A Cartier, três anos após ter lançado o concept watch ID One, o primeiro relógio a não necessitar nunca de regulação, vira-se agora para a eficiência dos calibres mecânicos, com o Cartier ID Two. Uma autonomia de 32 dias, recorde absoluto para um relógio de pulso do seu tamanho.
Estação Cronográfica, único membro português do Fine Watchmaking Club (clube de jornalistas especializados, escolhidos em todo o mundo pela manufactura para apresentações especiais), esteve por estes dias em La Chaux-de-Fonds, Suíça, para o lançamento deste relógio, exemplar único, que literalmente nos faz ficar espantados... sem ar.
O Cartier ID Two é, possivelmente, o relógio mecânico de pulso mais eficaz de sempre. Ele emprega menos 50 por cento da força habitual e armazena mais 30 por cento de energia. Tudo através de inovações assentes numa base - a caixa é hermética e, lá dentro, o calibre funciona em quase vácuo absoluto. mas, vamos por partes.
Cerca de uma centena de jornalistas esteve três dias nas instalações da Manufacture Cartier, para tomar contacto com o ID Two, através de quatro workshops, muito técnicos, cada um destinado a um capítulo da Investigação e Desenvolvimento do protótipo.
Bernard Fornas, Presidente da Cartier, explicou que, depois de ter tomado a liderança mundial em termos de Alta Joalharia, o esforço tem sido, nos últimos cinco anos, o de assumir essa liderança na Alta Relojoaria (quase 20 novos calibres concebidos internamente, nesse período, algo de inédito, para além da utilização do selo de qualidade Poinçon de Genève em cada vez mais exemplares).
Carole Forestier-Kasapi, responsável na Cartier pelo Departamento de Investigação e Desenvolvimento da Relojoaria, tem estado por detrás das inovações técnicas dos últimos tempos. Foi dela a autoria do ID One, uma série de outras complicações inéditas em relógios de série, e agora do ID Two, um modelo que, tal como o primeiro, não está à venda.
"Um dos grandes desafios para os relojoeiros tem sido desde sempre a melhoria da eficiência dos calibres", diz-nos Carole no intervalo de uma das sessões. "Todos os relógios mecânicos têm um grau de eficiência de energia muito baixo. Cerca de 75 por cento da energia é pura e simplesmente desperdiçada", salienta.
Esta eficiência limita as capacidades dos relógios tradicionais. Todos os relógios mecânicos funcionam da mesma maneira. Este processo pode ser visto em três etapas principais:
Armazenamento de energia: o tambor de corda fornece a energia ao movimento. A mola helicoidal no interior do tambor é geralmente composta por uma liga metálica. Este método tem sido usado desde o século XV e, embora muito progresso tenha sido conseguido em termos de materiais, mesmo assim há obstáculos que não foram até hoje ultrapassados.
Um deles é a fricção da mola que contacta entre si ao desenrolar. Isto leva a um elevado défice daquilo que se chama "restituição energética": pode-se armazenar mais energia do que aquela que se pode fornecer.
A capacidade de armazenamento de energia está directamente relacionado com as propriedades mecânicas do material usado da mola da corda. Um aumento em termos de armazenamento de energia pode por isso ser conseguido "apenas através da mudança do material que, durante cinco séculos, tem sido usado na relojoaria", explica Carol Forestier-Kasapi.
Quanto a um segundo vector, o da transmissão da energia, ela faz-se através do seu armazenamento no tambor de corda e na sua distribuição através de um orgão oscilador. Esta transmissão, tradicionalmente apelida de "trem de rodas", é um exemplo clássico de ineficiência energética.
Desde logo, o nível de precisão das rodas dentadas é normalmente de um centésimo de milímetro, no que resulta numa série de folgas na engrenagem para que ela possa funcionar, dissipando-se assim muita da energia. "Por outro lado, o coeficiente de fricção dos materiais tradicionalmente usados nas rodas é também um factor de desperdício", faz notar a mestre relojoeira. Outro factor de desperdício é o peso dos componentes tradicionais do "trem de rodas", porque quanto mais pesados os componentes, mais energia é necessária para os mover. Acrescente-se a isso o esforço dos pivots do trem de rodas, que exigem energia adicional.
O consumo do oscilador é o terceiro factor a ter em conta - "o sistema de oscilador, que consiste na roda de balanço e na espiral, é fundamental para a regulação dos relógios mecânicos", recorda-nos Carol. "O orgão oscilador necessita de uma grande quantidade de energia para reproduzir de forma contínua o movimento para a frente e para trás da roda de balanço e da espiral". O oscilador, também chamado de orgão regulador, consome muita energia devido essencialmente a dois elementos: a fricção nos pivots e a fricção do ar e a turbulência aerodinâmica criada pelo movimento de vai-vem da roda de balanço e da espiral.
