gravidade retoma os seus. O frio traz-nos a convenção e a rotina – e, com ele, desaparece dos nossos olhos aquele engano de alma, ledo e cego, e aquele desengano de corpos que a roupa não deixa durar muito.
O Verão é, certamente, a igualdade. O Inverno é a hierarquia. E desta proveitosa lição das estações uma curiosa moralidade parece resultar, na arrumação teórica dos sexos. Dir-se-ia, pelo que se vê, que se a igualdade que mais interessa à mulher é o direito de usar calças, a igualdade que mais interessa a Adão é a liberdade de não as usar.
Em todo o caso está provado que com um pacote de sol, quinze centímetros de flanela e des reis de sonho qualquer homem pode ser feliz. Louvado seja o nosso irmão o Verão, que no-lo ensina!
Augusto de Castro, in Viagem no meu Jardim, 1943
domingo, 14 de julho de 2013
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1 comentário:
À luz da democracia
todos vestimos de igual,
tendo por padrão moral
a mesma alfaiataria!
JCN
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