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domingo, 26 de novembro de 2023

História do Tempo em Portugal - lançamento foi há 20 anos

A 26 de Novembro de 2003, uma quarta-feira, lançávamos, com Prefácio de Jorge Sampaio, Presidente da República, a obra História do Tempo em Portugal. Na Fundação Medeiros e Almeida estiveram presentes, entre outros, a Provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, o Comandante de Marinha Estácio dos Reis (que apresentou a obra) e representantes da Casa Civil da Presidência e do Gabinete do Primeiro Ministro. Além de Goreti Santos, representante dos relógios Girard-Perregaux em  Portugal, de elementos da manufactura vindos da Suíça, que apoiou a obra; e da Directora da Casa Museu, Teresa Vilaça.

Na altura, entre outras coisas, dissemos:

Porquê o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades? Não sei muito bem como responder. Nascido e criado numa zona histórica de Lisboa, o Chiado, habituei-me desde miúdo a ouvir os sinos das igrejas das redondezas, que são muitas. Desde logo, a dos Mártires, uma das primeiras, se não a primeira, a ser construída depois da conquista da cidade aos Mouros por D. Afonso Henriques. Eram marcações de tempo canónicas, feitas por sacristãos, que se faziam ouvir ainda claramente no início da segunda metade do século XX, porque a Lisboa dos engarrafamentos de trânsito ainda não tinha chegado e o Chiado, embora já despovoado de habitantes, continuava a ser o sítio de compras mais exclusivo, fervilhando de vida durante o dia. Mas a infância também foi povoada por relógios mecânicos públicos, como o do Teatro de São Carlos ou o da Mundial Confiança.

Mais tarde, o café de bairro foi A Brasileira, onde de novo um relógio, de parede, marcou o início de muitas noitadas…

Como quase todos os outros da minha geração, o primeiro relógio que tive, na década de 60, foi-me dado pelos pais, quando fiz a 4ª classe: um Cauny Prima 17 Rubis, de contrabando.

Com o equivalente aos meus três primeiros ordenados adquiri depois, já na década de 70, numa ourivesaria do Rossio, um cronógrafo automático. Ainda tenho estas duas peças, a funcionarem explendidamente. A Paixão relojoeira tinha-se enraizado.

O mercado português estava nessa altura praticamente fechado à Alta Relojoaria, dadas as barreiras alfandegárias e ao fraco poder de compra. Viajando de carro pela Europa, fazendo férias de Inverno, no regresso parava todos os anos dois ou três dias em Andorra. E aí tomava contacto, maravilhado, com peças que não havia em Portugal.

A viver em Beijing durante alguns anos, no final da década de 80, tive oportunidade de reforçar a minha pequena colecção de relógios mecânicos, com o que foi aparecendo vindo do mercado interno ou proveniente de uma União Soviética em desagregação.

De regresso a Portugal, procurei arranjo para algumas dessas peças. Disseram-me os relojoeiros consultados que várias não tinham concerto. Mesmo assim, contactei a única escola de Relojoaria do país, na Casa Pia de Lisboa. [Alguns dos relógios foram lá concertados, como exercício pedagógico].

Um pouco por desporto, comecei a escrever esporadicamente no PÚBLICO, onde fui Editor, artigos sobre relojoaria. Passei a ir às ferias de Basileia e Genebra, os grandes encontros anuais do sector a nível mundial. Criei um suplemento anual – Cronos – Pilares do Tempo [...].

E, as coisas aconteceram assim, naturalmente, dediquei os últimos dois anos [2001 e 2002] quase exclusivamente a fazer o levantamento, ainda que limitado, sobre o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades a eles ligada em Portugal. Algum desse material foi saindo em A Máquina do Tempo, crónica semanal que tenho mantido na revista de domingo do jornal, a Pública.

Percorrido o país, contactadas dezenas de instituições e particulares, recebidas sugestões de muita gente, resta agradecer a todos, dizendo que as eventuais virtudes deste trabalho lhes são devidas, e que os erros e omissões, decerto bastantes, me cabem a mim.

Duas décadas volvidas, as ivestigações sobre o Tempo e a sua multidisciplinaridade prosseguem, como se pode ver aqui.

