Preci, labori otioque est, homo, munus meum (no trabalho, na prece e no ócio, sempre a funcionar) ou ainda outra interpretação: (O meu mister é chamar o homem para rezar, trabalhar e descansar). A frase encontra-se por debaixo do mostrador do relógio de torre no pátio da entrada principal da Casa da Ínsua, Penalva do Castelo.
Dos recentes dias do Ephemera pelo Distrito de Viseu, já falámos
aqui. O programa incluiu uma visita à Casa da Ínsua, exploração agrícola hoje a cargo do grupo Visabeira e hotel administrado pela rede de Paradores. A visita do grupo de voluntários do Ephemera ao também conhecido como Solar dos Albuquerques foi guiada pelo Engenheiro José Luís Nogueira, quadro Visabeira, responsável por esta quinta barroca. Hoje, falemos sobretudo de relógios - mecânicos e de sol.
O exemplar mais curioso, incluído na obra Relógios de Sol, dos CTT, é este, do século XIX. Está na chamada Varanda do Tempo, e tem a inscrição
OMNES VULNERANT ULTIMA NECAT (Todas ferem, a última mata) - no sentido de “cada hora fere a nossa vida até que a derradeira a rouba”
Assinado E. DUCRETET & Cia - Paris, trata-se de um heliocronómetro, do tipo equatorial. Colocado sobre uma base móvel, pode assim ajustar-se à latitude do lugar. A sombra projectada no disco principal marca a hora do dia. Uma lente (a chamada alidade), colocada à distância de 15 cm do mostrador secundário, concentra a luz do sol e indica o dia do ano, segundo o calendário gregoriano. Nesse mostrador, em forma de língua, uma linha assinala os Equinócios, outra a meridiana do tempo verdadeiro. Estas duas linhas perpendiculares fazem a divisão das 4 Estações e indicam os meses do ano. A meridiana do tempo médio também está gravada, marcando a chamada Equaçâo do Tempo (a variação de mais 16 ou menos 14 minutos, ao longo do ano, na duração do dia de 24 horas). Tem a forma de uma espécie de 8, a que se chama Analema.
Este tipo de relógio de sol, bastante sofisticado, fabricado pelas oficinas de instrumentos de precisão de Eugene Ducretet e L. Lejeune, em Paris, serve também para ensinar noções de astronomia.
Eugène Ducretet
"Eugène Adrien Ducretet (1844-1915) foi um fabricante francês
de instrumentos científicos e aparelhos de precisão, recordado como um curioso impenitente, ávido de
descobrir e inovar. Foi ele quem, juntamente com Gustav Eiffel, esteve no topo da Torre Eiffel, protagonizando as primeiras experiências de Telegrafia Sem Fios. Foi no dia 5 de Novembro de 1898 e a
comunicação foi estabelecida com o Panteão a quatro quilómetros de distância. No ano seguinte
as ondas de TSF emitidas na Torre Eiffel atravessariam o Canal da Mancha pela primeira vez… Seria
este o pretexto que ajudaria Gustav Eiffel a salvar a sua torre, cuja desmontagem, após a Feira
Universal, estava programada desde a sua construção, em 1889. Um eficaz suporte para antenas era a
necessidade emergente para a qual a Torre dava a resposta e que permitiu que ela ali permanecesse,
chegando aos nossos dias e se tornando-se num dos locais mais visitados do mundo", faz notar José Luís Nogueira em apontamentos de 2009, ainda inéditos, sobre a Casa da Ínsua.
No piso térreo, na parede que integra o conjunto da Bica do Leão, outro relógio de sol, com cunha, para colocar o gnómon paralelo ao eixo da Terra. Peça de metal, com trabalho em relevo, dois leões rampantes, em posição central. Em latim, tem a inscrição Sine sole sileo (Sem Sol fico em Silêncio).
Próximo, aquilo que foi a base de uma meridiana - relógio de sol acoplado a uma pequena peça de artilharia, com lupa. Ao meio-dia solar verdadeiro - quando o Sol atinge o ponto mais alto no horizonte, o zénite - a lente fazia arder ua mecha, que por sua vez fazia disparar o canhão miniatura. Dessas peças, nada resta.
