Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Portugal na Grande Guerra de 1914-1918 - IV


PORTUGAL NA GRANDE GUERRA DE 1914-1918

4 — O Governo da União Sagrada

Fernando Correia de Oliveira

“É talvez um acto de loucura, mas a loucura nobre e generosa, que, se não for compreendida na Inglaterra, o será na França, na Itália, na Bélgica, nos países que têm sofrido as grandes amarguras da guerra”, dizia com a exaltação do costume Afonso Costa, num conselho de Ministros em Fevereiro de 1916, advogando uma declaração de guerra à Alemanha, “sob nossa responsabilidade”. Não foi preciso. Berlim fez-lhe o favor.

Em 11 de Maio de 1915, o jornal monárquico de Lisboa “O Dia” escrevia um editorial cujo título ainda hoje é recordado: “Vista a farda, sr. general”. O apelo era dirigido a Pimenta de Castro, que em 25 de Janeiro tomara o poder, num golpe institucional que teve a cumplicidade do Presidente Manuel de Arriaga. No dia anterior ocorrera mais um incidente entre monárquicos e republicanos, uma cena de tiros em Alcântara, com feridos de ambos os lados, por ocasião da inauguração do centro monárquico local.

Pimenta de Castro, que dez dias antes mandara encerrar o Parlamento, impedindo a reunião de deputados e senadores, em mais um acto do seu consulado ditatorial, mandou que a guarnição militar de Lisboa entrasse em estado de prevenção.

Na madrugada de 14 de Maio, alguns vasos de guerra ancorados no Tejo, liderados pelo capitão-de-fragata Leote do Rego, lançaram o sinal de revolta, secundado pela insurreição no Arsenal de Marinha e no Quartel de Marinheiros de Alcântara. A revolução contra o Governo era dirigida por uma Junta, de que faziam parte, além de Leote do Rego, o major Norton de Matos e outros militares afectos ao Partido Democrático. A Guarda Republicana ainda tentou a defesa do Ministério, mas a revolta acabou por triunfar, com mais de uma centena de mortos e outros tantos feridos, amontoados pelas ruas de Lisboa nas 24 horas de perfeita anarquia que se seguiram.

A Junta divulgou uma proclamação onde dizia pretender restabelecer o respeito pela Constituição, violada tanto pelo Presidente Arriaga como por Pimenta de Castro. As tropas fiéis ao Governo tiveram que enfrentar a acção do fogo dos navios (a Marinha foi a única arma verdadeiramente activa entre os revoltosos) e, em terra, a dos civis, entretanto armados no antigo Arsenal do Exército, hoje Museu Militar. A resistência governamental tinha o seu fulcro no Quartel do Carmo, onde Pimenta de Castro se refugiara. Perante a determinação dos revoltosos, e a falta desta por parte das forças pró-governamentais, o golpe teve sucesso, Pimenta de Castro foi preso e conduzido para bordo do Vasco da Gama, de onde, sob enxovalhos da equipagem, foi para o exílio interno, nos Açores.

Pimenta de Castro, nos meses em que esteve no poder, fizera marcha a trás no processo de entrada de Portugal no conflito mundial. Para Luís Fraga, “a atitude da Armada na revolução que derrubou o Ministério Pimenta de Castro terá sido consequência da certeza da sua incapacidade para ser real instrumento de guerra. Quer dizer, a Armada podia desejar a beligerância como solução política, porque não fazia a guerra ou fazia-a em teatros e com meios muito limitados, enquanto o Exército desejava a neutralidade possível, porque o contrário era ir para a guerra num teatro de operações onde a catástrofe era quase inevitável”.

A intervenção espanhola esteve por um fio. Na conjuntura ibérica, e face às alianças que se iam fazendo, “a necessidade de mudança do estatuto internacional português — de neutralidade ambígua para beligerante — impunha-se como resultado das ambições do Governo espanhol sobre Portugal”, faz notar Luis Fraga. E o 14 de Maio veio realçar isso mesmo.

Segundo Sebastião de Magalhães Lima, grão-mestre da Maçonaria, na sequência do golpe, nessa mesma madrugada, uma esquadrilha naval espanhola “tinha entrado na barra [do Tejo], não com intenções pacíficas, mas, ao contrário, hostis”. D. Manuel II, do seu exílio londrino, escrevia ao marquês do Lavradio, a 10 de Junho, dizendo: “A situação é terrível e escapámos a uma intervenção estrangeira por uma unha negra. A Espanha queria-a; a Inglaterra impediu-a (...) O meu grande medo é que a Inglaterra, farta de tão belo aliado [Portugal], se entenda com a Espanha: todo o meu trabalho é impedir tal entendimento.”

