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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Portugal na Grande Guerra de 1914-1918 - VIII (fim)


Fernando Pessoa

Durante o Verão de 1994 o jornal Público comprou os direitos de uma série do Le Monde, sobre os então 80 anos do conflito que foi a chamada Grande Guerra. Em complemento a este seriado, produzimos então um outro, respeitante a Portugal e ao seu protagonismo no conflito. Esse apêndice seria ainda em 1994 publicado também nos Cadernos Público na Escola. Este número esgotaria pouco depois. Iniciámos aqui, nos últimos dias a reprodução desses textos que então escrevemos. A série terminava com um artigo de Torcato Sepúlveda, então Editor de Cultura do Público e, entretanto, falecido. É também com ele que acabamos. E, como prometido, deixamos por fim a bibliografia consultada.


8. As contradições dos futuristas portugueses

Torcato Sepúlveda

Os futuristas portugueses (para o caso, os nomes que importam são Almada Negreiros e Fernando Pessoa) não tiveram uma posição clara sobre a I Guerra Mundial. Em “A Cena do Ódio”, de 1915, Almada mostra-se quase pacifista e insulta os militares. Em 1917, no “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”, aconselha a mocidade lusitana a construir uma pátria nova e para isso marchar para a guerra. Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Álvaro de Campos, tenta a síntese desta contradição, com um texto também ele contraditório, “Ultimatum”, de 1917. Os chefes militares europeus — franceses ou alemães — são maltratados porque só querem vencer os outros. Isto é, não são os chefes positivos que o fascismo futuro oferecerá à Europa e ao mundo.


Almada Negreiros em 1917

“Foi escrito durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915.” É este o aviso que José de Almada Negreiros, “poeta sensacionista e Narciso do Egipto”, colocou no início do poema “A Cena do Ódio”. A data não é inocente. A revolução de 14 de Maio de 1915 foi levada a cabo para acabar com a ditadura do general Pimenta de Castro. Ora, o Governo de Pimenta de Castro acarretara o abandono da política de intervenção na I Guerra Mundial... Porém, quando se esperaria que Almada — como discípulo que era dos futuristas italianos, nomeadamente de Marinetti, que cantavam a beleza das batalhas europeias — criticasse a passividade de parte da tropa portuguesa que (talvez por germanofilismo) pendia para uma posição neutralista que convinha à Alemanha, o futurista português ostenta uma atitude surpreendentemente pacifista, insultando os militares por o serem: “E tu também roberto fardado:/ Futrica-te espantalho engalonado,/ apeia-te das patas de barro,/ Larga a espada de matar/ e põe um penacho no rabo!” São versos capazes de fazer corar os defensores da “força” que os futuristas italianos eram.

É verdade que “A Cena do Ódio” começa de forma muito pouco máscula: “Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis,/ Divinizo-me Meretriz, ex-libris do Pecado.” Mas Almada — que não poupa políticos, literatos ou filósofos portugueses — insiste com malevolência na imbecilidade do ofício de matar: “Despe-te da farda,/ desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu/ que ficas desempregado!” E mais adiante: “Não dês língua aos teus canhões,/ nem ecos às pistolas,/ nem vozes às espingardas!/ — São coisas fora de moda!”

Dir-se-ia que Almada Negreiros está, em 1915, muito mais próximo do que viria a ser a actividade dissolvente e anárquica do dadaísmo do que do futurismo de que se reclamava: “Põe-te a fazer uma bomba/ que seja uma bomba tamanha/ que tenha dez raios da terra./ Põe-lhe a Europa inteira,/ os dois pólos e as Américas,/ A Palestina, a Grécia, o mapa/ e, por favor, Portugal!/ Acaba de vez com o planeta.”

“A pátria portuguesa do século XX”

Mas Almada nunca foi muito coerente. Em 14 de Abril de 1917, lia, em Lisboa, no Teatro República, o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”. O tom era já muito diferente. Preocupado com a desnacionalização do país, considerando que “Portugal quando não é um país de vadios é um país de amadores”, Almada preconiza a destruição do “nosso atavismo alcoólico e sebastianista”, a destruição sistemática de “todo o espírito pessimista, proveniente das inevitáveis desilusões das velhas civilizações do sentimentalismo”. Programa: criar “a pátria portuguesa do século XX”. Uma das medidas para atingir esta finalidade era a entrada na Guerra: “Ide buscar na guerra da Europa toda a força da nossa nova pátria. No ‘front’ está concentrada toda a Europa, portanto a Civilização actual.