À saída do terraço, junto ao tanque dos cisnes, numa estátua de figura feminina (conhecida como "Senhora do Pópó), um pedestal com um relógio de sol com três quadrantes verticais, para assim poder “dar
horas” desde a aurora ao ocaso. A peça está fora do seu sítio original (e à sombra). Orientada, colocada em lugar soalheiro, voltaria à sua função.
Nas salas, alguns exemplares de caixa alta, não assinados, possivelmente peças do século XVIII, uma delas de Escola Inglesa.
Numa das salas, um interessante exemplar de mesa, com caixa de música. Seria interessante saber o(s) autor(es).
Diz-nos José Luís Nogueira, no já citado estudo inédito sobre a Ínsua: "Outro relógio marcante pela beleza e sofisticação, está
ainda hoje no seu posto, por cima da lareira do salão nobre. Máquina extremamente complexa, autêntica joia da relojoaria,
foi dotado de inúmeros funções e capacidades, uma das quais, sempre muito admirada por todos quantos com ele
conviviam, era a capacidade musical, com diferentes melodias para cada hora e cada ocasião. No entanto, o
relógio acabou por ficar mudo e dada a sua extrema complexidade assim ficou quase um século. Até que Luís, o
irmão de João Albuquerque, decidiu dar-lhe uma nova vida. Embalou-o e rumou, com ele, a Paris, onde fora
comprado. Na viagem de regresso de comboio, devia vir feliz com o relógio a seu lado, de novo com as todas as funções a funcionarem na plenitude. Porém, na chegada à estação de Mangualde, ao descer da carruagem, o
tão apreciado relógio caiu… e voltou a ficar mudo. Regressou ao seu posto, mas perdera de novo o pio e
silencioso continuou… até aos nossos dias!"
A máquina do relógio de torre com cujo mostrador iniciámos este post. Assinada Jérémie Girod. Um exemplar do século XIX, a bater horas e quartos. De um francês com loja ou oficina em La Coruña e no Porto. Sobre este Girod ver também
aqui.
Diz José Luís Nogueira: "A Casa da Ínsua ao longo dos tempos, tem sido palco de uma enorme
e rica variedade de relógios que, para além de marcarem as horas, são eles próprio uma marca do tempo. Na vertente dos relógios mecânicos, o relógio do campanário
é um bom exemplo de máquinas que vão sobrevivendo à passagem do tempo e à voragem do progresso e
continuam a afirmar a sua personalidade e utilidade. Da aparente singeleza da máquina, face à dimensão
dos pesos, até ao engenhoso sistema de ligação da máquina aos ponteiros, acabando no mostrador e na adenda de
uma acutilante frase em latim no seu suporte, é um dos pontos a admirar na passagem do tempo na Casa da Ínsua."
Quadro com o esquema de construção da torre sineira ou de relógio
"As fotografias antigas da sala dos retratos permitem-nos
perceber que, durante muitos anos, duas redomas, cada uma delas com um relógio de bolso com vistosas correntes de
ouro, permaneceram na mesa central em exposição.
Trata-se de relógios com história, pois foram, cada um
deles, oferta do rei a Francisco de Albuquerque e Castro (1635-1690), como reconhecimento dos serviços prestados e
demonstram a proximidade que manteve com cada um deles. O primeiro D. Afonso VI e o segundo D. Pedro II, que
se tornou rei depois de afastar o irmão. Francisco esteve na comitiva que trouxe D. Maria Francisca para
Portugal, que haveria de ser Rainha de Portugal por duas vezes, ao casar sucessivamente com os dois irmãos.
Francisco
soube atravessar com douta sabedoria, os graves conflitos entre os dois irmãos e foi muito apreciado por
ambos. Francisco de Albuquerque e Castro recebeu também a Comenda de S. Martinho de Chãs, na Ordem de Cristo, que se
manteve na Ínsua até a sua extinção", relata José Luís Nogueira no seu estudo ainda inédito.
Das notas do nosso anfitrião, retiramos:
"A Casa da Ínsua, ou Solar dos Albuquerques, é uma das mais
interessantes casas solarengas da Beira Alta. Foi mandada construir na segunda metade do séc. XVIII (cerca de
1780), por Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres (1739-1797), Fidalgo da Casa Real e, mais tarde,
Governador e Capitão-General do Estado de Mato Grosso, no Brasil.
