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sábado, 12 de novembro de 2011

A China vai matar o luxo?

 A China vai matar o luxo ?

Fernando Correia de Oliveira*

A China e a Índia, em 2011 e 2012, contribuirão em conjunto para mais de 40 por cento do crescimento global da economia, prevê o banco Julius Baer, o mais importante no private banking suíço.

No seu primeiro “Julius Baer Wealth Report”, a instituição foca-se na Ásia, fornecendo uma análise dos High Net Worth Individuals (HNWI) na região, mais precisamente em dez das mais significativas economias da Ásia Pacífico.

Por definição, os “indivíduos com alto valor líquido” são aqueles que dispõem de bens de investimento (financeiros, não incluindo a residência) superiores a um milhão de dólares.

O estudo detecta 1,16 milhões de HNWIs na Ásia, com fortunas totalizando 5,6 mil milhões de dólares em 2010. Esse quadro duplicará em 2015 para 2,82 milhões de HNWIs, enquanto as suas fortunas triplicarão, atingindo os 15,81 mil milhões de dólares. Algum destes crescimento deve-se à pura apreciação das moedas locais face ao dólar.

A China, só por si, deverá ter 1,4 milhões de HNWIs em 2015, totalizando 8,76 mil milhões de dólares.

Se o futuro é promissor para as marcas e grupos de luxo, o presente não tem sido nada mau – apesar da estagnação da economia global, líderes mundiais como o LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton ou a Compagnie Financière Richemont divulgaram resultados para os primeiros nove meses de 2011 com crescimentos nos dois dígitos, apoiados essencialmente no crescimento asiático.

No entanto, e desde há cerca de um ano, vozes cada vez mais numerosas, sobretudo no Ocidente, falam da demasiada exposição da indústria do luxo (ela própria localizada quase toda na Europa) a países como a China.

Se a economia chinesa continuar a abrandar, como tem acontecido nos últimos meses, se uma bolha especulativa imobiliária ocorrer, como prevêem uns tantos, qual o destino da indústria do luxo?

Em tempos de marketing global, maciço, omnipresente, nas mais diversas plataformas, conceitos como “luxo” ou “exclusivo” estão a perder cada vez mais o sentido original.

Na Europa medieval, o luxo estava associado à decadência e à queda das civilizações. Só a partir do século XVIII o conceito de luxo aparece como um elemento positivo. Hoje em dia, o luxo continua a ter uma imagem ambivalente – positiva e, ao mesmo tempo, negativa. Por um lado, criticam-se os seus excessos ou práticas à luz de uma nova ética (peles de animais, por exemplo); por outro, projecta-se com ele uma imagem de prestígio.

Produto de excelente qualidade, a preço elevado, em quantidade diminuta ou mesmo raro, e sobretudo de carácter fútil era, até há uns 20 anos, a definição mais consensual do que é luxo.

E, até essa altura, havia a ideia de que o luxo, sendo destinado a apenas uma minoria, não sofria tanto com as crises – podendo variar os membros dessa minoria, ela existia sempre, atravessando guerras, o crash da bolsa ou outros infortúnios.

Só que, com a explosão dos mercados emergentes – Rússia e seus antigos satélites, a Ásia e sobretudo a China – a indústria do luxo massificou-se cada vez mais. Nesta contradição em termos que é o luxo massificado, também esta indústria passou a estar tão dependentes dos ciclos económicos como as restantes.

Em fase de desindustrialização acelerada, o Ocidente tem na indústria do luxo uma das poucas ilhas de vantagem comparativa em relação ao resto do mundo. Sector de mão-de-obra intensiva e ultra-especializada, o luxo não sofre, à partida, do síndroma da t-shirt (há-de sempre haver quem a faça mais barata…)

Um artigo de luxo deve, à partida, utilizar materiais nobres; ultrapassar a simples função e ter uma dimensão artística; utilizar o savoir-faire baseado numa tradição secular, patrimonial, histórica; projectar uma imagem, que será o somatório disso tudo. Durante muitos anos, não haverá marcas de luxo asiáticas, dizem os especialistas.