A guerra serve para mostrar os fortes mas salva os fracos.

A guerra não é apenas a data histórica de uma nacionalidade; a guerra resolve plenamente toda a expressão da vida. 'A guerra é a grande experiência'.”

Este tom belicista, apoteose da força e dos vencedores, marca todo o “Ultimatum Futurista”. Ao ponto de a mulher, que com grande lirismo Almada cantará em alguns notáveis poemas, ser reduzida à “sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens”. Entre 1915 e 1917, Almada Negreiros evoluíra, portanto, de uma revolta estética e libertária para uma posição de oráculo da “pátria nova”: “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades.” Ecoa nesta última citação a invectiva de Sade aos franceses, convidando-os a um esforço para se tornarem republicanos. E talvez resida nesta ironia a explicação da evolução das posições de Almada. A geração nova do “Orpheu” desacreditara-se definitivamente das capacidades regeneradores de uma República maçónica, retórica e ultraparlamentar. Aliás, Almada refere-o no “Ultimatum Futurista”: “A missão da República portuguesa já estava cumprida desde antes de 5 de Outubro: mostrar a decadência da raça.”

O Triunfo Construtivo

Se Almada é contraditório quando se estabelece a comparação do poema “A Cena do Ódio”, de 1915, com o “Ultimatum Futurista”, de 1917, Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, é-o num único texto, “Ultimatum” — mais um —, publicado em 1917, na revista “Portugal Futurista”. Álvaro de Campos, à semelhança de Almada em “A Cena do Ódio”, insulta todos os líderes europeus, sejam eles políticos, literários, religiosos ou militares: “Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.” Mas (no caso da I Guerra) tanto critica os estrategos militares do momento — “Agora a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá” —, como exige o condutor de homens que suba acima da multidão e a guie, com um projecto positivo: “[A Europa] quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros.” Por isso, invectiva o “Lixo guerreiro-palavroso! Esterco Joffre-Hindenburguesco! Sentina europeia de Os Mesmos em cisão balofa!”

Para Pessoa—Campos, como para o Almada do “Ultimatum Futurista”, os comandantes militares da I Grande Guerra não eram chefes, caudilhos, mas apenas burocratas da arte de matar. Não que Pessoa e Almada fossem pacifistas, longe disso. Consideravam apenas que, visto, na opinião deles, ser necessário matar, que isso fosse feito em nome de um projecto de reformulação geral das pátrias e do mundo. “Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva”, escreve Almada no “Ultimatum Futurista”.

E Álvaro de Campos insiste: ”Quem acredita neles [nos generais]?/ Quem acredita nos outros?/ Façam a barba aos poilus!/ Descasquem o rebanho inteiro!/ Mandem isso tudo pra casa descascar batatas simbólicas!/ Lavem essa celha de mixórdia inconsciente!/ Atrelem uma locomotiva a essa guerra!/ Ponham uma coleira a isso e vão exibi-lo para a Austrália!”

Isto é: Almada e Pessoa não precisavam de guerra, nem de generais, mas de chefes. Os seus “Ultimatum” são manifestos pré-fascistas. Por isso Pessoa apoiará o “Presidente-Rei” Sidónio Pais e a ditadura militar saída do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926; Almada manterá com o Estado Novo relações mais do que ambíguas; e um amigo de ambos, António Ferro, será o braço direito de Salazar para a propaganda. E nenhum deles se ofereceu para lutar nos campos de batalha da Europa, como haviam feito os futuristas italianos Marinetti, Mario Sironi, Umberto Boccioni e Antonio Sant'Elia. Foram ficando pelo Chiado a escandalizar o lepidóptero...

O mesmo Pessoa que, em 2 de Setembro de 1914, escrevia a Armando Côrtes-Rodrigues: “Mau grado a alguma depressão, constante desde que lá fora ‘é guerra’, tenho passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias”, proclamava, no “Ultimatum” de 1917, “a criação científica dos super-homens”.

Foi o que se viu.

