Do espólio no Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera. Circular nº 884, de 21 de Agosto de 1939. Emitida pela Secção de Instrução, Serviços Técnicos, Exploração, Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses.
Nela se ordena que, "para obter a maior uniformidade e exactidão nas horas marcadas pelos relógios das estações, a transmissão da hora oficial, nas estações da Antiga Rede dotadas de telefones selectores, passa a ser feita, a partir de 1 de Setembro próximo, do seguinte modo:
"A estação de Lisboa R [Rossio] deve transmitir ao meio dia, a hora oficial ao posto principal dos telefones selectores em Lisboa P [Santa Apolónia].
"O encarregado deste posto, logo que recebida a hora oficial, acerta o relógio do posto e faz a seguir uma chamada geral para todas as estações a que está ligado.
"Assegurado de que todas as estações se encontram presentes e esperando, se for necessário, que o relógio marque um número exacto de minutos, passará o seguinte telefonema:
"'Relógios, são tantas horas e tantos minutos'".
São ainda referidas na Circular as estações do Entroncamento, Barreiro e Campanhã.
Daqui se depreende que, pelo menos até 1939, os caminhos-de-ferro nacionais não possuiam um sistema de rede de tempo coordenado, ditado por um relógio-mãe, por rede eléctrica, a uma série de relógios-escravos, usando antes um esquema deveras primitivo de telefonemas de estação para estação.
Já nessa altura, tal como hoje, o emissor da hora oficial em Portugal era o Observatório Astronómico da Tapada da Ajuda, em Lisboa, pelo que se depreende que a estação do Rossio estava directamente ligada ao sinal horário do OAL, por via telegráfica ou linha eléctrica simples.
Relógio externo da estação do Rossio
Sobre os caminhos-de-ferro e a sua ligação com o Tempo:
No final de 1901, a Revista Encyclopedica constatava: “A
nossa hora oficial é a do meridiano de Lisboa (Observatório). Quando lá é
meio-dia, os relógios devem marcar meio-dia em todo o país. Este uso, de uma
nação adoptar a hora da sua capital, que outrora era seguido em toda a parte,
está hoje abandonado. Na Europa, cremos que só Portugal, a França e a Rússia é
que contam o tempo pelo relógio das suas capitais, sem se importarem com o uso
dos outros estados. A própria Espanha já hoje não acerta os seus relógios pela
hora de Madrid. Há meses que aderiu à convenção horária internacional, recebida
há anos friamente, mas que tende agora a universalizar-se”.
Como explicava há cem anos a Revista Encyclopedica, a Europa
estava então dividida em três zonas horárias: ocidental, central e oriental,
cada uma de 15 graus de longitude, ou, em tempo, de uma hora de extensão; a
primeira, que se tomava como zona unidade, estava dividida em duas partes
iguais pelo meridiano do Observatório de Greenwich – localidade nos arredores
de Londres. Convencionou-se que em cada zona se adoptasse uma hora uniforme – a
hora do meridiano que a dividia ao meio. “Na prática, modifica-se muitas vezes,
embora ligeiramente essa fórmula: em regra cada país usa a hora da zona em que
está situada a maior parte da sua área”, explicava a publicação.
“Salta aos olhos a utilidade de semelhante de semelhante
convenção para as relações internacionais”, defendia-se. “Quando se atravessa a
fronteira de um país de uma zona horária diferente, para acertar o relógio
basta adiantá-lo ou atrasá-lo uma hora, conforme se caminha para oriente ou
para ocidente. Resulta uma grande simplificação nos horários das linhas
internacionais de telegrafia e telefonia, dos caminhos-de-ferro e da marinha.
As vantagens são comparáveis às que provêem da uniformização do calendário, dos
sistemas de unidades de medidas, etc.”
Naquela altura, as nações da chamada zona ocidental da
Europa eram a Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Holanda, Bélgica e
Luxemburgo. A zona central abrangia a Itália, Suíça Alemanha, Áustria-Hungria,
Sérvia, Dinamarca, Suécia e Noruega. A zona oriental compreendia a Rússia,
Bulgária, Grécia e a parte europeia da Turquia. Assim, em sendo uma hora nos
países da Europa ocidental, eram duas horas nos da zona central e três nos da
oriental.