A desforra democrática

João Chagas, que pedira a 1 de Março a demissão de embaixador em Paris, protestando contra a não-beligerância do Governo Pimenta de Castro, tinha chegado a 20 a Lisboa. No dia seguinte ao golpe, a Junta do 14 de Maio convida-o a formar governo. Este aceita, acumulando a pasta do Interior, indo Alves da Veiga para os Negócios Estrangeiros.

Mas, a 16, quando João Chagas e Afonso Costa (escapado de um atentado no Porto, semanas antes) se dirigiam de comboio do Entroncamento para Lisboa, o novo primeiro-ministro foi atingido por três tiros disparados à queima-roupa pelo senador evolucionista João de Freitas, inimigo pessoal de Costa. O exaltado político foi de imediato dominado pelos populares, que o entregaram à organização da Carbonária, no Entroncamente, onde o atentado tivera lugar. Morreu, depois de torturado.

Cego de um olho, Chagas passa a chefia do executivo a José de Castro, que conta com Teixeira de Queirós nos Negócios Estrangeiros, num Governo dominado pelos democráticos. José de Castro era vice-grão-mestre da Maçonaria e tinha sido filiado no Partido Republicano Português. Próximo de Afonso Costa, era pai de Álvaro de Castro, um dos integrantes da Junta do 14 de Maio.

No dia 26, o Presidente Arriaga enviou a carta de demissão ao Congresso da República, isolado pelo regime devido ao “pecado” de ter recorrido ao amigo pessoal Pimenta de Castro para tentar pôr ordem na situação. Para os três meses que faltavam do mandato do primeiro Presidente da República português é escolhido, a 29, Teófilo Braga, com a abstenção de evolucionistas e unionistas. Teófilo lembrou desde logo aos ilustres senadores e deputados que a nação lhe devia três dias do ordenado de Maio, por lapso já pagos a Arriaga. Tudo foi resolvido a contento das partes. Machado Santos e Pimenta de Castro eram desterrados em 11 de Junho para os Açores.

Nas eleições legislativas de 13 de Junho a maioria volta a sorrir ao Partido Democrático. “Legalmente, os eleitores eram apenas 48,8 por cento da população masculina maior”, sublinha Pulido Valente. “Os recenseados eram, de facto, apenas 76,4 por cento dos recenseáveis; os votantes acabaram por ser só 60 por cento dos recenseados; isto é, 18,6 por cento da população masculina maior e 45,7 por cento dos eleitores virtuais: 280 mil, num país de seis milhões de pessoas, o número absoluto e relativo mais baixo da história da república e dos regimes representativos portugueses de 1864 em diante. Nas cidades, devido aos bons ofícios dos carbonários, a abstenção excedeu a média nacional e chegou aos 60 por cento.”

Escrevia na altura a “Ilustração Portuguesa”: “Os eleitores constituem uma reduzida minoria no meio da grande massa sonolenta da nação. Foi assim na monarquia, é assim na república.”

José de Castro lá forma o seu segundo Ministério, desta vez com Augusto Soares nos Estrangeiros. A 22 de Junho, mudança importante: Norton de Matos, o major do 14 de Maio, promovido entretanto a coronel, transita das Colónias para a pasta da Guerra.

Em 6 de Agosto, Bernardino Machado, o homem que estava à frente do Governo quando a guerra tinha estalado, um ano antes, é eleito para a Presidência da República. João Chagas regressa a Paris, ao cargo de embaixador.

Em 27 de Novembro, o Governo José de Castro demite-se. Afonso Costa, que sofrera a 3 de Julho um grave acidente de viação, está recuperado. No dia 29, o líder do Partido Democrático regressa pela segunda vez à chefia do Governo (demitira-se em 26 de Janeiro de 1914, depois de um ano de governação, para dar lugar ao Governo da Acalmação de Bernardino Machado, na sequência de um conflito com o Senado). As peças “guerristas” estavam de novo nos seus sítios.

A requisição dos navios alemães

Em 30 de Dezembro, o Governo inglês sonda Lisboa sobre a possibilidade de requisição das dezenas de navios mercantes alemães surtos em portos portugueses no continente, ilhas e ultramar, refugiados desde o início das hostilidades, a 1 de Agosto de 1914. A atitude de Londres devia-se às crescentes dificuldades com a obtenção de transportes marítimos, que escasseavam com a devastadora guerra submarina de que estava a ser alvo por parte dos alemães. O pedido a Lisboa foi feito “em nome da aliança”.

