Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Dia do Relógio de Sol

Amanhã, sábado, 21 de junho, às 03:41, ocorre no Hemisfério Norte o Solstício de Verão, o dia mais longo do ano. Por iniciativa portuguesa, desde 1990, também se assinala o dia do relógio de Sol.

A 23 de Março de 2007, os CTT levavam a cabo o lançamento do livro Relógios de Sol, da autoria de Nuno Crato, Suzana Metello de Nápoles e Fernando Correia de Oliveira, com fotos de Jorge Correia Santos

Texto que escrevemos sobre o livro, publicado na Revista dos CTT:

Quando e como começaram os homens e mulheres que habitaram o território a que hoje chamamos Portugal a “pensar” o Tempo, a ter dele consciência, a medi-lo?

Terá sido no Neolítico final e começos da Idade do Cobre (3000-2500 a.C.) que surge a magnífica, exuberante, misteriosa cultura megalítica – esse grande arco que terá por cenário praticamente a totalidade dos territórios a que hoje designamos por Portugal, Espanha, França, Irlanda, Dinamarca, Grã-Bretanha e Alemanha.

Aos nossos dias chegaram conjuntos monumentais, pedras enormes, colocadas umas sobre as outras, umas ao lado das outras, mas especialmente orientadas – antas ou dólmenes, menires, cromeleques, que os especialistas associam a espaços sagrados, a monumentos funerários, mas também à surpreendente função de marcadores do tempo.

Portugal é especialmente rico nesses conjuntos, nomeadamente no Alto Alentejo, na Beira Baixa, no Minho. Os cromeleques (conjuntos de menires) de Vale de El-Rei ou Fontaínhas Velhas (Móra), dos Cuncos (Montemor-o-Novo), Couto da Espanhola (Idanha-a-Nova), Portela de Mogos ou Almendres (Évora), de Xarez (Reguengos de Monsaraz) são disso esplêndidos exemplos, estudados na sua orientação e função.

O que mais surpreende os especialistas é que essa orientação se repete, durante aproximadamente dois milénios, em todo esse arco de cultura megalítica, das planícies hoje alentejanas às montanhas hoje britânicas. Os monumentos megalíticos estão todos dirigidos para o quadrante situado entre nordeste e sudeste, ou seja, para os pontos de amplitude máxima e mínima do nascer do Sol ao longo do ano.

Apesar de ainda haver muito a estudar sobre o verdadeiro papel desempenhado por estes alinhamentos megalítcos, poderá dizer-se que os primeiros calendários “portugueses”, autênticos relógios de sol, ainda e sempre prontos a funcionar, a indicar equinócios e solstícios, datam de há cinco mil anos.

Em 218 a.C. o exército romano entra pela primeira vez na Península Ibérica. Com a rendição da cidade de Gades, em 206 a.C., termina o domínio cartaginês do território. O esmagamento definitivo da resistência autóctone ocorre apenas em 44 a.C.

Instaurada a Pax Romana, o processo de romanização é avassalador, provocando nas sociedades ibéricas mudanças económicas, sociais e culturais profundas, que duraram até hoje (língua, ordenamento básico do território, através de grandes vias de comunicação e fundação ou solidificação de agregados urbanos, etc.).

Numa sociedade organizada, com fluxos comerciais e ritmos das urbes processando-se em rede e com elevado grau de sofisticação, há uma correspondente necessidade de alguma padronização na medição do tempo.

Os primeiros relógios de sol terão entrado no território que é hoje Portugal através da conquista romana. Mas é grande a raridade e escassez de referências a esse tipo de artefactos. Deste período, foram encontrados até hoje alguns exemplares, como um, em barro, em Conímbriga; um, de quadrante esférico, proveniente da vila romana da Herdade da Olivã, Campo Maior, junto à fronteira espanhola; ou um fragmento, em pedra, no teatro romano de Lisboa e outro, também em pedra, na vila de Freiria (S. Domingos de Rana, Cascais).

Mas o exemplar mais interessante, até porque o único rigorosamente datado e aquele que alguma controvérsia tem gerado, é um que não foi até hoje descoberto mas cuja existência está documentada numa inscrição.

Estamos a referir-nos a uma lápide romana, de 16 a.C., trazida de Idanha-a-Velha por um antigo Conservador do Museu Etnológico Português (hoje Museu de Arqueologia). Diz-nos Leite de Vasconcelos, em 1915, que se tratava da mais antiga inscrição romana no espólio do museu (4). Nela se lê “(h)orarium”, e, segundo ele, poderá ter figurado num edifício construído de raiz para albergar um relógio de sol, na praça ou “forum” da capital dos Igaeditani. A norte do Tejo, a hoje Idanha-a-Velha (Civitas Igaeditanorum), a capital da Igitânia, revelou-se como o centro romano mais rico em inscrições latinas (mais ou menos 200), traduzindo a importância da urbe nas rotas comerciais da região no século I da nossa era.

A inscrição, uma das mais antigas que se conhecem em território da Lusitânia, diz-nos que um tal Q. Iallius Augurinus mandou construir, à sua custa, um “(h)orarium” (relógio), que ofereceu à cidade de Igaeditanis.

De qualquer modo, os relógios públicos serão de uso comum no início do século II ibérico, regulando a vida e o trabalho nas cidades lusitanas. A prova disso é que até uma pequena cidade operária como a de Metallum Vipascence (Aljustrel), no Alentejo, devia ter pelo menos um. Graças a uma das célebres tábuas encontradas nesse local e que contêm o regulamento mineiro da localidade, sabemos que ali existiam umas termas, mas à disposição dos habitantes a horas fixas: as mulheres podiam usá-las desde o nascer do sol e até à sétima hora, os homens a partir da oitava hora do dia. Tudo isso marcado pela sombra projectada do Sol num quadrante, através de um espigão, ou gnómon.