Mas, com a procura maciça por parte de asiáticos, não é apenas em quantidade que o luxo está a ser posto em causa. A estética dos objectos começa a ceder aos gostos regionais onde se vende mais – Médio Oriente, Índia, Indonésia, China. E os consumidores de mercados maduros – que foram aqueles que sempre formaram o gosto, a imagem e a perenidade das marcas – começam a torcer o nariz a tudo isto.

Nicole Kidman, em Beijing, no lançamento mundial do Omega Ladymatic


Aspecto do evento Hermès organizado nos arredores de Beijing, para apresentação do Temps Suspendu

Os analistas falam, por exemplo, de um certo “sinotropismo” actual na produção de artigos de luxo – na forma, no tamanho, nas cores - esquecendo a indústria os velhos mercados europeu, norte-americano ou mesmo japonês. “A armadilha é mortal”, diz-nos Gregory Pons, um jornalista francês que desde há décadas acompanha a evolução sociológica do luxo. “No dia em que os europeus desdenharem as marcas demasiado ‘chinesas’ aos seus olhos, serão os próprios chineses a desprezá-las”.

Mas a China não esmaga tendências apenas com o seu mercado continental. Segundo o Renmin Rebao (Diário do Povo, o jornal do Partido Comunista), metade das compras de artigos de luxo por chineses são feitas fora da China, sendo a principal razão disso os elevados impostos sobre artigos de luxo praticados no continente.

Desde logo em Hong Kong e Macau. Se somar-mos a isso o resto da Grande China (Taiwan, mas também Singapura) ou a diáspora chinesa (Portugal incluído, onde alguns milionários chineses já têm peso específico na aquisição de artigos de luxo em Lisboa ou Porto). Se, depois, olharmos para as estatísticas do luxo, somando o continente com o resto à volta, se percebe que os chineses já são os maiores consumidores de artigos de luxo do mundo.

O crescimento exponencial do turismo chinês no Ocidente só ajuda a pintar com cores mais fortes um quadro que poucos sabem como irá terminar.

No final de 2010, a Louis Vuitton teve que decretar o fecho antecipado diário, por uma hora, da sua principal loja em Paris. Motivo – os turistas chineses, que ameaçavam ruptura de stock em época pré-natalícia.

A imprensa especializada de luxo, em papel ou em plataformas multimédia, já tem publicações em chinês vocacionadas para os pontos de venda parisienses. Madrid terá até ao final do ano a sua primeira publicação em chinês, visando os turistas do Império do Meio.

Para além do consumo pessoal, ao quadro acresce a tradição milenar, muito chinesa, de comprar presentes para familiares e amigos quando se está de viagem pelo estrangeiro…

O investimento do luxo na China

Se os chineses viajam cada vez mais e compram cada vez mais no exterior, poderá então perguntar-se porque é que todas as marcas de luxo estão desde há duas décadas a investir fortemente (e em muitos casos ainda a perder dinheiro) em pontos de venda mono-marca nas principais cidades chinesas.

Três razões ajudam a explicar este avultado fluxo de capital ocidental – falta de redes de retalho de luxo num país ainda governado por um regime comunista; desconhecimento de marca e de produtos por parte do consumidor chinês, funcionando a boutique como anúncio e ponto de formação do gosto de consumidores que depois irão comprar ou pedir para que lhes comprem, no exterior; finalmente, a ideia do consumidor asiático, e não apenas chinês, de que uma marca de luxo, forte, deve ter uma “casa própria”, não devendo misturar-se em ponto de venda com outras.

Esta “asfixia” chinesa, a curto ou médio prazo, está a fazer as delícias de CEO’s e de accionistas de marcas e grupos de luxo ocidentais, mas não se tornará ela “mortal”?

