Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.
Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio "corre", que um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é sorridente (pelo sol que lhe está fora).
Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranha conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
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