AMA COMO A ESTRADA COMEÇA
CARTA / PREFÁCIO DE MÁRIO CESARINY PARA EURICO GONÇALVES
«Meu Caro Eurico Gonçalves:
Gostaria que estas linhas, que em primeiro lugar te são
dirigidas, pudessem funcionar como apresentação da tua exposição na Galeria S.
Mamede – não seria a primeira vez que publicavas uma carta no catálogo de uma
mostra tua – e constituíssem uma explicação e uma reparação, ainda que muito
sumárias, do silêncio em que, das duas ou três vezes em que foi necessário
falar de surrealismo e de surrealistas aqui, tive a tua pintura e a sua
exigência moral. Mas permitirás que, para começar, desfaça uma vez mais e último
o cadáver esquisito de quantos queriam ver em mim o director ou a nurse do
surrealismo em português.
Pode pôr-se em palavras mais bonitas: farol, barca-piloto,
lâmpada no relógio. Parece que era esse o voto de alguns que nunca chegarão a
saber (nunca quiseram sabê-lo) o que comi de treva muito escura, o que, a
propósito de barcas, vi ir a pique, ou o que, a propósito de horas iluminadas,
me falta em dias e em relógios de pulso. Depois de escassos meses de registo
ortodoxo, coincidentes com a formação e o princípio de desagregação do
"Grupo Surrealista de Lisboa" fui para o grande descanso de não ter
que assinar pela colectividade ou escrutar o horizonte com vistas ao abate de
árvores para os grupos. O que foi encontrado foi-o por acaso, na estrada, onde
por acaso também estávamos. Assim, alguma gente que era não passou, outra, que
passava, não era, outra, ainda, seria, mas poucochinho, um, enfim, era demais
para ser somente nós todos: o António Maria Lisboa, que tu nunca deixaste de
exaltar furando o silêncio que ainda hoje impera sobre a sua obra, citando-o em
entrevistas, em catálogos, e até em títulos de quadros teus.
Somando resumido: qual era, em 1954, ano do teu
aparecimento, com o Dante Júlio, na Galeria de Março, a situação do surrealismo
ou de surrealistas aqui? No que à pintura se refere, não temo afirmar que era o
pior do mundo. O brado inicial lançado por mim, pelo Alexandre O’ Neill, pelo
Moniz Pereira e pelo Domingues dera, nos pintores do "Grupo surrealista de
Lisboa", numa pintura completamente retrógrada, toda ela muito mais um
mudar de oficina do que invenção de um instrumento novo. A exposição em Janeiro
de 49, desse "Grupo surrealista de Lisboa" pertence realmente à
erupção perene de um surrealismo de má ocasião ante o qual faltam forças e
talvez razões para que se retire o made in surrealismus mas sobejam motivos
para que se anote o estado de vácuo insolvente em que rebola toda a academia.
Eram de certo escassos os meios de contacto, eram sem dúvida difíceis, em 47 e
48, em Lisboa, os itinerários pessoais em sincronia com as pontas de vanguarda,
surrealista ou outra, que ao tempo se gerava. Não havia como hoje um serviço de
críticos a telegrafar nem uma Fundação que, embora não possa obrigar a exceder,
sempre leva a pessoa a viajar. Mas isto não é mais do que deslocar a questão
para o campo da facilidade. Desde 45 que eram pintura surrealista no mundo a obra
de Arshile Gorki, de Victor Brauner, de Wifredo Lam, ao mesmo tempo que se
procedia (Breton procedia) a uma tomada de ponto que abria de par em par, se é
que alguma vez estiveram fechadas, as fronteiras da obra surrealista até um
Rauschenberg, a um Dine e à Pop arte (da Op não falemos porque já estava toda
em Man Ray e em Duchamp). A partir do exílio norte-americano de Breton foi
actividade incessante do criador do movimento surrealista a promoção do
surrealismo abstracto, da arte bruta, do informalismo, da pintura létrica,
gestual, Zen, concreta, neo-figurativa, neo-dada. E de tudo isto, que era a
época, e a vanguarda dela, há um grande sinal menos na obra dos pintores do
Grupo Surrealista. Porquê? Pergunta-lhes a eles, devem saber, ou pede ao teu irmão,
que é crítico destas coisas. Eu, à época, a única coisa que soube foi
afastar-me dali, no que encontrei excelente solidão e excelente companhia. E
queres ouvir o que logo aconteceu? Queres ouvir a melhor? A crítica encartada
logo se encarregou de proclamar tal pintura como o único surto bravo e
excelente do surrealismo aqui. Depois dele, nunca mais outorgou surrealismo a
ninguém, fechara a escola por ordem da direcção.
Tal era, meu caro Eurico Gonçalves, a situação, quando, em
54, quiseste que apresentasse a tua primeira mostra. Diante da sinceridade da
posição que assumias, o meu prefácio era mais do que reticente, era de uma
prudência de ave de pouco agoiro. "AMA COMO A ESTRADA COMEÇA",
dizia-te, e, nisso, a minha quase recusa em corroborar, quase um pedido a que
não corroborasses tu. Pois, ó angústia e miséria, a pintura que expunhas não se
me afigurava assim tão longe ou tão fora dos cânones que já haviam vitimado os pintores
do G.S. de Lisboa. Mais livre e inexperiente, com certeza, mas não eras também
mais isso em idade? Poderias salvar-te do mostrengo? Sim? Não? Quem o diria?
Talvez Paracelso: "não são os olhos que fazem o homem ver mas sim o homem
que faz com que os olhos vejam", pus também no catálogo, por ti, por mim,
por eles. Depois, perdi-te o rasto. Não antes, é verdade, depois de ter
conhecido os admiráveis poemas que escreveste e ilustraste em quatro cadernos
memoráveis que em qualquer país menos agrícola teriam visto a publicação.
Reencontrados, definira-se a liberdade da tua pintura, a
autenticidade da sua e tua posição. Li com espanto espantoso que em pleno
Agosto de 1968 te afirmavas surrealista. Perguntara-se: "Que influência do
surrealismo reconhece na sua obra e no seu modo de agir?" Resposta:
"Sou surrealista". Afirmativa realmente única em toda a panorâmica
nacional. A bem dizer, um monstro, numa época em que todo o parentesco com o
surrealismo (e pululam) é cuidadosamente envidraçado pelos próprios e desinfectado
pela crítica. Hoje (1970) a tua pintura afirma de forma entre nós talvez única,
a única fidelidade que Breton pedia aos que diziam seu o surreal: um
vanguardismo realmente expresso, realmente capaz de absorver e de, se
necessário, DESTITUIR toda a vanguarda anterior. Entendo aqui por vanguarda a
criação poética tão profundamente gerada na necessidade de transmitir o homem
de uma época, que reúne e ultrapassa todas as épocas. Não é negar a épocas, o
passado, não seria possível desfazermo-nos delas, é como arremessá-las para o
futuro. Gesto que a tua retrospectiva singularmente significa – seta atirada
para além do horizonte. Somente, e para honrarmos juntos, aqui e agora, o poeta
que não cansaste de querer a sós, peço-te licença para fechar estas linhas
iluminando-as com a citação que dele já fizeste num catálogo:
"A Seta já contém o alvo mas só percorre a seta aquele
que lhe conhece o alvo. Assim é de olhos fechados que o grande atirador
alveja".
(Teu Mário Cesariny)»
(CESARINY, Mário – “Carta / Prefácio” dirigida a Eurico
Gonçalves no catálogo da exposição retrospectiva “Eurico, 1950-1970”. Lisboa:
Galeria São Mamede, 1970)
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