Em 1953, dois anos antes de morrer, este banqueiro, mecenas e coleccionador doou ao Estado o Palácio Azurara, no Largo das Portas do Sol, em Lisboa, uma construção de raiz seiscentista. Nele passou a funcionar um Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas. Ao longo dos anos, a Fundação firmou-se como uma instituição altamente prestigiada, tanto em Portugal como no estrangeiro, no campo das artes decorativas e ofícios com elas relacionados.
A Fundação tutela duas escolas: a Escola Superior de Artes Decorativas e o Instituto de Artes e Ofícios. Organiza também regularmente cursos de curta duração na área da conservação e restauro.
A Fundação mantém em pleno funcionamento várias oficinas representando ofícios tradicionais relacionados com a arte de trabalhar a madeira (marcenaria, embutidos e talha), o metal (fundição, cinzelagem, batedor de ouro em folha), bem como encadernação e decoração de livros, pintura decorativa, douragem, manufactura de tapetes de Arraiolos, entre outros. A Fundação presta serviços de conservação e restauro nestas áreas para instituições e particulares no país e no estrangeiro.
No acervo deste museu, o mobiliário representa talvez o núcleo mais importante, constituído por móveis civis dos séculos XVII e XVIII. Mas outras colecções – têxteis, ourivesaria, porcelanas e vidros, pintura ou azulejos são também importantes.
A fundação tem uma curiosa colecção de dez relógios de caixa alta, com a particularidade de a maioria ter sido fabricada em Portugal.
Mas vamos primeiro a uma máquina inglesa: trata-se de um movimento da terceira metade do século VXIII, assinado John Monkhouse, London, batendo horas e meias horas, posição de “silêncio”, com ponteiros de horas, minutos e segundos e janela para calendário digital. A família Monkhouse, originária de Carlisle, na Cumbria, começou aí a sua manufactura relojoeira, estendendo-se depois um dos ramos para Londres. Este relógio apresenta uma caixa profusamente decorada com pinturas representando flores, frutos, personagens...
Entre os trabalhos anónimos, há um do início do século XIX, presumivelmente de relojoeiro português e caixa em castanho, entalhada. No mostrador vêm-se barcos, vela, canhão, obelisco com a efígie de Nelson, e mulher apoiada num leão (Albion), tudo iconografia alegoria à Batalha de Trafalgar (1805).
Assinado Freire / Lisboa / 1789, há um outro, com caixa de extrema simplicidade e elegância. Este Freire seria relojoeiro em Lisboa, no último quartel do século XVIII, sendo referido por Rolando van Zeller em A Arte da Relojoaria em Portugal (1961).
Depois, um exemplar em reservas, em muito mau estado, assinado Francisco José da Costa / em Guimarães / N. XV. Daí se depreende que esta é a décima quinta obra deste artífice. Este relojoeiro não estava até agora referenciado, mas um possível parente seu, António José da Costa, era também relojoeiro, activo em Guimarães em 1825.
Mas vamos às duas peças que, quanto a nós, são as de maior interesse, se não do ponto de vista puramente relojoeiro, pelo menos para testemunhar passos importantes da relojoaria em Portugal.
A primeira é assinada António Durand / Fábrica Real de Lisboa. Este Durand, Antoine, francês, aportuguesou o primeiro nome, como era habitual na época. O relojoeiro foi director da Real Fábrica fundada no Rato, em Lisboa, pelo Marquês de Pombal. O primeiro mestre, também francês, foi um tal André Berthet. Durand veio substitui-lo e terá morrido em 1804. Da Real Fábrica de Relógios, há alguns exemplares detectados – um deles está na Fundação Medeiros e Almeida, é um relógio de mesa.
A segunda, chegou há pouco tempo à Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. Tinha sido adquirida na primeira metade do século XX pelo irmão mais velho de Ricardo, José. A família acaba de o doar à fundação. No mostrador tem gravado João José de Freitas o fez. Deste relojoeiro de Vila do Conde, activo no início do século XIX, há uma outra peça detectada. Sousa Viterbo, em Artes e Industrias Metálicas em Portugal – Relojoaria, sinos e sineiros (1915) fala dela.
Porventura, o interesse especial nesta peça estará, porém, na caixa: o corpo do meio, ao longo do seu rosto, tem pintada à mão uma escala. Nela se registam os signos do zodíaco, num mostrador com ponteiro para ser movido à mão. Abaixo, outra escala, ainda mais curiosa, com os meses do ano e as horas do nascer e do pôr-do-sol, bem como as horas de dia e de noite que vão havendo.
Afinada para Lisboa, esta tabela dá a chamada hora solar verdadeira. O relógio, mecânico, marcaria a hora solar média, como é norma. A escala, pintada como era habitual há um ou dois séculos, “pela senhora da casa”, dava a possibilidade de se observar a diferença entre os dois tempos. Quanto a “horas de Verão e de Inverno”, elas só chegariam no final do século XIX e início do século XX, com os ritmos da Revolução Industrial.
A pista da semana é, pois a Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva e a sua colecção de relógios de caixa alta. Mas não só, claro.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
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