Stephen Urquhart, CEO da Omega, a marca mais forte de relógios na China continental, ultrapassando a quase sempre líder Rolex, recordava-nos há meses, num lançamento mundial de um novo modelo, em Beijing (e que outro sítio poderia ser?): “Quem fala de dependência exagerada do luxo em relação à China esquece-se que, em, termos relativos, a indústria europeia do luxo estava muito mais dependente do Japão e do turismo japonês nos anos 70 e início dos anos 80”.

Guillaume de Seynes, membro da família Hermès e um dos principais administradores da Maison, confidencia-nos: “Há uma certa razão naqueles que apontam o perigo da massificação ou da perda de identidade para se agradar a outros gostos. Nós, enquanto Hermès, somos os mesmos em Paris, Moscovo ou Beijing. Uma boutique nossa respeita os nossos códigos fundadores, não há ‘adaptações’. O que não podemos é estar ausentes de mercados como o chinês”.




Fugindo à regra das redes de boutiques monomarca há, por exemplo, o líder no retalho de luxo na Ásia em termos de relojoaria, joalharia e acessórios. Fundado em Singapura, a cadeia The Hour Glass (ampulheta) acaba de abrir o espaço Malmaison num ponto central da Cidade-Estado.
Quadro negro, quadro rosa

Estivemos há semanas neste novo paradigma do luxo, experimentámos o novo conceito vindo de um território asiático, governado por chineses e onde os chineses continentais vão cada vez mais. A Europa não tem, para já, nada que se compare com Malmaison.

São uns impressionantes 750 metros quadrados, a maior loja da rede, localizados em Knightsbridge, no coração de Orchard Road, a zona por excelência do luxo.

Desde logo, o nome e a ideia de que “luxo” tem que ser, na realidade, algo baseado em história europeia. Malmaison é inspirado no Château de Malmaison, a célebre morada do século XIX, onde viveram Napoelão e Josefina Bonaparte.

Imagine uma decoração em talha, vidros e veludos estilo Império. Não, não é bem um pastiche: os móveis são autênticos, os quadros e as peças restantes da decoração são antiguidades adquiridas em leilões, fazem parte da colecção particular de The Hour Glass. Um gigantesco relógio de caixa alta, da autoria de Le Roy, relojoeiro de Napoleão, ocupa lugar de destaque.

Depois, há dentro do espaço boutiques Rolex, Pateck Philippe, Cartier, Harry Winston, Piaget, ou vitrinas com as principais marcas de Alta Relojoaria e Joalharia. Os clientes podem entrar para os dois andares da Malmaison directamente através de uma garagem privada, usando elevadores também eles de acesso restrito.

Neste ponto de venda de ambiente predominantemente masculino, há outros “toys for the boys”, como sejam sapatos Pierre Corthay, vestuário Rubinacci ou Charvet, telemóveis Celsius, cintos e adereços Roland Iten, adereços Aurelie Bidermann, caixas de música Reuge, perfumes à medida Frederic Male (que podem ser testados de corpo inteiro, se nos colocarmos dentro de gigantescas redomas de vidro, para que os odores se não misturem…), velas odoríferas Cire Trudon ou edições limitadas de livros de arte da Taschen.

Responsáveis de The Hour Glass dizem-nos que há projectos de levar o conceito Malmaison para outros pontos da Ásia, nomeadamente a China continental. “Estamos num nicho entre as boutiques monomarca e o retalho plurimarca. Somos uma ilha de luxo, com o melhor dos dois mundos”, garantem-nos.
Os olhos estão todos postos na Ásia. Os olhos estão todos postos na China. E não apenas em termos de luxo. Mas, quanto a este, como será o futuro.