A queda do Império Romano, e a ocupação da Ibéria pelos povos bárbaros, provoca também a “desorganização” do tempo social, que volta a pulverizar-se localmente a pautar-se mais pelos ritmos agrícolas do que pelas horas do dia. Nem a ocupação islâmica vem alterar esse quadro – os pilares religiosos do islamismo, ao contrário dos do cristianismo, não exigem um tempo rigoroso.

Os relógios de sol voltam a reaparecer em Portugal com a Reconquista, trazidos pelas comunidades monásticas que, agora elas, se encarregavam de dar um ordenamento político-social ao território. Muitos desses exemplares já desapareceram, deitados para o lixo, destruídos, vendidos para o estrangeiro. E ainda hoje não se descobriu nenhum exemplar claramente datado no chamado período Românico.

No Renascimento, os relógios de sol ganham “mobilidade” e aparecem os primeiros dípticos, compostos por uma base com bússola, para os orientar, e uma tabela na parte superior, onde se podia ler a hora solar em várias cidades europeias. Há alguns exemplares desse tipo em Portugal, possivelmente importados do grande centro de fabrico de instrumentos científicos da época, a cidade de Nuremberga.

Embora haja, naturalmente, relógios de sol mais antigos, o que hoje se encontra no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, é o que se descobriu até agora com a data mais remota. Encontra-se num pátio, sobre uma base de alvenaria coberta com azulejos setecentistas e possivelmente não foi esta a sua primeira instalação. Assinado “FPL 1586”, dá-nos o nome do autor e o ano do fabrico. Tem três quadrantes – um horizontal, um vertical, meridional, sem declinação e um equinocial, setentrional.

Ao descrever relógios de sol, muitas vezes se referem “quadrantes solares”, tomando a parte pelo todo, já que o “mostrador” de um relógio de sol tem o nome específico de quadrante. Além disso, emprega-se muitas vezes o vocábulo “meridiana” para indicar indiferenciadamente relógios de sol. No entanto, uma meridiana, no sentido exacto do termo, é um relógio de sol que tem por função marcar apenas o momento do zénite solar num determinado local, e está normalmente associado a um mecanismo sonoro (geralmente um pequeno canhão) que entra em acção exactamente ao meio-dia solar (o chamado tempo verdadeiro).

Meridianas, em Portugal, estão detectadas pelo menos cinco, todas em palácios que já foram residências reais. A do Palácio Nacional da Ajuda, a do Palácio Nacional de Mafra, a do Paço da Rainha (actual Academia Militar), a do Palácio Nacional de Queluz e a do Palácio Nacional de Sintra.

De notar que, devido à sua forma rectangular estreita e à maneira como se orienta (Norte/Sul), o território de Portugal tem uma leitura do tempo solar relativamente uniforme: a variação entre a costa e o interland não chega a uma hora e a maioria da população está junto ao mar, praticamente à mesma longitude. Por outras palavras, o meio-dia solar marcado em Sagres, Lisboa, Porto ou Viana do Castelo, varia em apenas alguns minutos.

O tempo de glória dos relógios de sol é o século XVIII e estes objectos passam a inserir-se nos espaços de habitação e de lazer da nobreza e da burguesia, geralmente como objectos de grande aparato decorativo de um Barroco pujante.

Em Portugal, isso ocorre com D. João V, que manda equipar palácios, mosteiros e conventos com novos relógios de sol (fez o mês o com relógios mecânicos, como os de Mafra).

A ciência da gnomónica vai sendo, também em Portugal, teorizada, e ao longo dos séculos XVII e XVIII são publicados vários tratados onde se ensina a construção dos vários tipos de relógios de sol. Os seus autores – essencialmente religiosos, são padres jesuítas ou teatinos.

Com o final do século XVIII começam a esboçar-se, também em Portugal, os primeiros sinais de industrialização. E, com isso, muda a relação da sociedade com o Tempo. Os relógios mecânicos, de torre, ganham cada vez mais importância, mas ainda são muito inexactos, e os relógios de sol servem para os acertar, pelo menos uma vez por dia, quando o Sol atinge o zénite.

Em Lisboa e Porto, em meados do século XVIII, aparecem meridianas em pontos altos destas cidades – Castelo de São Jorge ou Escola Politécnica, no primeiro caso, Torre dos Clérigos, no segundo – assinalando a tiro de canhão o meio-dia solar. O autor desses relógios de sol (mecanismos sofisticados, com autonomia para disparo de até oito dias) foi Veríssimo Alves Pereira. Essa maneira sonora de assinalar o tempo nas duas principais cidades portuguesas perdurou até à primeira década do séc. XX.

Um dos últimos relógios de sol a desempenhar uma função pública geral de marcador do tempo foi o que esteve colocado até no Cais do Sodré, em Lisboa. Em 1875 foi apeada para dar lugar à estátua do Duque da Terceira que ainda hoje lá está. Mas nesse mesmo Cais do Sodré (sinal da importância do local para a actividade comercial da capital, especialmente com o estrangeiro) viria a ser colocado o relógio (mecânico) da Hora Legal.

A “morte” do relógio solar ocorre, por um lado, devido à precisão cada vez maior do relógio mecânico, que se torna também cada vez mais portátil; por outro, devido à universalização do tempo, provocado pelo avanço das comunicações e dos transportes.

Mas tem-se assistido nos últimos anos a um renovado interesse pela gnomónica. Os relógios de sol voltam a reaparecer em lugar de destaque em espaços e edifícios públicos e privados, já não tanto pela sua função de marcador do Tempo, mas antes pela poesia perene que traduzem, no seu diálogo directo com os ciclos da Natureza, e pelas formas belas e inovadoras que continuam a apresentar.

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