Prefácio de Jorge Sampaio e portefólio do evento de há 20 anos











































































Ainda, da intervenção que fizemos há 20 anos:

O que é o tempo?

Há o tempo ditado pela natureza e o tempo ditado pelo poder religioso ou político (os ciclos naturais de dia e noite, estações do ano, fases de lua, etc., padronizados pelos poderes religiosos pré-históricos através de locais e classes especiais apropriadoras do tempo – sacerdotes, astrólogos, círculos-calendários de pedra, zigurates, obeliscos, etc.)

Na Europa, há o tempo ditado em todo o período medieval, emanado da autoridade espiritual suprema – o papa. A sociedade sem Estados, pulverizada em pequenos territórios senhoriais, em redor do castelo e do mosteiro, vivia quase sem trocas comerciais com outras comunidades, as actividades agrícolas de subsistência giravam em volta do tempo canónico, a que o castelo obedecia.

Com o advento do novo surto de trocas comerciais entre regiões, com a ascensão das classes dos comerciantes e dos mesteirais, com o reforço dos poderes políticos dos Estados em relação à Igreja, o tempo do mosteiro “transfere-se” para a torre do castelo e, mais tarde, para a torre do burgo. Os relógios são comprados, primeiro a meias entre bispo, homens-bons e rei ou senhor local, cada vez mais por encomenda dos homens-bons ou burgueses.

Lentamente, o tempo canónico vai dando lugar ao tempo laico. Primeiras tentativas de padronização do tempo surgem nesta altura. Aparece o ponteiro dos minutos, traduzindo a mentalidade cada vez mais predominante de encarar o tempo como mercadorias – logo, bem precioso, escasso.

Com a Revolução Industrial, lentamente, do tempo canónico passa-se completamente ao tempo laico. Estes dois, públicos, vão dando lugar ao tempo privado. Primeiro, um tempo que se transporta apenas pelos senhores e pelos burgueses ricos, aqueles que viajam. Depois, um tempo que se vai proletariado, nas fábricas, primeiro, com os tempos de produção (Ford foi relojoeiro…), o acordo sobre horários de trabalho e seus limites, etc. Há um tempo tipicamente burguês, privado – é de estatuto ter um bom relógio de sala, que ainda se acerta com as horas dadas pelo relógio do burgo, que por sua vez ainda é acertado pelo relógio de sol…

A partir da I Guerra Mundial, e vindo dos Estados Unidos, com os soldados, surge o tempo privado e proletário puro – cada homem tem o seu relógio, de pulso, porque a produção em série embarateceu um objecto que até aí tinha sido clarista, mágico, de estatuto. O tempo público, esse, estandardiza-se de vez, mercê das necessidades surgidas com os transportes públicos – nomeadamente o comboio. É a época das grandes conferências internacionais sobre a hora, dos fusos horários, das convenções ainda hoje aceites. Surge a necessidade de “mudança da hora”, no Verão e no Inverno, para aproveitar melhor a luz solar, adaptando-a aos ciclos de produção.

O tempo, agora laico, individual, e ao mesmo tempo universal, globaliza-se ainda mais com o aparecimento de redes de comunicações físicas, primeiro, virtuais, depois (World Wide Web), que ligam em tempo real sistemas informáticos de todo o mundo. Os mercados financeiros já não fecham, funcionam 24 sobre 24 horas, aceitam-se ordens de compra e venda de títulos a partir de todo o lado, a qualquer momento. Os fluxos financeiros passar a ser virtuais, o tempo tem que ser marcado (e homologado por uma identidade idónea) ao segundo. Os bancos centrais e outros operadores económicos e financeiros globais passam a dispor de autoridade sobre o tempo (carimbam a hora exacta a que se deu uma transacção). Cada vez o homem tem mais tempo ao seu dispor, cada vez tem menos tempo.