"A eficiência é fundamental na relojoaria: maior eficiência torna possível uma escala alargada de melhoramentos, como a redução das dimensões do relógio sem que com isso se perca em performance, o aumento da autonomia sem que se aumento o tamanho do relógio, a melhoria da sua durabilidade pelo facto de os componentes serem sujeitos a menos stress e, claro, melhoria da sua cronometria", conclui a responsável pela Investigação e Desenvolvimento da Relojoaria na Cartier.
Através de experiências com modelos à escala, percebe-se facilmente a melhoria introduzida no trem de rodas do Cartier ID Two. Nas imagens em cima, os trens de rodas (também designado por conjunto quinético) tradicional e do protótipo. O novo consegue um ganho de 10 por cento na transmissão de energia. Junta-se a isso um escape de tipo novo, que transmite 25 por cento mais energia que o convencional. Todos estes componentes não necessitam de lubrificação.
O novo trem de rodas tem uma razão de redução de velocidade muito rápida (através de um diferencial, peça que se vê em cima). Mantendo alta eficiência, a força que sai do tambor de corda leva cinco vezes menos tempo a ser reduzida até chegar ao escape.
Feito em silicone revestido a ADLC, com precisão de um mícron, o trem de rodas do Cartier ID Two equilibra melhor as forças, diminui o desgaste dos pivots, reduz a folga entre as rodas dentadas e reduz o peso de cada uma, com um coeficiente muito baixo de fricção.
Quanto à roda de balanço, é feita num mono-bloco em cristal de carbono, ficando desde logo equilibrada, sem precisar de ajustes, com a âncora a ajustar-se perfeitamente à roda de âncora, também sem afinação. Calculada para obter a melhor cronometria possível e feita num material novo, chamado Zerodur®1, a espiral tem o seu comprimento activo directamente adaptado à roda de balanço.
Em cima, as explicações sobre o orgão regulador do Cartier ID Two - roda de balanço, espiral, escape e roda de escape (estes últimos, na foto em baixo). Uma maior cronometria, sem acerto nem lubrificação.
A roda de balanço / espiral do concept watch, respectivamente em cristal de carbono e Zerodur®1
Quanto à corda, o ID Two dispõe de um trem de tambores que liberta 30 por cento mais energia que os normais. A corda é feita em fibra de vidro, a primeira vez na relojoaria que se substitui a tradicional liga metálica. O sistema consiste em dois tambores de corda, com duas cordas cada um no seu interior. Isso só é possível devido às propriedades elásticas e ao mesmo tempo de rigidez da fibra de vidro para libertar energia (para os menos entendidos, vejam-se as varas dos saltadores, e logo se percebe melhor). A fibra de vidro da corda é revestida de parylene, para reduzir a fricção e eliminar a necessidade de lubrificação.
A caixa do Cartier ID Two é em Ceramyst, um material patenteado, que permite um grau de estanqueidade superior. E não é para que água não entre. É para que, através da tecnologia Airfree, outro sistema com patente, o vácuo seja da ordem dos 99,8 por cento! Assim, o calibre, evoluindo sem fricção do ar, consome menos 37 por cento de energia. Na foto de cima, experiências com vácuo. Desde os tempos do Liceu que Estação Cronográfica não andava às voltas deste tipo de realidades... Sim, a água ferve quando a pressão baixa; sim, um papel desce muito mais rapidamente num tubo, se ele não tiver ar.
Como a hermeticidade garante igualmente que não entrará pó, e como já falámos da eliminação da lubrificação, pelo uso de novos materiais, o que está dentro do ID Two funciona com estas altas taxas de rentabilidade e precisão ao longo de... segundo os testes simulados, dez anos! Depois, basta voltar a criar vácuo a 99,8 por cento e... já está!
O que é a Ceramyst? Trata-se da primeira cerâmica policristalina transparente, particularmente não porosa. A caixa é feita de duas partes - a superior é um nono-bloco, eliminando o vidro e a junta que seria necessária. O fundo é também em Ceramyst e não precisa de parafusos - a pressão atmosférica é o meio único e suficiente para a fixar.
O leitor estará a pensar - então e a coroa? Pois a Cartier desenvolveu juntas de uma nova geração, que impedem a circulação de partículas de ar, isto através da introdução de nano-partículas na sua composição.
Um calibre de carga manual, sem afinamento ou lubrificação (as conquistas do Cartier ID One), mas agora com alta eficiência. Num ambiente de vácuo, menos força é mais força.
No jantar de gala que finalizou estes dias de contacto com o Cartier ID Two, Bernard Fornas, dando as boas-vindas aos convidados. "Os avanços em ID que temos conseguido não são para show-off", disse. "Todos eles estão a ser ou serão aplicados nos relógios Cartier de série". É o caso do Cartier Astrotourbillon Carbon Crystal, que que falaremos aqui um destes dias e que emprega tecnologia usada pela primeira vez no Cartier ID One.
Nunca em tão pouco espaço se reuniram tantas inovações relojoeiras high tech. O Cartier ID Two, caixa de 42 mm, em Ceramyst, com vácuo criado através de tecnologia Airfree, juntas com adição de nano-partículas. Exemplar único. Não está á venda. Ficou impressionado? Pronto... já pode respirar.
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