Primeira parte de um artigo de António Piedade, escrito no boletim da AJC - Associação Juvenil de Ciência, o Ciência J, e agora citado no blog De Rerum Natura:
Podemos supor que a espécie humana terá começado a percepcionar uma sensação de Tempo, através da observação de coincidências, de fenómenos aparentemente sucedâneos uns dos outros, independentemente de estabelecerem ou não relações causais entre si.
A sucessão continua de períodos de iluminação solar (dia) com períodos de sua ausência (noite) num mesmo determinado ponto terrestre é anterior ao surgimento da vida no próprio planeta Terra. Assim, a vida evoluiu com a alternância de períodos com e sem exposição solar.
Sabemos que as células, eucarióticas e procarióticas, possuem vias de sinalização cíclicas, oscilantes numa dada relação de concentrações, ritmadas por períodos de 24 horas. A actividade metabólica celular parece estar sincronizada com a rotação da Terra, e podemos “imaginar” vagas de concentração de metabolitos a oscilar em gradientes citoplasmáticos, aromas de actividade no mar interior.
Com o aumento de complexidade, com a invenção da multicelularidade, a incorporação de períodos de actividade ritmados e sincronizados com o envolvente, também ele alterado pela maior ou menor exposição solar, poderá ter influenciado a força motriz evolutiva, conferindo uma melhor adaptação ao seres que ritualizavam moléculas com o tempo.
A repetição de fenómenos e a coincidência da repetição do par dia/noite poderão ter permitido uma inclusão de padrões de intervalo de tempo, e da sua duração, na evolução sensorial das espécies.
Neste fluir podemos dizer que a sinalização biomolecular de intervalo de tempo é profundamente intrínseca a toda a vida e, claro está, ao ser humano.
Voltamos à questão inicial: há quanto tempo, nós, humanos, medimos o tempo?
A repetição de fenómenos de observação astronómica terá sido o molde para os padrões de repetição que levaram a progressiva cultura humana a registar as coincidências, os padrões, as repetições. A associação com as necessidades básicas da sua própria vida e sobrevivência terão forjado culturas primevas que ritualizavam, não um aumento na concentração de uma biomolécula, mas já o aumento progressivo da claridade a partir daquilo que hoje designamos por solstício de inverno, por exemplo.
Enquanto a espécie humana estava fundamentalmente dedicada à pastorícia, à agricultura e à pesca, digamos que há cerca de 8 mil anos atrás, ser-lhe-ia suficiente ter meios e a capacidade de prever a sucessão das estações e a variação da duração do dia ao longo do ano.
São testemunhos os inúmeros monumentos megalíticos, supostamente com fins astronómicos, espalhados pelo planeta há pelo menos 5000 anos. Representam a importância do registo das coincidências celestes. Pressupunham populações sedentárias, pelo menos sazonalmente, uma vez que não foram concebidos para serem movíveis!
Mas a mobilidade migratória humana, também ela oscilante, terá mobilizado o engenho para registos do Tempo móveis. Para além dos relógios de sol, que a sombra do próprio permitia medir o tempo ao andar, talvez possa ainda ser exemplo o enigmático disco de Nebra com pelo menos 3600 anos terrestres (foi enterrado há esse tempo).
Com a urbanização da humanidade e com a necessidade de viajar entre povoações, para um qualquer fim mesmo que fosse o desconhecido, o medir o Tempo passou a ter outra dimensão e importância. Importância na precisão da contagem de períodos de tempo iguais. Se dantes mais dia, menos dia não fazia grande diferença no passar das estações, o intensificar das trocas e viagens entre urbes instalou a necessidade de registos do tempo mais precisos.
E com a introdução da grandeza Tempo na explicação dos fenómenos, da natureza, do universo, imprecisões na sua medição por dois indivíduos diferentes retornava em observações menos compatíveis, mais ambíguas de uma certa realidade.