Também Portugal tinha necessidade directa de alguns desses navios para o seu comércio internacional, interrompido ou desorganizado devido à guerra e que já estava a provocar efeitos graves no abastecimento das populações em géneros de primeira necessidade. “Consciente do risco que a requisição dos navios iria acarretar, mas reconhecendo as suas vantagens práticas para justificar uma intervenção que a Inglaterra claramente não desejava, o Governo português procedeu à requisição das embarcações” em 23 de Fevereiro de 1916, nota A. H. de Oliveira Marques. Ao todo, o Governo português requisitou 70 navios alemães e dois austro-húngaros.

Como seria previsível, a resposta por parte da Alemanha foi a declaração de guerra (a 9 de Março, o embaixador alemão em Lisboa, Von Rosen, depositava o documento nas Necessidades), seguida pouco depois do corte de relações diplomáticas com a Áustria.

No dia 10, Afonso Costa pede a demissão e, seis dias depois, está formado o Governo da União Sagrada, composto por democráticos e evolucionistas, cedendo Afonso Costa a presidência do Ministério ao líder destes últimos, António José de Almeida. Os unionistas de Brito Camacho, sem entrar no executivo, afirmavam dar-lhe apoio.

Mas, para efeitos práticos, reconhece A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa e os democráticos continuaram a controlar a situação, já que detinham as pastas mais importantes. Nos Estrangeiros, mantinha-se Augusto Soares.

Em 15 de Março, D. Manuel II tinha telegrafado ao conde de Sabugosa, aconselhando os monárquicos portugueses a oferecerem os seus serviços ao Governo, dada a situação de beligerância. Três dias mais tarde, o embaixador em Berlim, Sidónio Pais, regressa a Portugal.

Em Junho, Afonso Costa inicia os contactos internacionais necessários à coordenação com os Aliados para a entrada de Portugal na guerra. Vai a Paris, à Conferência Económica, e a Londres.

O “milagre de Tancos”

“O Governo da União Sagrada teve de cumprir a difícil missão de organizar uma força expedicionária que fosse combater em França, além de várias expedições a Angola e Moçambique que, aliás, datavam já dos anos anteriores”, diz Oliveira Marques. “O Exército português, em lenta fase de reorganização desde 1911, não estava em condições de ser, desde logo, enviado para os campos de batalha da Flandres e de aí sofrer o confronto com os modernos exércitos europeus”, reconhece.

Até 1910, o Exército português era composto unicamente por tropas do quadro permanente. Por decreto de 25 de Maio de 1911, era criado o serviço militar obrigatório e o sistema de oficiais milicianos. No entanto, esta reforma não passou do papel, devido à resistência passiva dos oficiais do quadro permanente, que não aceitavam de boa vontade o aparecimento de milicianos ao seu nível.

Com o deflagrar da guerra, o sistema teve de ser finalmente introduzido, não só porque os efectivos eram muito reduzidos, mas também porque era conhecida a oposição dos oficiais do quadro permanente a uma eventual entrada de Portugal no conflito.

“Este facto viria a ter reflexos na forma como se processou a mobilização, a partir de 1916”, nota José Gonçalves. “Os oficiais milicianos foram mobilizados, na sua quase totalidade, para a Flandres, enquanto os do quadro permanente fizeram a guerra em África — local onde todos achavam que Portugal devia, de facto, combater. É claro que, com problemas destes a nível da oficialidade, seria muito difícil mobilizar um Exército em condições para combater na Europa. Os oficiais milicianos não tinham experiência de combate, não conheciam as modernas técnicas de guerra, não sabiam impor disciplina nos seus homens.”

De qualquer maneira, em 22 de Julho, uma divisão de 30 mil homens desfila perante Afonso Costa e Norton de Matos. É o “milagre de Tancos”, a preparação em cerca de nove meses de um corpo expedicionário. “Grosso e medíocre”, como o classifica Pulido Valente, Norton de Matos tinha, no entanto, “talentos de organizador e homem de negócios”, ou não fosse anos mais tarde conhecido como o “general Coca-Cola”. José Gonçalves desvaloriza tal proeza: “Em Tancos, (...) não se fez nada que já não se tivesse feito nas restantes unidades: marchas e mais marchas, treino com armas antiquadas, desconhecimento completo do que era uma guerra de trincheiras, inexperiência de exercícios fundamentais para o tipo de guerra da Flandres — granadas, morteiros, metralhadoras, gases, etc.”