Aspecto do Fórum de Alta Relojoaria 2011, em Genebra, na sede do World Economic Forum

No ambiente ultra-fechado que é a sede do World Economic Forum, à beira do lago Le Mans, em Genebra, realizava-se há uns meses mais um Forum de la Haute Horlogerie, patrocinado pela Fondation de la Haute Horlogerie, um organismo preocupado com a Cultura e o Património de que o Luxo é composto.

Perante CEO’s de grandes marcas e um restrito grupo de jornalistas, convidados vindos de todo o mundo explicaram durante um dia os seus pontos de vista. Procurando distinguir o estrutural do conjuntural, num universo do luxo em forte transformação – novos canais de distribuição como a Internet, mercados quase virgens que se abrem em força, comunicação e relação com cliente em plataformas desmaterializadas, etc.

O filósofo e político francês Luc Ferry defendeu o conceito do novo consumidor – o “bôbô” (uma fusão de burguês e boémio, as figuras antíteses do final do século XIX e início do século XX), a actriz indiana Shabana Azmi sublinhou a importância de as marcas terem figuras públicas locais como embaixadores, o CEO de Net-à-poerter Marc Sebba apontou novas tendências nas compras online.

Mas a intervenção mais forte da sessão terá sido a de Martin Wolf, jornalista e cronista do Financial Times. Para ele, a questão não é a de saber se haverá uma crise económica e financeira na China. “Ela vai ocorrer, é inevitável. Não se trata de saber se, mas apenas quando”, disse.

A análise catastrofista de Wolf tem como pano de fundo a crise de finais de 2008 (“a mais grave desde os anos 30, e ainda muito longe de estar resolvida, com os países desenvolvidos a braços com dívidas públicas sem precedentes em tempos de paz, apenas vistas durante as guerras napoleónicas ou nas guerras mundiais”).

Quanto à China, ele aponta para as desigualdades sociais crescentes, para a inflação no preço das matérias-primas (produção de carros, de máquinas de lavas, a caminho de um estádio mais exigente de desenvolvimento, mas que provocará escassez), para o estagnar das exportações – “os países não podem crescer todos em termos de exportação, até porque não há um grande mercado em Marte...”. Ou para o facto de o investimento, público e privado, estar a crescer desde há décadas a uma taxa de crescimento superior à do crescimento do PIB. “Em economia, isto é um quadro clássico para o rebentar da bolha.

Quando isso acontecer, será a catástrofe mundial e o Ocidente, que continua em recessão, está em situação péssima para lhe fazer frente”.

Os CEOs de grandes marcas de luxo ali presentes ficaram em silêncio. Estando a vender como estão para uma China ávida de luxo, como encarar este desmancha-prazeres, profeta da desgraça?

Mas terão saído um pouco mais sossegados do Fórum depois de ouvirem o antigo embaixador da China na ONU, um académico e líder chinês, He Yafei. “Sabemos desses problemas todos. Sabemos que o investimento não pode continuar sobreaquecido. A solução é fomentar o consumo no mercado interno. E nisso, estamos descansados – é o maior do mundo. E, com o incentivo ao consumo, projectamos mais 30 anos de crescimento sustentável”, disse.

Se assim for, em termos de luxo, bem podem as marcas ocidentais aumentar a produção, abrir mais boutiques em Beijing, Shanghai, Guangzhou ou em cidades com mais de um milhão de habitantes e das quais poucos ouviram falar. Lançar produtos e campanhas de comunicação dirigidos a milhões de “novos-ricos novos”. Se isso contribui para massificar o luxo, quem é o primeiro a atrever-se a parar?

Decididamente, só daqui a umas décadas ficaremos a saber o que foi o luxo na transição dos séculos XX para o XXI. A China, seguramente, teve nisso o papel principal, para o bem e para o mal.

*Texto publicado no Fora de Série de Novembro, com o Diário Económico

1 comentário:

João de Castro Nunes disse...

Se a China não se apressar
a pôr ao luxo um travão,
talvez seja ele que então
acabe por a matar!

JCN