Tem causado alguma celeuma a substituição de sinos manuais por sistemas automatizados nos templos católicos de Jerusalém. Disso nos dá conta The Economist no seu último número.
O Império Otomano proibiu o som dos sinos na cidade até 1856. A partir de então, e por pressão do Ocidente, os sinos voltaram a ouvir-se, accionados por mão humana, e em competição entre si e com a voz dos muezzin...
Agora, e aparentemente por falta de mão de obra, a praga dos sinos electrificados, que varreu Portugal nas últimas três décadas, chegou também a Jerusalém. Fazendo frente às "modernices" católicas e ocidentais, resistem ilhas cristãs das igrejas arménias ou ortodoxa grega, por exemplo.
Segundo alguns observadores, com a electrificação do sistema de sinos, os católicos podem assim fazer frente, com mais eficácia, ao som das mesquitas - é que os muezzin também já não estão cinco vezes ao dia no cimo dos minaretes - sistemas automáticos, com potentes megafones, encarregam-se de o fazer por eles...
O sino, marcador de tempo e sinal de Ocidente
A propósito desta temática, recordamos um episódio relatado por Frei Pantaleão de Aveiro, e que incluímos em História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003):
[...] Atentemos, por exemplo, em frei Pantaleão de Aveiro (século XV, desconhece-se a data de nascimento e morte). Frade franciscano do Convento de Xabregas, viajou pela Europa, principalmente por Espanha, Itália, Grécia, Turquia e Palestina, tendo essa experiência sido relatada no seu Itinerário da Terra Santa. Fernando Campos inspirou-se na sua figura para escrever em 1986 o romance A Casa do Pó.
Frei Pantaleão sai de Portugal em 1563 em peregrinação à Terra Santa. Chegado a Jerusalém, ali permanece três anos. A primeira edição do Itinerário sai em 1593. (59) Falando de Jerusalém, o peregrino português diz: “Tem a cidade muitas mesquitas, as quais foram Igrejas de Cristãos, e ainda agora estão com suas torres, e campanários muito curiosos, que servem de ornamento à cidade, e a fazem mais lustrosa: e todas estas mesquitas têm seus cacifes, que vivem junto delas com suas mulheres, e filhos e alguns dias do ano as enchem de bandeiras e pendões, e as enrramam com grandes luminárias de noite. Estes cacifes com seus brados, nos servem de relógio, em especial de noite, digo à meia noite, porque os turcos, não nos permitem outros, posto que às escondidas temos relógio pequeno, que nos serve dentro de casa”.
Ora, se fosse ampulheta, frei Pantaleão não hesitaria em assim chamar o seu relógio. Também não seria relógio de sol, pelas mesmas razões. Este “relógio pequeno”, a expressão utilizada, deve referir já um relógio mecânico, de viajante, em contraposição aos “relógios grandes”, de torre, esses sim, muito divulgados desde há um século pela Europa cristã.
Não sabemos de quem era o tal relógio, se de Pantaleão se de algum dos seus companheiros de peregrinação (alguns vindos do norte da Europa). Mas arriscamos que, em 1563, este “relógio pequeno” devia tratar-se de um “ovo de Nuremberga”, assim chamado pela sua forma e pelo facto de ter sido inventado, por volta de 1500, por um relojoeiro alemão, Peter Henlein. Como já vimos, esses relógios terão sido introduzidos em Portugal, poucos anos depois, pela família Behaim, que também vinha de Nuremberga. [...]
Transcrevemos também aqui a crónica que escrevemos há uns anos para a revista Espiral do Tempo, sobre a temática dos sinos:
Os sinos e o silêncio
Se há denominador comum ao que se convencionou chamar de Ocidente, ele é o Sino. Objecto desde sempre ligado ao sagrado, o sino assume-se como “voz” do substrato cristão que, ainda durante o Império Romano, se vai estender até limites que hoje continuam a funcionar como fronteiras desse Ocidente: desde logo, a África, a sul; a Turquia e as planícies para lá dos Urais, a leste. Só na Ásia voltamos a encontrar os sinos como reguladores colectivos de ritmos e vivências.
O que é o sino? Acima de tudo, um marcador de tempo. De tempos, religiosos, primeiro. Usado entre as comunidades fechadas em mosteiros e conventos, foi desde cedo acoplado a torres de igreja. O seu som servia para regular, através de toques associados às Horas Canónicas, o dia normal de uma comunidade. Não apenas a comunidade de frades ou monges, mas também a comunidade de leigos que vivesse nas proximidades. Hora de levantar e de deitar, de rezar e comer. Em ocasiões especiais, o sino marcava com alarme as horas de aflição (incêndios, inundações, invasões) ou de pesar (enterros). Mas também de alegria (assinalando o final da Quaresma, o fim da Paixão).
