No emprego da minha mãe havia máquinas de escrever. Era o Sr. Vasco quem eu via escrever à máquina. O emprego da minha mãe, quando eu tinha 15 anos, em 1975, era no Instituto Botânico da Faculdade de Ciências, a um canto do Jardim Botânico, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa. Uma máquina de escrever, como uma escada em caracol, um monta-cargas e uma máquina para afiar lápis (tudo coisas que existiam no emprego da minha mãe), era, para mim, um objecto sagrado. E eu, é claro, não sabia escrever à máquina.
A minha mãe dizia-me que sabia escrever com dois dedos, mas não me iniciou. Para a minha mãe, eu devia aprender a escrever com os dedos todos desde o começo, para não ganhar maus hábitos. Nunca vi a minha mãe a escrever à máquina.
Aos 15 anos, em 1975, o meu pai deu-me um relógio de pulso Omega e a minha mãe uma máquina de escrever Brother. O relógio foi comprado numa ourivesaria na Praça da Figueira. A Brother foi comprada, para ficar mais barato, a uma colega da minha mãe. Foram as prendas dos meus pais por eu ter feito o 5.º ano. O meu pai deu-me de facto uma prenda. A minha mãe não porque achava que estudar e ter boas notas era o meu dever. Aliás a minha mãe dava-me prendas todos os dias.
Fui para a escola Sight and Sound aprender a escrever à máquina por método audiovisual. Era suposto sair de lá a escrever a altas velocidades, com os dedos todos e sem olhar para o teclado. Foi uma tortura. Saí de lá sem saber meter uma folha na máquina. Só passados dez anos me atrevi a olhar para o teclado e a escrever com dois dedos, como a minha mãe. Pedi um certificado da escola Sight and Sound a garantir que sabia escrever à máquina a x letras por y segundos. Ainda o devo ter. As minhas primas também andaram na escola Sight and Sound e uma amiga delas, a Becas, salvo erro, também andou. E a escola ainda existe, parece-me. Pelo menos o letreiro continua lá. Na Duque de Ávila, ao lado do restaurante A Colina.
Eu ia de táxi da escola Sight and Sound para o Instituto Francês porque não tinha tempo de ir de autocarro. O Instituto Francês funcionava no Liceu Francês, nas Amoreiras. Pelo caminho pensava que podia comer um Toffee Crispy. Mas na primeira viagem, meti a embalagem vazia do chocolate, depois de bem amarfanhada, no cinzeiro da porta do táxi. O taxista ficou furioso e só descansou quando me viu deitar pela janela fora o papel do chocolate. Nunca mais me atrevi a comer nos táxis.
Na Brother, escrevia cartas para a Meadela, um lugarejo ao pé de Viana do Castelo, onde as minhas vizinhas e falsas amigas Botelhos passavam o Verão. As Botelhos, calculo eu, deviam rir a bom rir da minha dactilografia. Deviam achar-me completamente doida ou atrasada mental.
Porque o resultado das minhas habilidades eram cartas a preto e encarnado, aleatoriamente (a fita da máquina era bicolor), invariavelmente cheias de erros, sempre batidas com o maior nervosismo, uma letra acima e outra abaixo, mas sempre sem olhar para o teclado. As Botelhos, calculo eu, tinham aprendido a escrever à máquina com o pai delas, chefe de repartição de Finanças e dono de uma máquina de escrever pesada. Mandavam-me cartas de resposta numa dactilografia irrepreensível como quem diz “Vê como és burra e nós somos inteligentes” ou antes “Vê como és burra e nós somos gente” porque as Botelhos eram nazis.
A minha mãe achava que para tudo na vida era preciso um curso, altas classificações e certificados. As Botelhos eram uma espertalhonas. Mais tarde, quando já tinha passado centenas de poemas na Brother, troquei-a por uma Olympia semi-portátil e paguei mais 20 contos.
Arrependo-me imenso de o ter feito. Na loja disseram-me que aquela Brother era uma máquina tão má que só servia para escrever “uma cartita” e que “agora só para peças”. Achei que era a minha mãe que eu estava a entregar para ser desfeita em peças e refeita em mãe Botelho, criatura cheia de jogo. Apta para a vida. Isto é, para a vidinha. O meu pai disse logo à minha mãe “Também podias ter comprado uma coisa melhor”.
O outro choque foi quando a minha mãe me disse para ir ao Maury, que ela considerava um bom relojoeiro, substituir a pulseira do Omega que entretanto se tinha rompido. O empregado do Maury olhou com desdém para mim e para o Omega da Praça da Figueira e disse “custou-lhe menos o relógio do que vai custar a pulseira” e “quando o comprou deu por ele z”. Sendo z uma quantia baixíssima. Mas ainda hoje tenho o Omega e continua a regular bem. A minha mãe morreu. O Sr. Vasco morreu. O meu pai, graças a Deus, está vivo, Das Botelhos tenho às vezes notícias. Da Brother tenho imensas saudades. Acho que vou comprar uma Brother.
Adília Lopes, escritora portuguesa contemporânea, in Crónicas da vaca fria, na Pública, Domingo, 25 de Março de 2001
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