“O nosso país não aderiu a esta convenção. Não é decerto por
imitação do chauvinismo francês, nem do conservadorismo russo. Será antes para
ter a glória de possuir uma hora... nacional”, dizia em tom jocoso a Revista
Encyclopedica.
E, para quem entrava ou saía do país, para quem fazia
ligações telefónicas ou telegráficas de e para Portugal, a confusão era enorme:
quem seguia para Espanha tinha que adiantar o relógio 38 minutos e 3,5
segundos. Quem seguia de Espanha para França teria que avançar o relógio 9
minutos e 11 segundos. Na passagem da França para a Suíça, que adoptara a hora
universal, o avanço era de 50 minutos e 49 segundos. A Rússia conservava a hora
de São Petersburgo, que adiantava 2 horas, 4 minutos e 13 segundos em relação à
de Greenwich.
No número seguinte, (110) no correio dos leitores, a reacção
negativa não se fez esperar. Assinado “J.C.”, a carta dizia ser impossível a
divisão mundial em zonas horárias, “visto os países não estarem separados por
linhas de longitude e poder por isso um país (como acontece) pertencer a duas
zonas horárias”. A discussão pública foi-se arrastando, sem decisões.
Com o regicídio, em 1908, sobe ao trono, por morte de D.
Carlos, o filho, D. Manuel II. A rede de caminhos-de-ferro tinha-se
desenvolvido muito nos últimos 20 anos, as ligações internacionais por essa via
e através dos novos meios de telecomunicações iam pressionando cada vez mais
para que se fizesse a mudança horária.
Quanto à relojoaria nos caminhos-de-ferro, ela parece ter estado naturalmente presente desde os primórdios, tal era a identificação do novo meio de transporte com a medição do tempo e com a precisão. E Portugal não foi excepção. O historiador Gilberto Lopes, que se tem debruçado sobre a temática mais geral dos caminhos-de-ferro em Portugal, faz-nos notar que “uma estação vivia do seu conjunto, pré-estabelecido, com os seus espaços próprios e os seus objectos, onde não faltava o relógio”. Nos concursos internacionais que Portugal lançava para a construção de linhas e respectivas estações, desde o início que a relação com a França foi muito forte. E foram empresas francesas que ganharam essas empreitadas, “chave na mão”.
Não admira, pois, que os
grandes fornecedores de relógios das estações, quer para as frontarias, quer
para o seu interior, fossem relógios Paul Garnier. Relojoeiro mecânico da
Marinha de Guerra e dos Caminhos-de-Ferro Franceses, Garnier (1801-1869),
estabelecido na Rue Tailbout 16, em Paris, exportou grande parte da produção
para os caminhos-de-ferro ingleses, o que demonstra, desde logo a excelência
dos seus relógios. A casa Garnier foi comprada em 1933 pela Société Hatot,
propriedade de outro grande nome da relojoaria francesa, Léon Hatot. A partir
dos anos 30 e 40 do século XX, também a portuguesa A Boa Reguladora, de Vila
Nova de Famalicão, passou a abastecer com exemplares seus as estações
ferroviárias nacionais. Actualmente, é outra casa francesa, a Bodet, fundada em
1868 por um outro relojoeiro de renome, Paul Bodet, que equipa, com relógios
eléctricos, os exteriores e interiores das estações portuguesas, a exemplo do
que faz com a linha TGV em França.
O tempo ligado aos caminhos-de-ferro não se limitava ao
mobiliário urbano relojoeiro. Como nos salienta Gilberto Gomes, “desde o
início, o comboio foi interiorizado pelas populações como um meio de transporte
que andava sempre à hora, ao segundo, não se admitindo erros”. Esse tempo
ferroviário está graficamente expresso em Traçados de Marcha, mapas manualmente
elaborados, onde se torna visível o cruzamento (em tempo e em localização
greográfica) dos vários tipos de composições em circulação. Tudo isso é hoje
feito por computador.
