Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa, in O Grito Claro, 1958
domingo, 12 de janeiro de 2014
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5 comentários:
Nunca o poeta está só
por triste que possa ser
a sua vida sem ver
que dele alguém tenha dó:
nem que se sinta isolado,
tem sempre Deus a seu lado!
JCN
Ai! do poeta, coitado,
que não se eleve do solo
para deitar-se no colo
que Deus lhe tem destonado!
JCN
Poetas em manga de alpaca
já basta e sobra Pessoa,
em cujos versos ecoa
a neurose que os ataca!
JCN
Altero o 1ºverso da última quadra para:
Poetas mangas de alpaca
JCN
A poesia quer sonho,
quer asas, busca as alturas,
enjeitando as criaturas
de fundo opaco e bisonho!
JCN
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