Bibliografia

Para os oito artigos da série “PORTUGAL NA GRANDE GUERRA DE 1914-1918” foram utilizadas as seguintes obras:

AA.VV., “A Obra de Salazar na Pasta das Finanças”, Edições SPN, Lisboa, 1941
AA.VV., “Dicionário de História de Portugal”, dirigido por Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1989
AA.VV., “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”
AA.VV., “Nova História de Portugal”, dirigida por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, volume XI, Editorial Presença, Lisboa, 1990
AA.VV., “The Cambridge Modern History”, University Press, Cambridge, 1934
Amaral, Ferreira do, “A Batalha do Lys”, Tipografia do Comércio, Lisboa, 1923
Antunes, José Freire, “A Cadeira de Sidónio ou a Memória do Presidencialismo”, Europa-América, Lisboa, 1981
Chagas, João, “Diário”, Rolim, Lisboa, 1986, prefácio de João B. Serra (4 vol.)
Costa, Gomes da, “A Batalha do Lys”, Renascença Portuguesa, Porto, 1920
Cruz, Francisco Manso Preto, “Paiva Couceiro, Político, Militar, Colonial”, edição do autor, Lisboa, 1944
Ferreira, José Medeiros, “O Comportamento Político dos Militares”, Editorial Estampa, Lisboa, 1992
Fraga, Luís Manuel Alves de, “Portugal e a I Grande Guerra, os objectivos políticos e o esboço da estratégia nacional, 1914-1916”, dissertação para obtenção do grau de Mestre em Estratégia, Lisboa, Universidade Técnica, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1990 Fraga, Luís Manuel Alves de, “Portugal na Grande Guerra, espionagem no CEP”, in “Portugal na Grande Guerra, Guerristas e Antiguerristas, Estudos e Documentos”, op. cit.
Gomes, Teixeira, “Correspondência”, Portugália, Lisboa, 1960 (2 vol.)
Gonçalves, José António Sequeira, “Guerristas e antiguerristas”, in “Portugal na Grande Guerra, Guerristas e Antiguerristas, Estudos e Documentos”, Centro de História da Universidade de Lisboa, apresentação de João Medina, INIC, Lisboa, 1986
Gonçalves, José António Sequeira, “Sidónio Pais e a participação portuguesa na Guerra de 1914-18”, tese de mestrado em História Contemporânea de Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, 1989
Jornal “O Século”, de 7 de Fevereiro e de 1 de Março de 1934
Marques, A. H. de Oliveira, “Guia de História da 1ª República Portuguesa”, Editorial Estampa, Lisboa, 1981
Marques, A. H. de Oliveira, “História de Portugal”, Ed. Palas, Lisboa, 1981
Medina, João, “Morte e Transfiguração de Sidónio Pais”, Edições Cosmos, Lisboa, 1994
Mónica, Maria Filomena, “Fátima fora de horas”, artigo no jornal “O Independente”, 12 de Agosto 1994
Negreiros, José de Almada, “Obras Completas”, Vol. I — Poesia, INCM, Lisboa, 1990
Negreiros, José de Almada, “Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX”, in “Portugal Futurista”, Contexto, Lisboa, 1990
Pessoa, Fernando, “Ultimatum” de Álvaro de Campos, in “Portugal Futurista”, op. cit.
Ribeiro, Aquilino, “É a Guerra”, Bertrand, Lisboa, 1975
Santos, Maria Manuela Lima e Ribeiro, Olga Maria Vasco, “‘A Aurora’ e o antiguerrismo (1914-18)”, in “Portugal na Grande Guerra, Guerristas e Antiguerristas, Estudos e Documentos”, op. cit.
Serrão, Joaquim Veríssimo, “História de Portugal”, volume XI, Editorial Verbo, Lisboa, 1989
Telo, António, “A República e as Forças Armadas”, in “História de Portugal, dos tempos pré-históricos aos nossos dias”, volume XI, dirigida por João Medina, Ediclube, Amadora, 1993
Valente, Vasco Pulido, “Revoluções: A ‘República Velha’ (ensaio de interpretação política)”, Análise Social, vol. XXVII, 1992
Valente, Vasco Pulido, “Tentar Perceber”, INCM, Lisboa, 1983

Para aceder ao primeiro artigo da série, vá aqui; ao segundo, aqui; ao terceiro, aqui; ao quarto, aqui; ao quinto, aqui; ao sexto, aqui; ao sétimo, aqui.

1 comentário:

João de Castro Nunes disse...


Nunca Pessoa acertou
em coisa alguma que disse,
pois sempre se contradisse
em tudo que imaginou!

JCN