quarta-feira, 2 de julho de 2014
Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"
Leituras acidentais de um ocidental. Quinta crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Julho de 2004.
Fernando Correia de Oliveira*
De como se fez o Ocidente – I –
Numa altura em que a Europa se prepara para aprovar uma Constituição comum, algo de inédito na ordem jurídica internacional, e em que 99,9 por cento dos 450 milhões de cidadãos europeus não sabem nada sobre esse texto fundacional (e, mais grave do que isso, não quer saber); numa altura em que as elites se interrogam sobre se a herança cristã, partilhada pelos seus povos ao longo de séculos, lá fica referida, e de que modo; numa altura em que se redefinem os conceitos de Europa (até onde?) e de Ocidente (ainda existe?), talvez seja interessante saber como tudo começou. O que é (foi) a Europa? O que é (foi) o Ocidente?
Marc Bloch, fundador dos Annales, dizia: “A Europa nasceu quando o Império romano se desmoronou”. Outro historiador francês, Lucien Febvre, acrescentava: “Digamos antes que a Europa se torna uma possibilidade a partir do momento em que o Império se desintegra”. O mesmo autor dizia no curso que deu no Collège de France, em 1944-45 (L’Europe, Genèse d’une civilization): “Durante toda a Idade Média, a acção poderosa do cristianismo, fazendo passar sem cessar, por cima das fronteiras mal assimiladas de reinos caleidoscópicos, grandes correntes de civilização cristã desligada do solo, contribuiu para dar aos Ocidentais uma consciência comum, para além das fronteiras que os separavam, uma consciência que, laicizada a pouco e pouco, se tornou uma consciência europeia”.
Voltemos a Marc Bloch. No Congresso Internacional das Ciências Históricas, em Oslo, em 1928, faz uma comunicação onde diz: “O mundo europeu, enquanto europeu, é uma criação da Idade Média, que quase de um só golpe, rompeu a unidade, pelo menos relativa, da civilização mediterrânica e que misturou povos já romanizados com outros que Roma nunca tinha conquistado. Nasceu então a Europa no sentido humano do termo… E esse mundo europeu, assim definido, nunca mais deixou de ser percorrido por correntes comuns”.
Para continuar com historiadores franceses, Jacques le Goff, uma das maiores autoridades em Idade Média, lançou mais um livro sobre esta temática (1). Segundo ele, o papa Pio II (pontificado de 1458 a 1464) foi o primeiro a ter uma ideia clara da Europa. Em 1458 escreveu um texto intitulado Europa, seguido de outro em 1461, Asia. Esta relação mostra a importância do diálogo quase sempre dicotómico entre a Europa e a Ásia, sublinha le Goff.
“A noção de Europa sempre se opôs à noção de Ásia e, mais geralmente, de Oriente. O termo Ocidente pode assim designar um território que é essencialmente o da Europa”, diz le Goff. “Este uso do Ocidente […] foi reforçado no imaginário colectivo pela divisão da Cristandade entre Império bizantino e Cristandade Latina, correspondendo a um império do Oriente e a um Império do Ocidente. Esta é a grande divisão que a Idade Média produziu […]”.
A herança cultural da Europa começa, desde logo, pelo seu próprio nome. A Europa começou por ser um mito, um conceito geográfico. O mito faz nascer a Europa no Oriente. “É no polo mais antigo de civilização nascido nesse território que será a Europa que a palavra e a ideia aparecem: a mitologia grega”, diz le Goff. Mas é um conceito pedido emprestado ao Oriente. A palavra deriva de uma tradução, no século VIII A.C. de um termo semítico utilizado pelos marinheiros fenícios – o local onde o sol se põe. A Europa é a filha de Agenor, rei da Fenícia, o actual Líbano. Foi raptada por Zeus, rei dos deuses gregos, que se apaixonara por ela. Transformado em touro, ele levou-a à força para Creta, e dos seus amores nasceu Minos, rei civilizador e legislador. Os gregos dão então o nome de Europeus aos habitantes do extremo ocidental do continente asiático.
“O contraste entre Oriente e Ocidente (com o qual se confunde a Europa) incarna para os gregos o conflito fundamental das civilizações”, escreve le Goff. O célebre médico grego Hipócrates, que viveu entre os séculos V e IV A.C. opõe europeus e asiáticos à luz dos conflitos que opuseram as cidades gregas contra o Império persa e que são sem dúvida a primeira manifestação de antagonismo Ocidente-Oriente: as Guerras Médicas onde o David grego venceu em Maratona o Golias asiático.
Diz Hipócrates que os europeus são corajosos, guerreiros, belicosos, enquanto os asiáticos são sábios, cultivados, mas pacíficos. Os europeus amam a liberdade e estão dispostos a morrer por ela. O seu regime político preferido é a democracia, enquanto os asiáticos aceitam de bom grado a servidão, em troca da prosperidade e da tranquilidade.
Estes estereótipos perduram ao longo dos séculos e chegam a ser teorizados por Marx, no século XIX.
