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sábado, 30 de agosto de 2014

Há dez anos... ensaio de 2004 sobre o Tempo, na Internacional Horas & Relógios I


Acertando a hora pela rádio, gravura de 1914 (arquivo Fernando Correia de Oliveira)

Há dez anos, iniciávamos na revista Internacional Horas & Relógios uma série de ensaios sobre o Tempo e as várias noções que temos dele. Eis a primeira.

Enigmas do tempo

O rio da consciência

“O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é o rio que me transporta, mas eu sou o rio...”. Na sua linguagem poética e ao mesmo tempo retratando uma realidade circular bem ao seu gosto, Jorge Luís Borges define assim esse grande enigma que, aparentemente, todos sentem, mas ninguém sabe muito bem explicar.

Há até mesmo quem negue a existência do tempo. O físico britânico Julian Barbour deu voz a um grupo de cientistas que assim pensa, tendo publicado no final de 1999 um livro, O Fim do Tempo, em que teoriza sobre essa inexistência. Uma das “provas” sobre a existência do tempo é o facto de a nossa consciência nos dar a ideia de movimento, de passado, presente, futuro, num fluxo contínuo, num único sentido.

Porém, afiança Barbour, “nós sabemos que o cérebro quase sempre nos engana. Quando assistimos a um filme, imagens paradas estão a ser projectadas a uma determinada velocidade na tela, e nós vemos apenas um movimento contínuo e não quadro sobre quadro”. Ora, isso é uma completa ilusão, que funciona muito bem. “Acredito que aconteça o mesmo quando o nosso cérebro faz com que vejamos movimento. Entre milhões de imagens registadas no nosso cérebro, ele organiza-as de forma a fazer passar a ideia de movimento”.

Se um dia se provasse que o tempo não existe, que é uma ilusão provocada pelo rio da nossa consciência, qual seria o impacto para a humanidade? “Copérnico, ao descobrir que a Terra não era o centro do Universo, não tinha ideia sobre o que viria depois dele, sobre o que Galileu e Einstein realizaram com base na sua revolução”, nota Barbour. “A teoria sobre a inexistência do tempo pode provocar uma revolução ainda maior nas mentalidades. O problema é que estamos tão acostumados ao tempo que nem sequer paramos para pensar sobre isso”.

Se a ciência (ou mais a filosofia) “matassem” o tempo, o que seria então feito do passado? Barbour afiança: “Seria tão real como agora. O nosso corpo, por exemplo, passa por biliões de pequenas modificações em apenas um segundo. Biliões e biliões de glóbulos vermelhos são criados e destruídos. No fundo, somos pessoas diferentes a cada instante e a nossa consciência faz parte disso”. Já Camões dizia que “o mundo é composto de mudança”...

E a questão da percepção do devir contínuo do tempo? “Cada momento vem com uma gama de possibilidades de experiências e não se pode dizer que uma experiência vem antes da outra”, defende Barbour naquela que será a parte mais controversa da sua teoria. “Esse é o problema da unidireccionalidade do tempo, parece que há uma cronologia, uma impressão tão instintiva e consistente que acreditamos na linha do tempo. Mas uma história pode ser arranjada para parecer cronológica. Algumas mudanças nessa estrutura não deixariam a mesma impressão de continuidade. O cerne da minha teoria questiona isso, porque aprendemos apenas as informações que parecem dar a noção cronológica? É um mecanismo poderoso que resulta da nossa experiência. A minha explicação é a de que apenas os momentos que fazem algum sentido lógico são escolhidos pela mente”.

Por outras palavras, a mente escolhe um “momento” entre muitos, encadeia-o com outros, entre muitos, mas nesse processo há muitos “momentos” ignorados. Onde param esses “momentos” rejeitados pelo rio da consciência?

“Isso é um grande mistério”, reconhece Barbour. “A física de Newton é a forma como entendemos o tempo. Como se houvesse um fluxo na história. Já a física quântica não nos fornece essa imagem, pelo contrário, diz que há várias possibilidades ao mesmo tempo – um objecto pode estar em vários lugares ao mesmo tempo e vários objectos podem estar num único lugar ao mesmo tempo”. Aplicada a todo o Universo, avança Barbour, essa teoria possibilita a existência de vários “agoras” num único e mesmo instante. “O que a física quântica diz é que há várias versões de cada um de nós por toda a parte. No mundo quântico, ocorrem em cada um de nós biliões de coisas a cada momento, mas haverá sempre um outro, no qual cada um de nós nunca entrará. Somos prisioneiros do agora em que vivemos”, defende.

Mesmo perante provas directas da aparente existência do tempo – o envelhecimento, as memórias, o movimento, a própria contagem do tempo (em unidades cada vez mais pequenas e precisas, tornando-o afinal numa das “realidades” mais mensuráveis), Barbour e os adeptos da sua teoria avançam: “O fenómeno está correcto, mas a explicação errada. Pela minha noção de tempo, a explicação deveria ser outra”.