O tempo dos comboios era também o das famílias dos seus
trabalhadores, nas estações, apeadeiros e passagens de nível. Ou o das
populações que viviam junto às linhas. Os ritmos diários eram marcados ao
despertar, “pelo comboio das sete”, ao almoço “pelo apitar do comboio da uma”,
no fim do dia, quando se ia dormir, “quando tinha passado o último comboio”.
Em 1910 ocorre a vitória eleitoral dos republicanos e a
Revolução triunfa em 5 de Outubro, com o exílio da família real. Extinguem-se
os títulos nobiliárquicos. A população portuguesa é, em 1911, de 5.547.708
habitantes. Apesar de todo um pacote legislativo eminentemente social, o novo
regime não consegue estancar o fluxo de emigrantes, que fogem da miséria e da
confusão instalada – uma média de 70 mil ao ano, que vai perdurar por pelo
menos uma década.
Foi preciso cair a Monarquia, mudar o regime, para que o
país adoptasse a Hora decretada pelo meridiano zero, o de Greenwich. A partir
de 1 de Janeiro de 1912, a chamada Hora Legal, em todo o território português,
fica subordinada a esse meridiano, segundo o princípio adoptado na Convenção de
Washington em 1884. A decisão tinha sido baseada no parecer de uma comissão de
que fizeram parte os já citados almirante José Nunes da Mata e engenheiro
militar Frederico Oom.
Por esse diploma legal, em que se considerou que a adopção
de tal princípio oferecia muitas vantagens, tanto no movimento internacional
dos comboios, como nos serviços telegráficos, nas relações marítimas e no
convívio científico do país com o estrangeiro, os relógios nacionais foram
adiantados de 36 minutos e 44,68 segundos. Além disso, permitiu-se e tornou-se
válido para todos os efeitos legais ou jurídicos, que se designassem pelos
números 13 a 23 as horas compreendidas entre o meio-dia e a meia-noite, suprimindo-se
assim, as designações “Tarde” e “Manhã” ou outras equivalentes, e que a
meia-noite se designasse por zero. Pelo mesmo diploma, desapareceu a diferença
existente de cinco minutos entre os relógios internos e externos das estações
ferroviárias.
“Estava-se no princípio do novo regime e muitas pessoas, em
oposição política, obstinaram-se em não cumprir o decreto, e ainda hoje se
encontra um ou outro relógio nessas condições”, afirmava em 1956 o investigador
Mário Costa, na já citada obra Duas curiosidades lisboetas...
Fosse qual fosse a hora que vigorava, desde 1903 que, por
lei, era o Real Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda) quem tinha
por missão o serviço de transmissão telegráfica da hora oficial às estações
semafóricas, que constituía na “transmissão diária dos sinais da pêndula média
para o Arsenal da Marinha e Escola Politécnica, a fim de promover a queda do
balão à uma hora precisa do tempo médio oficial”.
À Comissão da Hora Oficial, com sede na Escola Naval,
confirmaram-se por decreto-lei de 1915, os poderes de superintendência no
serviço do novo sinal horário, competindo ao Observatório da Ajuda “enviar
constantemente os sinais para a regulação do relógio público”.
Um decreto de 1924 dizia que os serviços radiotelegráficos
da Armada ficavam subordinados ao sinal horário dado pelo Posto
Radiotelegráfico de Monsanto.
Legislação de 1944 extinguiu o Serviço da Hora Legal e criou
a Comissão Permanente da Hora, à qual preside o director do Observatório
Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda), estando nele representados vários
serviços directamente interessados (incluindo a Emissora Nacional de
Radiodifusão), concedendo-se a essa comissão o direito de intervir em tudo
quanto se relacionasse com a determinação, conservação, difusão e fiscalização
da hora em Portugal. Para além de fixar a chamada Hora de Verão, a comissão
tinha que fiscalizar os relógios expostos nas vias públicas, estações de
caminhos-de-ferro, estações dos correios, aeroportos, estações marítimas e
outros locais públicos.
Fernando Correia de Oliveira, in História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003)
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