E Galileu observou e identificou a coincidência regular com que o pêndulo oscilava em torno de uma determinada posição e isso permitiu a invenção do relógio com mecanismo de pêndulo. Introduziu uma nova maneira, mais precisa, de domesticar os intervalos de Tempo.
De referir também a necessidade de instrumentação de medição ou contagem do Tempo para a exploração terrestre e, de forma muito crítica, para a navegação marítima. Se a observação solar e de outros astros servia de referência para a deslocação em latitude, a viagem para Este e Oeste, ou seja para longitudes diferentes, obrigava a instrumentação de medição de Tempo que não dependessem do utilizador nem do local. E isso só foi possível no século XVIII com a invenção, em 1737, do cronómetro marítimo pelo relojoeiro britânico John Harrison, o que permitiu medir a Longitude com a precisão necessária.
É agora altura de aqui introduzir duas invenções que estão associadas ao aumento ímpar na nossa capacidade de medir intervalos de tempo: o parafuso e a roda dentada. Sem eles não teríamos hoje instrumentação científica de precisão, nem Harrison teria resolvido o problema da medição da Longitude. Aliás, é difícil hoje encontrar instrumentos, objectos tecnológicos que não tenham pelo menos um parafuso em algum lugar. As engrenagens resultantes das rodas dentadas estão associadas mais ao movimento, por isso só as encontramos em instrumentos ou objectos que produzam ou que participem no movimento de algo. E, movimento significa que algo se deslocou de um ponto a outro durante um certo intervalo de tempo.
Apesar de existirem dúvidas sobre a sua invenção (há algumas referências que a ligam a Arquimedes), a primeira descrição sobre o parafuso foi efectuada pelo matemático grego Arquitas de Tarento (428 - 347 a.C.). Parafusos de madeira tornaram-se rapidamente comuns em todo o mediterrâneo principalmente em tornos de prensas para fazer vinho, azeite e outros óleos.
Em relação às rodas dentadas elementos de engrenagens, as referências mais antigas que se conhecem remontam à Escola Alexandrina durante o 3º século a.C. Há registos de terem sido desenvolvidas e exploradas por Arquimedes (287 - 212 a.C). Contudo, melhor fundamentadas são as referências a engrenagens utilizadas por Hero de Alexandria (10 – 70 d.C) por volta do ano 50 d.C. Diga-se a propósito que também é atribuída a Hero a invenção de uma ferramenta para cortar parafusos.
Mas as engrenagens só receberam renovado impulso aquando do fabrico da primeira máquina de cortar engrenagens inventada por uma artífice italiano de nome Juanelo Torriano de Cremona (1501-1575). Só com um corte regular dos dentes das engrenagens, precisamente divididas e cortadas, é que foi possível uma maior estabilidade na regularidade do movimento entre duas rodas dentadas.
Em associação, o parafuso e as engrenagens permitiram e alavancaram um novo mundo de máquinas. Com estes elementos, construíram-se as primeiras máquinas de medição de Tempo modernas e, simultaneamente, os relojoeiros tornaram-se pioneiros no fabrico de instrumentos científicos de precisão.
Se hoje utilizamos o conhecimento que temos sobre a estrutura atómica da matéria, e sobre o próprio átomo, para definirmos a unidade fundamental de Tempo, o segundo, (“um segundo é o tempo de duração de 9.192.631.770 vibrações da radiação emitida pela transição electrónica entre os níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133”), a sua medida e definição implicou a utilização de variada instrumentação de medida progressivamente mais precisa, reprodutível e robusta, que utiliza parafusos e engrenagens como parte integrante dos seus mecanismos ou que estiveram presentes em algum momento do seu fabrico.
A medição do Tempo e a noção e definição da própria grandeza Tempo é assim inerente ao desenvolvimento científico e tecnológico da Humanidade.
Para além de ser uma propriedade da própria vida que só existe num determinado período de Tempo.
Há quanto Tempo?
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