Inicialmente, os sinos viveram sozinhos, pendurados em sítios altos, accionados de forma mais ou menos regular, e de forma manual, por religiosos que se orientavam por relógios de sol.
Depois, e não se sabe bem quando nem onde, apenas que terá sido no seio dessas comunidades religiosas em mosteiros e conventos, aos sinos foram sendo acoplados mecanismos que mediam o tempo – os relógios. Os primeiros relógios não têm mostrador. Servem para “bater” as horas e não para as “mostrar”.
Com o desenvolvimento da técnica, os sinos que davam apenas horas, passaram a dar meias horas e quartos, em tons diferentes. E, depois, começamos a falar de carrilhões, com os mecanismos de relojoaria a accionarem, a pedido ou automaticamente, melodias religiosas de louvor a Deus e ao panteão cristão.
Para que os sinos pudessem funcionar, passou a ser necessário que os relógios também funcionassem. E que alguém lhes desse regularmente corda. Com os tempos, o sacristão ou o monge foi-se tornando “bem escasso” e, hoje em dia, em praticamente todo o Ocidente, os mecanismos de dar corda dos relógios acoplados a sistemas de sinos estão automatizados, electrificados.
Em Portugal, onde esse problema também se colocou, os relógios e os sinos foram sendo deixados, no último meio século, ao mais feroz abandono.
Se olharmos para as torres das igrejas, os relógios estão parados e os sinos não cantam. Ou… as rodas dentadas estão paradas, mas os ponteiros até andam, os sinos não se movem mas até parecem tocar. Nos bastidores há um circuito de quartzo a fazer andar o relógio e o som que se ouve é debitado por um altifalante, fruto de um programa informático, onde dezenas de melodias se armazenam. Nem o relógio nem o som têm “alma”.
Em alguns casos, os relógios já desapareceram ou deixaram de estar umbilicalmente ligados (através de cabos, travessas e martelos) aos sinos, deixando estes sós, tristes, sem jeito ou função. É o Tempo que está parado.
Sobre o mesmo tema, escreveu Anselm Grün, OSB:
Os sinos conferem ao tempo uma característica muito própria. O mistério que está por detrás do tempo torna-se audível com o tocar dos sinos. [...] Não é o ritmo dos minutos, mas sim os sinos que caracterizam o tempo no mosteiro. Os sinos são um símbolo sagrado em todas as culturas e religiões. Simbolizam a relação entre o Céu e a Terra. Abrem o Céu sobre a Terra. Permitem que o eterno penetre no nosso tempo. Os sinos chamam para a oração. No entanto, o toque dos sinos também simboliza a harmonia cósmica. O Céu e a Terra são um só, através do seu toque conjunto. No repicar dos sinos exprimimos a nossa ânsia de que o tom divino encha este mundo e expulse dele tudo o que é ruído.
Anselm Grün, OSB (1945, Junkershausen, Alemanha), in Ao Ritmo do Tempo dos Monges
Ou ainda Mário Correia
Embora alguns missionários e determinados mosteiros beneditinos já utilizassem sinos no decurso dos séculos V e VI, a colocação de sinos nos templos cristãos foi decisivamente incrementada graças à acção nesse sentido desenvolvida pelo Papa Sabiniano que, por bula datada de 604, referenciada por Polidoro Virgílio (na sua obra De invfentionibus rerum) chegou mesmo a instituir o toque de sinos nas horas canónicas. Nesta bula decretava-se expressamente que os sinos dos mosteiros (no interior dos quais acabariam por se instalar oficinas e fundições, sobretudo nos pertencentes à Ordem Beneditina) deviam ser tangidos sete a oito vezes ao dia, ficando tais momentos a ser conhecidos como sendo as horas canónicas. [...] Estas horas canónicas correspondiam sobretudo a orações cantadas mas também a salmos, cânticos, hinos, lições, versetos e responsos. As horas canónicas significavam também, em plena Idade Média, pausas na jornada de trabalho dos monges (eram então os mosteiros os grandes impulsionadores da agricultura).
Mário Correia, in Toques de Sinos na Terra de Miranda (Âncora, 2012)
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