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quarta-feira, 21 de abril de 2021

Meditações - à volta da metáfora sobre um relógio preguiçoso

Funcionalismo

Do ponto de vista que adotamos, do ponto de vista de uma análise da pragmática da investigação, a economia interna de um sistema é a noção abstrata que resume o comportamento conhecido de seus subsistemas ou a funcionalidade de suas partes. Suponhamos que nosso ponto de partida seja a consideração de uma máquina qualquer, de funcionamento puramente mecânico (como um relógio antigo), ou, se quisermos, elétrico (como um aparelho de rádio), ou ainda eletrônico (como uma calculadora de bolso). Suponhamos que nosso relógio de pêndulo, antigo e herdado de um antepassado, do avô de alguém, por exemplo, não marque mais as horas corretamente. Utilizando uma metáfora (e que, como dissemos, conterá um modelo), essa pessoa poderá então dizer: “Esse relógio é preguiçoso como meu avô, que o deixou para mim”. É claro que o termo “preguiçoso”, nesse caso, é utilizado metaforicamente. E a metáfora consiste na comparação do comportamento do relógio com o comportamento do avô que o deixou de herança. Esse último é um modelo para compreendermos o comportamento (o funcionamento defeituoso) do relógio. Mas é claro que essa comparação funcional entre o relógio e o avô não nos diz muito sobre o relógio ou, mais propriamente falando, sobre o que ocorre dentro dele. E podemos então desejar saber mais sobre a economia interna do relógio, e descobrir por que ele atrasa.

A metáfora utilizada é, obviamente, limitada, como é também qualquer modelo, qualquer teoria, qualquer conceito ou concepção das coisas, como é sempre todo o conhecimento humano. Ela nos convida a conhecer mais sobre o funcionamento do relógio, seu defeito ou deficiência, ao expressar que ele tem um comportamento comparável com aquele de seu antigo dono etc. O poder da metáfora está, portanto, em dizer um pouco e nos incitar a conhecer mais. Desejamos ir além da metáfora — dessa metáfora, desse modelo, embora possamos então recorrer a outros, para prosseguirmos na busca por conhecimento. O fato de abandonarmos a metáfora inicial, de caráter funcional, e partirmos para a busca de conhecimento sobre a economia interna do relógio em questão, não significa que não vamos mais recorrer a metáforas e modelos. Não. Ao contrário, provavelmente, na nova etapa da investigação, teremos também que elaborar modelos, e esses poderão ser expressos por meio de metáforas, se for o caso.

Consideremos então o relógio de pêndulo não mais como um indivíduo, uma máquina, mas como uma estrutura complexa, composta de subestruturas menores, isto é, as partes usuais dos relógios antigos desse tipo. Um exame atento do mecanismo interno poderá, por exemplo, revelar que o relógio atrasa porque determinada mola está com fadiga molecular. O relojoeiro que chegou a esse diagnóstico pode se expressar assim, de forma mais técnica, mas o dono do relógio poderá ainda dizer: “Essa mola se cansou e entregou os pontos, como meu avô, que me deu o relógio...” É claro que o verbo “cansar”, nesse caso, também é utilizado metaforicamente. E aqui é a velhice e o “cansaço” (de viver, digamos) do avô (que talvez já tenha falecido), que é modelo para entendermos o que ocorre com a mola do relógio. Mas, tecnicamente, o exame do relógio pelo relojoeiro indica que não é uma misteriosa economia interna do relógio que está afetada, mas que a funcionalidade interna do relógio está afetada pela deficiência de uma de suas peças ou subestruturas internas. E, assim, essa análise, mais uma vez, é apenas funcional. A economia interna do relógio é a coordenação de todos os seus subsistemas, todos eles de funcionamento de natureza puramente mecânica. O relógio não marca as horas correta (ou erradamente) porque possui (ou deixou de possuir plenamente) alguma capacidade temporal. E, em última instância, não há uma constituição íntima ou natureza do relógio a ser estudada, mas apenas sua economia interna como um tipo de funcionalidade de suas partes.

Contudo, o que podemos falar da fadiga molecular da mola de metal? Talvez ela tenha sido feita de latão, digamos, que não é um metal muito resistente à ação mecânica. E o próprio relojoeiro poderá então nos dizer: “Essa mola é de um metal mole e fraco. Vamos trocá-la por uma mola de aço”. Agora devemos então perguntar: os termos “mole” e “fraco” são utilizados ali como metáforas? Ou o que temos é um discurso literal das propriedades do latão de que é feita aquela mola? Um físico poderá nos dizer que, nesse caso, embora esse discurso seja um pouco ambíguo, os termos “mole” e “fraco” estão sendo utilizados mais como metáforas do que com significação literal.

Pois o que ocorre é, afinal, que o latão, assim como outros metais ou ligas metálicas, é feito de moléculas, átomos, partículas menores, e que o que estamos apontando como “fadiga molecular”, em última instância, também é mais uma metáfora, pois o que realmente ocorre é uma modificação nas interações das partículas etc. Assim, aquele pedaço de latão (a mola) também pode ser tratado como um sistema do qual desejamos conhecer a economia interna. A mola não ficou realmente “fraca”, nem o latão é um metal “mole”, que sofre realmente, mais rapidamente que outros metais, de “fadiga” molecular. Tudo isso são metáforas. E não conhecemos nada da natureza ou constituição íntima do latão, daquela mola, assim como não conhecemos nada da constituição íntima do relógio de que ela faz parte. O que ocorre é que estamos sempre passando para outros níveis de análise, níveis nos quais o que era um indivíduo no nível anterior passa a ser um sistema contendo subsistemas coordenados. E em todos esses casos, a metáfora é o convite para mudarmos de nível. Contudo, em todos eles, o que temos é apenas uma análise funcional das partes — a não ser que queiramos atribuir propriedades misteriosas às coisas.

É aceitável hoje o que acabamos de argumentar a respeito da economia interna de um relógio de pêndulo, ou de um aparelho elétrico, ou mesmo de um aparelho eletrônico, por mais sofisticado que ele possa ser. Todos esses artefatos são considerados apenas sistemas mais sofisticados, que contêm subsistemas, e cujo funcionamento ou funcionalidade se torna transparente por meio de nossas teorias sobre a natureza física do mundo. Além disso, estendemos mesmo aos seres vivos o mesmo ponto de vista, o que não era comum em meados do século XIX, quando já os artefatos mecânicos eram considerados sistemas da mesma forma como os encaramos hoje. Naquela época, muitos ainda defendiam o que se denominou vitalismo, uma doutrina antiga, segundo a qual os seres vivos não eram máquinas, mas dotados de certo princípio vital. Claude Bernard, o pai da fisiologia moderna a partir de meados do século XIX, foi um dos vencedores no combate às ideias vitalistas.10 Para ele, os seres vivos eram lugar de fenômenos vitais, fenômenos da organização, como ele dizia, mas não de propriedades vitais, isto é, de algo que diria respeito à constituição íntima das coisas vivas.

Luiz Henrique de Araújo Dutra 

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