Artigo publicado na última edição da revista Espiral do Tempo
Jost Bürgi, um génio esquecido
O “pai” do segundo
Fernando Correia de Oliveira*
Inventor dos logaritmos, mas não reconhecido por isso; construtor de globos e outras representações astronómicas heliocêntricas, quando isso dava fogueira; fabricante de instrumentos científicos revolucionários. Suíço, relojoeiro, autodidacta, privou com os sábios do seu tempo. E foi o primeiro a construir um relógio capaz de marcar ao segundo. Jost Bürgi é uma personagem com tanto de fascinante como de misterioso.
Quando Giovanni de Dondi apresentou, em 1381, o seu Astrarium, não estava preocupado com horas, minutos ou segundos, mas antes em eclipses, equinócios, solstícios ou signos zodiacais. Apesar do seu modelo ter como base a Terra como centro, o relógio astronómico que construiu estava certo e servia para o que estava destinado – “prever” o futuro em termos de mecânica do Universo.
Globo celeste mecânico (funciona mediante mecanismo de relojoaria), da autoria de Jost Bürgi (1594)
A relojoaria mecânica foi progredindo nos seus primeiros séculos em dois caminhos separados – por um lado, os relógios astronómicos, máquinas sofisticadas e precisas; por outro, relógios de torre, máquinas pouco exactas, que de início nem mostrador tinham – serviam para “bater” as horas, através de sinos a que estavam ligados, e não para as mostrar. Estes últimos usaram depois, até praticamente ao final do século XVIII, um único ponteiro, o das horas, tal a inexactidão, que tornava o ponteiro dos minutos supérfluo. O ponteiro dos segundos, em relojoaria de torre ou grossa, só viria a aparecer quando os mecanismos se electrificaram, no século XX.
Nesta batalha pela medição do tempo, astronomia (astrologia) e relojoaria sempre estiveram muito ligadas. A astronomia (astrologia) deu à relojoaria a base sexagesimal com que ainda hoje se rege, ela própria herança do sistema usado pelos Caldeus nas suas observações dos astros e na sua divisão dos céus.
Graus, minutos e segundos – unidades geométricas – passaram para a linguagem da medição do tempo cronológico. Para diferenciar termos, desde a Idade Média se referiam “minutos de arco” e “segundos de arco” quando se estava a falar de medidas geométricas. “Arco”, aqui, a significar os 360 graus da circunferência, cada um com 60 minutos, cada um destes com 60 segundos. A transposição para o mostrador de relógio foi instintiva.
Para medir os céus, desde cedo a Ciência começou a usar medidores de tempo. A passagem de um determinado astro (estrela) pelo zénite de um lugar (o ponto na vertical) era assinalado e, quando o ciclo (diário) se repetia, tinha sido completado um dia sideral. O Homem, quando teve acesso a relógios mais exactos, descobriu que o dia não tinha sempre 24 horas exactas (e encontrou aquilo que chamou de Equação do Tempo) ou que o dia sideral não coincidia com o dia solar.
Depois, e usando uma vez mais relógios precisos, mediu a ocorrência de fenómenos como eclipses solares ou lunares em sucessivos locais. Comparando as horas assinaladas, fazendo as diferenças, o Homem passava a achar uma das coordenadas mais fugidias – a Longitude. Se 360 graus corresponde a 24 horas, a Terra gira a uma velocidade de 15 graus por hora, ou seja, avança um grau de arco a cada 4 minutos… ou 240 segundos.
Os relógios só começaram a ser úteis como instrumentos científicos na astronomia quando se muniram de ponteiros dos segundos.
Pormenor do globo
É aqui que entra a figura de Jost Bürgi, um nome esquecido muitas vezes na História da Ciência, mas que foi, além de um eminente relojoeiro, um astrónomo experimentado e o inventor dos logaritmos.
Jost Bürgi nasceu a 28 de Fevereiro de 1552, na aldeia de Lichtensteig, de que o avô era ferreiro e administrador de uns 400 habitantes, na região suíça de Toggenburg. Numa Europa varrida pelos ventos da Reforma, descendente de família católica, possivelmente dividido de sentimentos, Bürgi emigrou cedo, não se sabendo ao certo onde terá aprendido o ofício de relojoeiro, depreendendo-se que a arte metalúrgica lhe veio de casa. Terá passado por Nuremberga, Augsburg, Cremona, na altura grandes centros relojoeiros.