Do bastão do pastor, que media a sobra no chão, para o ceptro do sacerdote, que lê o calendário nas estrelas. Da liturgia emanada do papa, para os sinos dos mosteiros. Dos Livros de Horas, para as torres sineiras do burgo. Das torres para as carruagens, primeiro, para os bolsos, depois. Dos bolsos para os pulsos. Do tempo local ao tempo do Estado. Do tempo do Estado para o tempo Continental. Deste para o tempo Universal. Da ordem financeira dada por pombo correio, para o carregar do botão do computador – o tempo “on line”. Sempre. Em todo o lado (no pulso, no telemóvel, no écran do computador, na rádio, na televisão, no carro…)

História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal aborda vários aspectos relacionados com o Tempo cronológico, desde os relógios biológicos que cada um de nós tem, obedecendo a ritmos circadianos ou circanuais, até aos primeiros relógios construídos no território a que hoje chamamos Portugal, os alinhamentos megalíticos de há cinco mil anos.

Os relógios de sol, que vieram com a ocupação romana, e a relojoaria grossa, férrea ou de torre, que veio com os relojoeiros religiosos e laicos franceses e que se estabilizou com a aliança matrimonial da dinastia de Aviz com a Casa inglesa de Lencastre, são igualmente temas abordados.

A introdução dos relógios portáteis, de sol e mecânicos, por parte da família Behaim, que comerciava em Lisboa mas era originária da Floresta Negra, é um dos factos novos contidos no livro.

A introdução dos relógios mecânicos nas cortes chinesa e japonesa, por intermédio do Padroado Português do Oriente, nos séculos XVI e XVII, e a sua importância para a fixação dos ocidentais nessas paragens são aspectos realçados.

Aborda-se o mundo dos almanaques e dos calendários, durante os últimos cinco séculos em Portugal, bem como o tempo popular português, com as suas expressões dedicadas ao tema.

O tempo glorioso de D. João V, em que a corte portuguesa comprava os melhores relógios do mundo, seguido do desastre do terramoto de 1755, que destruiu grande parte do património relojoeiro monumental, são referidos. O período do Marquês de Pombal, em que se assistiu à laicização do tempo nacional, por um lado, e à fundação da primeira fábrica de relógios portuguesa, por outro, é realçado.

Uma outra novidade do livro: fixa-se por volta de 1755 a altura em que a noção de segundo aparece pela primeira vez em Portugal: quando jesuítas fabricam relógios de precisão, para observarem um eclipse da Lua.

Um “estrangeirado”, João Jacinto de Magalhães, é uma das figuras mais importantes da comunidade científica europeia do século XVIII. Fabrica relógios e outros instrumentos científicos.

Veríssimo Alves Pereira e Augusto Justiniano de Araújo, amigos, dominam o século XIX português em termos de relojoaria. O primeiro, inventor e promotor de relógios mecânicos de hora universal e de relógios de sol que assinalavam sonoramente o meio-dia (meridianos), regulou o tempo público do Porto e de Lisboa, a partir da Torre dos Clérigos, do Castelo de São Jorge, ou da Escola Politécnica. O segundo, que também inventou relógios de hora universal, foi o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia.

Algumas colecções privadas (Carvalho Monteiro, Medeiros e Almeida), ou públicas (família real, no Palácio da Ajuda) são referidas.

Os casos de A Boa Reguladora e de A Boa Construtora, exemplos de relojoaria de fabrico nacional, bem como os de Dimas de Melo Pimenta (introdutor da relojoaria moderna no Brasil) ou de Germano Silva (construtor de relógios monumentais nos Estados Unidos) são igualmente tratados.

O estado de abandono generalizado a que estão votados os relógios de torre em Portugal é realçado ao longo da obra, defendendo-se um levantamento urgente dos exemplares e a sua recuperação.

Um último pormenor, sobre a capa do livro: na foto, o relógio do Arco da Rua Augusta. Apesar de parado, como a maioria dos relógios públicos deste país, está certo pelo menos duas vezes por dia….

Desde que a obra póstuma de Sousa Viterbo sobre o tema da Relojoaria foi publicada, há cerca de um século, quase mais nada se escreveu sobre uma questão cada vez mais multidisciplinar, que tem merecido a atenção crescente em todos os países do Ocidente.

Praticamente um século depois, eis aqui apenas um ponto de partida para quem se queira interessar sobre ela. Que não demore mais um século a escrever-se sobre o Tempo, a Relojoaria e as Mentalidades em Portugal.

Fernando Correia de Oliveira

Lisboa, 26 de Novembro de 2003




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