Para o comum dos humanos, seja o tempo o que for objectivamente, ele possui três propriedades inalienáveis.

Primeiro, é irreversível: a ligação das suas partes, ou a ordem da sua sucessão, não pode ser alterada; o tempo passado não volta. Segundo Kant, a razão dessa propriedade é encontrada na aplicação ao tempo do princípio da causalidade. Segundo ele, como as partes que compõem o tempo estão ligadas entre si pela relação entre causa e efeito, sendo a causa na sua essência antecedente do seu efeito, é impossível reverter essa relação. Segundo os escolásticos, esta imutabilidade baseia-se na natureza intrínseca do movimento concreto, em que uma parte é essencialmente anterior à outra.

A segunda característica, o tempo é a medida dos acontecimentos neste mundo, tal como o vemos. Isto levanta um problema teórico, que até agora não foi resolvido. O tempo pode ser uma medida permanente apenas se ele se fizer sentir num movimento uniforme. Mas, para saber da uniformidade de um movimento, precisamos de saber não apenas o espaço percorrido, mas a velocidade a que se realiza, ou seja, o tempo. E assim se entra num ciclo vicioso.

A terceira característica, para aqueles que vêem o tempo em movimento, é a de que tanto o tempo como o movimento são infinitos, ou seja, não tiveram início, não terão fim. Aqui, entramos mais no campo da religião do que da física.

Mas nem todos nós vemos o tempo da mesma maneira.

Muitas vezes, é através de casos extremos de consciências alteradas (por malformações congénitas ou, mais habitualmente, por acidentes que afectam partes do cérebro) que a Ciência tem avançado na compreensão das leituras que o ser humano faz do que chama realidade.

Psiquiatras, psicólogos, neurocirurgiões, entre eles os portugueses Ana e António Damásio, usam essas excepções para melhor compreenderem o senso comum. Um dos mais conhecidos divulgadores, o neurologista norte-americano Oliver Sacks tem publicado regularmente relatos de consciências alteradas, de seres humanos para quem o filme projectado na tela das respectivas consciências corre a velocidades diferentes do normal. Logo, o tempo desses homens e mulheres é diferente. Há, relata Sacks, casos de gente que não tem passado, já que não o recorda minimamente, vivendo apenas um presente muito efémero. Há os que vêem uma realidade parada um ou dois minutos, e que depois a retomam, num ponto do “rio da consciência” muito mais à frente. Para estes últimos, não há um devir contínuo do tempo. Estes casos clínicos parecem dar razão a Barbour: o tempo é uma explicação “lógica” engendrada pelo cérebro e não necessariamente uma realidade exterior ao Homem.

Ainda se tem que avançar muito na compreensão dos mecanismos cerebrais, nomeadamente em saber como o cérebro interpreta “quadros” sucessivos que vai “vendo”, transformando-os, em fracções de segundo, na sensação de devir contínuo, como uma máquina de projecção de um filme.

“Seja qual for o mecanismo, a fusão de discretos quadros visuais ou momentos é um pré-requesito para a continuidade, a fluidez, a consciência do movimento”, diz Sacks. “Tal consciência dinâmica terá provavelmente aparecido primeiro nos répteis, há 250 milhões de anos. Parece provável que um tal rio de consciência não exista num anfíbio, como um sapo, que não mostra nem atenção activa, nem um seguimento visual dos acontecimentos. O sapo não tem um mundo visual ou uma consciência visual tal como os conhecemos, possui apenas uma mera habilidade automática de reconhecer um objecto com a forma de um insecto que entre no seu campo visual, e de disparar a língua em resposta. Há mesmo quem diga que a visão do sapo é, com efeito, nada mais do que um mecanismo apanha-moscas”.

Será então o rio da nossa consciência apenas um mecanismo cinematográfico?

Sacks recorda que há elementos exógenos que parecem ajudar casos clínicos de “congelamento no tempo”. A música é um deles. “Ela parece ser capaz de actuar como uma espécie de modelo ou forma predefinida para que pacientes que tenham perdido as noções de tempo e movimento as possam recuperar. Assim, um doente de Parkinson, no meio de um espasmo, poderá mover-se de novo quando ouve música. Na verdade, muitos deles podem ser totalmente incapazes de andar, mas estar perfeitamente aptos para dançar”.

Os neurologistas usam aqui intuitivamente termos musicais, e falam do Parkinson como uma “gaguez cinética” ou do movimento normal como uma “melodia cinética”. Sacks cita William Harvey, que escrevia em 1627, referindo-se ao movimento animal como “a música silenciosa do corpo”. Sem esse movimento, em aparência ou na realidade, deixa de haver a noção de tempo.

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