Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

domingo, 21 de setembro de 2025

Meditações - podes dizer-me outra vez que nunca houve inverno, que este ano não há verão

Escreve sempre que precisares de me dizer

que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.

Os legumes que trouxe ontem

não sobrevivem a mais do que uma geada,

muito menos nós.

Escreve sempre que precisares, podes

dizer-me outra vez que nunca houve inverno,

que este ano não há verão,

que estamos aqui e não estamos porque não sabemos

se somos nós ou se somos aquelas

quatro pessoas que vão à rua agora,

encontraram a porta certa.

Escreve sempre que precisares, faz

uma lista de compras, uma lista de desejos,

anota todos os pedidos que deixaste

em poemas atrasados.

Escreve sempre que precisares

de mais um postal com selo e carimbo.

Escreve sempre que riscares

na tua agenda mais uma morada.

Sempre que eu precisar vais devolver-me

uma caligrafia rebuscada que não é a tua,

curvas a mais que não fazias na letra d.

Já não há desses manuscritos,

só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los

(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).

Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,

as frases podem desviar deixas decoradas,

repetidas como as mentiras,

demasiado gastas para serem inócuas.

Escreve em vez de costurares.

Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,

arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,

os cotovelos e as canelas

(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).

Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,

os meus soluços nessas curvas

a mais que não fazes na letra d:

as tuas linhas são rectas, verticais e justas,

as minhas letras são apenas caracteres.

Escreve sempre que puderes

só em vez de apenas,

recursos humanos em vez de

resíduos urbanos. Talvez sejamos mais

do que pessoas, temos tamanhos diferentes

e não servimos nos lugares que nos foram destinados.

Escreve sempre que precisares de uma porta

onde caibas,

nunca trago chaves comigo.


 

Margarida Ferra

 

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