"A casa é um edifício de fachada corrida e aberta para belos
jardins e a antiga vila de Castendo, hoje Penalva do Castelo, cuja autoria do projecto se atribui ao arquitecto
portuense José Francisco de Paiva, embora também seja provável que as directrizes gerais da obra tenham sido
elaborados no Brasil, pelo próprio Luís de Albuquerque e a sua equipa de técnicos, tendo o seu irmão João de
Albuquerque sido encarregue de as acompanhar.
[José Francisco de Paiva (1744 - 1824), foi um ensamblador e arquitecto do Porto. Terá feito caixas de relógios, em madeira, para a comunidade inglesa na cidade.]
"O jardim em frente da casa é de inspiração francesa, à Le
Nôtre, e divide-se em dois níveis, apresentando um traçado geométrico,
com os seus compactos buxos de formas singulares, podados em cornucópias, jarras e leques. As camélias, mais de quarenta variedades, que foram plantadas por volta de 1840, e as
roseiras, dão a este jardim uma alegria especial, juntamente com um
variado conjunto de flores, algumas das quais raras no nosso país, e
que apresentam cores diferentes ao longo do ano. No lago
central, entre Junho e Julho, florescem as flores de Lótus, cuja beleza se
pode admirar apenas durante um dia. O tanque do cisne é outra
chave de harmonia deste local."
Uma última história, relacionada com Tempo e Relógios, relatada nos apontamentos ainda inéditos de José Luís Nogueira:
"O cinto do guarda-nocturno ou a história do guarda que era guardado pelo cinto.
"No final do século XIX, princípios do século XX, quase não
havia terreno na povoação da Ínsua que não tivesse o marco da flor-de-lis a assinalar a propriedade da família
dos Albuquerques.
"Casa nobre e de grande riqueza, também nos muitos terrenos
de cultivo era preciso fazer guarda para evitar o desvio de produtos. E é assim que a Casa da Ínsua possuía o
seu próprio guarda-nocturno, a quem cabia essa função de vigilância e segurança. A tarefa não era fácil,
uma vez que, todas as noites, tinha que percorrer a totalidade da imensa propriedade.
"Para garantir que a vigilância era cumprida religiosamente e
controlar o desempenho do seu guarda-nocturno, João de Albuquerque, o último fidalgo da Ínsua, implementou um
sistema infalível. Nas suas rondas, o guarda-nocturno levava consigo um cinto, munido de um relógio com um
dispositivo especial.
"No seu interior, um mecanismo fazia rodar um rolo de papel
numerado, que avançava cada centímetro em predeterminado período de tempo e que tinha que ser marcado
em cada ponto de passagem do seu circuito prédefinido. Isto fazia com que o
guarda-nocturno tivesse que percorrer cada ponto específico da quinta num
período de tempo que lhe tinha sido atribuído.
"Para ter a certeza que o guarda-nocturno passava nesses
pontos dentro do tempo determinado, João de Albuquerque adoptou um outro sistema associado ao mecanismo
do relógio, que era constituído por pontos de controlo com chaves de formas diferentes, colocadas em
pontos nevrálgicos da quinta.
"Ao passar por cada um desses pontos, o guarda-nocturno tinha
que introduzir essa chave específica no relógio, que deixava uma impressão distinta no papel e, assim, comprovava
que tinha passado por ali na hora que o relógio do cinto marcava na cinta de papel que ia rodando
inexoravelmente.
"Só João de Albuquerque tinha acesso ao interior do relógio
e, conferindo as marcas deixadas nas diferentes numerações do papel, ficava a saber se as marcas das várias
chaves estavam feitas e dentro do período correcto.
"Diz-se também que João de Albuquerque era tão zeloso do
cumprimento das tarefas do guarda-nocturno, que conseguia controlar se este estava na casa ou não, através
de uma grelha que tinha no chão do seu próprio quarto."
Para saber mais sobre relógios de sol, vá aqui, aqui ou aqui.
O grupo
Ephemera, com o guia da visita, Engenheiro José Luís Nogueira
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