Pulido Valente também não se comove com o “milagre” republicano, nome suspeito dado ao evento pela hagiografia jacobina. Segundo ele, Norton de Matos “improvisou tropas, comandos e armamento e, após algumas revistas cerimoniais, mandou tudo para França, sem se preocupar excessivamente com as condições de vida e de luta do Corpo Expedicionário, que criara como pura peça de propaganda”.

A “revolta da batata”

A situação interna, devido ao esforço de guerra e à quebra dos abastecimentos, levara à escassez cada vez maior dos géneros de primeira necessidade e a fome chegava aos sectores mais pobres, especialmente nas cidades. Muitos artigos passaram a ser racionados. Em 5 de Agosto registam-se assaltos às padarias, a 31 o Parlamento vota a pena de morte, por o país estar em guerra.

Afonso Costa, “preocupado acima de tudo com a direcção da guerra e com as relações internacionais, descurava a política interna”, refere Oliveira Marques. “Altamente prestigiado no estrangeiro, negociando com sucesso uma situação favorável para Portugal no futuro concerto das nações aliadas, esquecia-se do desfavor das condições dentro do país e menosprezava as intrigas no seio do próprio partido contra a sua personalidade autoritária.”

Entretanto, no dia 13 de Dezembro, dá-se a revolta militar de Tomar, que marcha sobre Lisboa, mas não passa de Abrantes. O seu chefe, Machado Santos, o “herói da Rotunda” em 1910, foi durante a república, e enquanto viveu, sem filiação partidária, polarizador de um grupo de pressão civil-militar de características radicais e populistas. Era um homem de acção que, segundo os seus biógrafos, preferia à companhia dos políticos a dos marinheiros, soldados e “arraia-miúda” de Alcântara. Ele sabia bem do descontentamento popular.

Em 26 de Janeiro de 1917 parte o primeiro contingente português para a frente de batalha em França, depois de, a 3, se ter conseguido um acordo luso-britânico quanto ao Corpo Expedicionário, que seria chefiado pelo general Gomes da Costa.

A agitação social cresce e os evolucionistas deixam Afonso Costa sozinho. Em 23 de Abril, cai o Governo da União Sagrada. Dois dias depois, Afonso Costa forma novo executivo, desta vez como primeiro-ministro. Mantém-se Augusto Soares nos Estrangeiros.

De 14 a 20 de Maio registam-se motins populares por toda a Lisboa, é a “revolta da batata”, com assaltos às mercearias e “justiça revolucionária” contra os açambarcadores. Afonso Costa é obrigado a adoptar “medidas severas de repressão”, segundo Oliveira Marques. Traduzido em miúdos, manda a tropa e a polícia municipal contra a populaça e as garantias civis ficam suspensas a partir do dia 20. A 9 de Julho há a greve da construção civil, a 12 decreta-se o estado de sítio na capital. À greve dos correios e telégrafos, a União Operária Nacional (organização que agrupa socialistas e anarco-sindicalistas, criada em 1914) marca para 8 de Setembro a greve geral. O Governo faz a mobilização civil dos grevistas.

Apesar da agitação, o Presidente, Bernardino Machado, e o primeiro-ministro, Afonso Costa, partem em visita oficial a França e Inglaterra.

“Em 5 de Dezembro de 1917, com o grosso do Exército combatendo na Flandres e em África e o chefe do Governo em missão fora do país, algumas unidades de Lisboa, apoiadas por elementos populares e com um esteio forte nos cadetes da Escola de Guerra, revoltam-se sob a chefia do ex-ministro em Berlim, o major e professor Sidónio Pais”, escreve Oliveira Marques, com claro acinte. “A revolta fez-se e triunfou, aparentemente contra a guerra e contra a chamada demagogia dos democráticos.”

João Medina “reza” assim o epitáfio político de Afonso Costa: “A entrada de Portugal na guerra e a impossibilidade de atrair para esse esforço de promoção bélica os outros partidos, dos quais só o evolucionista por algum tempo aceitou copiar o modelo francês das ‘uniões sagradas’, deixou de novo o democratismo afonsista a braços com o fado, a glória, o estigma e o cilício de arcar sozinho com a canga da governação: viciada na base a ideia mesma de alternância democrática de partidos no leme do governo, restava, para depor o eterno partido do poder, a solução violenta da espada. Pimenta de Castro fora, neste aspecto, o evidente precursor de Sidónio, ou seja, um Alexandre que trazia para o nó górdio da vida portuguesa a cortante solução da durindana.”

Amanhã:

5 Sidónio Pais, o Presidente-Rei

Para aceder ao primeiro texto da série vá aqui. Ao segundo, aqui. Ao terceiro, aqui.

Sem comentários: