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sábado, 2 de agosto de 2014

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental" - De como nasceu a Europa II


Leituras acidentais de um ocidental. Sexta crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Agosto / Setembro de 2004.

Leituras acidentais de um ocidental

Fernando Correia de Oliveira

De como nasceu a Europa – III

Um relatório produzido este ano pelas Nações Unidas, feito em parte por autores árabes, e com financiamento da Arábia Saudita, retrata de forma catastrófica o mundo árabe e, concomitantemente, o universo islamizado – todos os indicadores de desenvolvimento humano, desde a Educação à Saúde, passando pelo estatuto das Mulheres e Crianças, são dos mais baixos do mundo. E isto, apesar de durante praticamente o último século as elites locais, cleptocráticas e analfabetas, terem disposto mais ou menos de uma das maiores riquezas naturais do século XX, o petróleo. Imagina-se o que seria se, mesmo assim, não houvessem os biliões em divisas que, apesar de desviados directamente para contas na Suíça, sempre foram provocando alguma melhoria entre as populações locais.

Se há universo onde a religião abafa qualquer sinal de cidadania ou laicidade é o do Islão, que tem como cerne o não reconhecer se não a Lei de Alá, e onde nunca ocorreu a separação entre Igreja e Estado.

Calcula-se que três quartos dos 6 mil milhões de seres humanos actualmente existentes professem uma religião, pelo que o mundo ateu ou agnóstico é claramente minoritário.

Quantas religiões há no mundo? Mary Pat Fischer, autora de Religiões do Século XXI, afirma que só em variantes contemporâneas do cristianismo, haverá 21 mil. Ao todo, os cristãos somam cerca de 2 mil milhões, entre católicos romanos, ortodoxos, evangélicos, etc. O Islão, com 1,2 mil milhões de fiéis, também tem centenas de variantes. O hinduísmo (774 milhões), o budismo (359 milhões), a religião tradicional chinesa (225 milhões), o sikismo (18 milhões), ou a fé Baha’i (6 milhões) contam-se entre as grandes religiões, para não falar dos mórmones, das Testemunhas de Jeová, dos taoistas, confucionistas, jainistas, zoroastristas e outros grupos, para os quais há mais dificuldade em avançar com números.

Depois do 11 de Setembro, “a religião tem um papel mais destacado, para o bem e para o mal”, reconhece Dirk Ficca, director do Parlamento das Religiões, a reunião planetária de líderes religiosos que ocorreu recentemente em Barcelona (2).

Mesmo alguns agentes religiosos reconhecem – e basta analisar sem preconceitos a História da Humanidade – que as religiões actuam com frequência como factor de violência e de alienação das consciências, e como elemento de atraso dos povos. A solução proposta pelo comunismo – o Estado militantemente ateu, combatendo o “ópio do povo” – fracassou estrondosamente no século XX, e com efeitos contrários ao pretendido – o fenómeno religioso é hoje mais forte na Europa de Leste do que no ocidente europeu.

Seria um erro pensar, de qualquer modo, uma Europa completamente laica e cosmopolita, até pelas suas raízes. A herança cristã faz parte indelével da Civilização Ocidental. E só ateus muito estúpidos se atreveriam a negá-lo.

As ordens religiosas, fundadas ao longo da Idade Média, serão o fermento de uma unidade europeia, se não sentida, pelo menos pressentida pelas elites locais que, na sua diversidade, tinham a cristandade como ponto de união derradeiro. Uma Europa do pão, mas também uma Europa dividida em zonas claras onde predominava o vinho, ou a cerveja, ou a cidra, divisões que ainda hoje se pode dizer que perduram. Mas a Europa dos conventos organiza-se ainda em volta das suas vilas, conjuntos de casas e de campos de cultivo concentrados à volta de dois elementos aglutinadores – a igreja e o cemitério. Na imagética colectiva, aparece a figura do Cavaleiro Andante, que tem valores religiosos, mas não deixa de manter valores puramente laicos de comportamento, como o trato com os mais fracos (velhos, mulheres, crianças) ou as normas de conduta social, de higiene, de estar à mesa. “A urbanidade, a polidez (urbs, é a cidade, em latim, polis, é a cidade, em grego) começam a opor-se à rus, o campo, zona da rusticidade”, recorda-nos Jacques le Goff no ensaio que temos vindo a citar (3). “Não nos esqueçamos de que os romanos comiam deitados num leito, e que os europeus da Idade Média impuseram a mesa para a refeição. O que os distingue da maior parte dos asiáticos e dos africanos”. O casamento, esse, torna-se decididamente monogâmico, embora a aristocracia tenha mantido uma poligamia de facto, a que a Igreja ia fechando os olhos. Mas a religião torna-o indissolúvel. O estatuto da mulher, apesar de tudo, melhora – vejam-se os paradigmas das “histórias de amor” (logo aí, um conceito novo) de Tristão e Isolda, Abelardo e Eloísa.

A Europa é também feita a ferro e fogo, logo em primeira linha pelas ordens religiosas militares nascidas para a Cruzada (a primeira manifestação do colonialismo europeu?) – Templários, Cavaleiros Teutónicos, Cavaleiros de São João de Acre, etc., o que permitiu aos reinos da cristandade fazerem conviver, por longos períodos, as suas elites, face a um inimigo comum, o Islão, quer no Próximo Oriente quer na Península Ibérica. As peregrinações – a Roma, a Jerusalém, a Santiago de Compostela, são outros movimentos geradores de uma identidade única. As escolas urbanas – as universidades – um movimento que começa em Bolonha, em 1154 (Paris, em 1174, seguindo-se Oxford, Cambridge, Montpellier, Nápoles, Lisboa...), e que ganham desde logo uma admirável autonomia face aos poderes religioso e laico (com as devidas e óbvias limitações) são mais um elemento fundacional da identidade europeia e das suas elites, que viajam por entre elas, convidados a ensinar ou a aprender.

A reforma gregoriana (feita por Gregório VII, papa de 1073 a 1085) teve como principal objectivo proteger o papado das interferências do imperador germânico e de outros poderes laicos, mas contribuiu, de uma maneira geral, para a separação entre clero e laicos, entre Deus e César, entre o papa e o imperador. “Esta é uma solução totalmente contrária à encontrada pela cristandade ortodoxa, de Bizâncio, governada pelo cesaro-papismo, onde o imperador era uma espécie de papa, como desde o início ocorreu com o Islão, que não distingue o religioso do político”, sublinha Jacques le Goff. “Enquanto Alá domina e regula tudo, o cristianismo latino, sobretudo a partir da reforma gregoriana, define uma certa independência e as responsabilidades específicas do laicado. Esta reorganização continua a fazer-se num quadro religioso; o laicado faz parte da Igreja, mas já há uma partilha de responsabilidades, que tornará mais fácil, na Europa da Reforma e do final do século XIX, o aparecimento para além do laicado, da laicidade”.

A Magna Carta, documento imposto em 1215 pela nobreza e pela hierarquia eclesiástica ao rei de Inglaterra Henrique III, constitui o acto fundacional de uma Europa que irá dar ao mundo uma nova organização política – os regimes constitucionais.

A Europa cristianizada, apesar da repressão da Igreja (principalmente contra as ameaças externas – judeus e muçulmanos – e internas, as “heresias”, como as dos cátaros ou dos albigenses, e a partir de 1232, através da Inquisição) não deixa desaparecer por completo as culturas ditas bárbaras, principalmente nos meios rurais. Há toda uma Cultura Popular europeia, muito rica, diversa, que também nos chegou até hoje e é cartão de visita da Europa. Essa cultura dos povos “jogou um papel importante na dialéctica entre a unidade e a diversidade que está na raiz da história europeia”, faz notar o medievalista francês. “Culturas célticas, germânicas, eslavas, alpinas, mediterrânicas, sobreviveram assim a partir do seu avatar medieval”. Em contrapartida, o Islão, onde chegou, destruiu e arrasou todas as manifestações da cultura autóctone – a civilização persa, com a sua música riquíssima, ou a herança budista afegã, continuam a ser ainda hoje alvos a abater pelos zelosos seguidores de Maomé.

A dada altura do processo histórico medieval europeu, reforça-se o papel da cidade face à vila ou ao campo. A Europa dos grandes centros urbanos é diferente, desde a sua génese, do mundo das cidades bizantinas, que não deixam de ser um prolongamento das antigas urbes pré-romanas, ou das cidades muçulmanas, que nunca terão conseguido encontrar uma unidade autónoma face à umma, a comunidade dos crentes, que ultrapassa o conceito de cidade, ou das cidades chinesas, que nunca foram centros de personalidade ou de autonomia.

É na Europa das cidades que, partindo da “civilização do sino”, também ela bem Ocidental na sua forma, se parte para a sinalética sonora laica, para avisar à defesa, à ajuda, à revolta, num tempo cada vez mais laico e onde o relógio mecânico “burguês” terá um papel essencial. É na Europa das cidades, com o comércio internacional, mas também onde os bens transmissíveis são essencialmente móveis – dinheiro – que nascem as instituições financeiras e o capitalismo.

Desde cedo – o Concílio de Tours, em 813 – que a Igreja encoraja o clero a pregar nas línguas ditas “vernaculares” (a palavra verna significa escravo na Antiguidade, passando a indicar as línguas faladas pelos indivíduos social e intelectualmente inferiores). Assim, o poder religioso contribui para a riqueza linguística oral, que nos séculos XII e XIII vai sendo fixada em documentos escritos. Essa diversidade está ligada ao desenvolvimento do Estado.

Contrastando com essa Europa multilingue, correntes artísticas unificadoras varrem a Idade Média do continente, dando-lhe uma coerência estética que chegou aos nossos dias – primeiro o Românico, depois o Gótico. Fortifica-se a identificação entre Europa e Cristandade, território que tem como inimigos comuns os mongóis, a leste, e o Islão, a leste e a sul.

1 – Público, 05 de Julho de 2004

2 – El Pais, 05 de Julho de 2004

3 – Jacques le Goff, L’Europe est-elle Née au Moyen Age?

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