A Grécia antiga deixou assim uma dupla herança à Europa – a oposição ao Oriente, à Ásia, e o modelo democrático. À sociedade medieval, para além da herança grega, deve obviamente juntar-se a romana, muito mais vasta. Desde logo, a língua. Depois, as estradas, as leis, a organização territorial.
Uma terceira grande herança a transpor para a Idade Média, a Bíblia. “O Antigo Testamento, apesar dos fortes sentimentos anti-judeus, permanece até ao fim da Idade Média um dos elementos mais fortes e mais ricos, não apenas da religião, mas do conjunto da cultura medieval”, defende o historiador.
Preferindo antes falar em Antiguidade Tardia do que em Idade Média, le Goff diz que este período, uma transição longa, onde a Europa começa a aparecer, passa por uma cristianização do Império romano (395, reconhecimento como religião de Estado) e sua quase simultânea divisão em Império do Ocidente e Império do Oriente.
São Jerónimo (c. 347-420), Santo Agostinho (354-430), Boécio (484-520), Cassiodore (c. 490-580), Isidoro de Sevilha (c. 570-636), o papa Gregório o Grande (540-604) ou o Venerável Beda (673-736) são, segundo le Goff os pensadores da futura Europa medieval, criadores de uma superstrutura de pensamento que influenciou não apenas as comunidades religiosas, mas também os reis e nobres, os guerreiros e camponeses, dando-lhes formas comuns de pensamento.
Ao mesmo tempo, ocorria por toda a Europa uma fusão, uma mestiçagem entre bárbaros – celtas e germanos no essencial, com os latino-europeus. “O instrumento desta mestiçagem é o cristianismo”, recorda le Goff. Depois das heranças antigas, a cristianização é o segundo extracto decisivo da Europa. “Nesta grande mestiçagem, na origem do nascimento da Europa, afirma-se desde o início a dialéctica da unidade e da diversidade, da Cristandade e das nações, que é até aos nossos dias uma das características fundamentais da Europa”.
Já em 658, quando da morte da abadessa Gertrudes de Nivelles, perto da actual Bruxelas, se dizia, no livro recordando a sua vida, que ela “era bem conhecida de todos os habitantes da Europa”. Assim, as novas sociedades cristianizadas tinham, pelo menos no seu mundo clerical, o sentimento de pertença a um mundo bem definido e que dava pelo nome de Europa.
Essa identidade formou-se e consolidou-se contra dois pólos repulsivos: Bizâncio e o Islão. “O adversário ou o inimigo, criam a identidade”. Quanto a Bizâncio, a oposição é sobretudo religiosa, com o Oriente a rejeitar a autoridade do bispo de Roma, a ter a liturgia numa língua diferente do latim (o grego), e a rejeitar, a dado momento, as imagens como representação do sagrado (a crise da iconoclastia).
Quanto ao Islão, a confrontação é política e militar. Depois da morte de Maomé, em 632, os árabes e os convertidos ao Islão, os muçulmanos, conquistaram de forma muito rápida a península arábica, o Médio Oriente e a África do Norte, do Egipto ao Marrocos. Os berberes islamizados da África do Norte conquistaram praticamente toda a Península Ibérica entre 711 e 719. No início do século IX eles ocupam as antigas ilhas romanas da Córsega, Sardenha, Sicília e Creta. A Europa passa a ser feita com o peso das antigas periferias – celta, normanda, escandinava e eslava. O Mediterrâneo, de mar civilizacional comum do tempo do Império romano, passa a frente fundamental da reconquista cristã e das relações com os muçulmanos. A conquista muçulmana do Norte de África retira, para sempre, do mundo cristão uma zona que tinha sido tão importante nos tempos de Tertuliano e de Santo Agostinho.
O avanço muçulmano foi sustido na batalha de Poitiers, em 732. Os francos, comandados pelo seu rei, Cardos Martel, rechaçam o invasor e a sua religião. Foi a última invasão muçulmana ao norte dos Pirinéus e Poitiers torna-se nas crónicas cristãs como um acontecimento europeu, uma vitória do conjunto dos povos da Europa.
A Europa ruraliza-se, em contraste com um mundo fortemente urbanizado dos Romanos. Em lugar da urbe aparece a vila (o grande domínio rural). A economia monetária recua, aumentando a troca directa. O comércio de longa distância quase desaparece, com excepção de matérias indispensáveis, como o sal. “À cabeça das novas formações políticas aparecem os reis – detestados pelo mundo romano – e que não são mais do que os chefes de tribo”, recorda le Goff. E surgem ainda os bispos e monges. “Com os bispos, o Ocidente cristão divide-se em territórios que são, no essencial, as antigas divisões administrativas romanas. São as dioceses”.
Chegam os tempos da Europa feudal. Da cristalização de uma identidade que se vai digladiando entre si mas que, sobretudo, não deixa de se afirmar, em conjunto, contra o exterior – a dada altura, e apenas, o Islão. Disso falaremos a seguir.
1 – Jacques le Goff, L’Europe est-elle Née au Moyen Age?, Seuil, Outubro de 2003
*Jornalista e investigador
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