Em Estrasburgo, o futuro landgrave de Hesse-Kassel (hoje Alemanha), Guilherme IV, estudioso da astronomia e da matemática, pede em 1579 a Bürgi que se torne Relojoeiro da Corte, em Kassel, para aí desenvolver instrumentos científicos, ajuda-lo na observação dos astros e confirmar o modelo heliocêntrico descrito por Copérnico.
Kassel foi um dos primeiros observatórios astronómicos na Europa, instalado num edifício construído expressamente para o efeito. Um contemporâneo de Bürgi descreve-o como “uma personalidade extraordinária, ao mesmo tempo relojoeiro brilhante, astrónomo competente e excelente matemático – uma combinação única na história da relojoaria”. (1)
Relógio de mesa de Jost Bürgi, com Equação do Tempo
Guilherme IV, em carta de 14 de Abril de 1586, dirigida ao maior astrónomo da altura, Tyhco Brahe, fala-lhe de um relógio extraordinário, muito preciso, que Bürgi tinha construído no ano anterior e que, pela primeira vez tinha, além dos ponteiros das horas e dos minutos, um indicando os segundos, e que acumulava um erro de menos de um minuto em 24 horas. O landgrave estava maravilhado com o suíço, que tinha “a capacidade de inovação de um segundo Arquimedes”, traduzida no “pars minuta secunda” da nova máquina de medir o tempo.
Um matemático que trabalhava com Bürgi no observatório de Kassel (2), dizia então nas suas notas: “A duração de um segundo não é muito curta, parecendo a duração da nota mais curta numa canção moderadamente lenta. O balanço não é igual aos modelos actuais, mas antes foi inventado de tal maneira que as suas oscilações representam um segundo”.
Bürgi tinha inventado para o seu novo relógio um escape que utilizava um balanço com dois braços em espiral, oscilando um sobre o outro, usando quase o mesmo eixo (cross-beat escapement em inglês, échappement croix-choc, técnica redescoberta em 1953 por H. von Bertele).
A relojoaria deve ainda a Bürgi um sistema de dar corda automatizado, que garantia autonomia de um relógio para três meses, bem como a concepção e fabrico de rodas de dentes muito finos, alcançando com isso melhorias extraordinárias na precisão.
O relógio marcador de segnddos, construído em 1605 por Jost Bürgi, e que se encontra hoje no Museu de História de Arte, em Viena
Para além de sextantes, globos celestes e mecanismos de relojoaria orientados ao segundo, Bürgi inventou o compasso de redução e aparelhos de medir distância através de triangulação. Além disso, teve a coragem “herética” de construir em 1591 um relógio astronómico que representava o modelo heliocêntrico (embora nele a Terra e o Sol estivessem estacionários, com a Terra a girar sobre o seu eixo). Na época, isso não se fazia sem grande risco. Com efeito, o italiano Giordano Bruno, defendendo o modelo de Copérnico, foi condenado à morte em 1600 em Roma pelo Tribunal da Inquisição e queimado na fogueira.
Brahe e outro grande astrónomo contemporâneo, Johannes Kepler, trabalhavam na altura no observatório Hradcany, no Castelo de Praga, na corte do imperador Rodolfo II. Brahe e Kepler tinham ouvido falar do relógio maravilhoso de Bürgi, encarando-o como instrumento científico indispensável à prossecução dos seus cálculos e observações.
Assim, o relojoeiro autodidacta suíço (não sabia latim, a linguagem científica da época, nunca publicou qualquer trabalho científico, no sentido moderno do termo) passa a trabalhar a partir de 1604 em Praga, enquanto relojoeiro imperial.
Kepler, muito míope, é ajudado por Bürgi nas suas observações do sol, da lua, dos planetas e das estrelas fixas. E fica impressionado com os métodos de cálculo de fracções decimais ou com as tábuas de logaritmos que o relojoeiro tinha desenvolvido de forma totalmente autónoma, muitos anos antes de Napier ter publicado sobre o assunto. Kepler admite nos seus escritos ter usado os métodos de cálculo matemático de Bürgi em avanços astronómicos como a demonstração da trajectória elíptica de Marte e dos outros planetas em redor do Sol.
Kepler escreve nas suas Tábuas Rudolfinas (1627): “… como ajuda ao cálculo, Jost Bürgi foi levado a esses tais logaritmos, muitos anos antes do sistema de Napier ter aparecido; mas sendo um homem indolente, e muito pouco comunicativo, em vez de alimentar o seu filho para benefício público, abandonou-o à nascença”.
Jost, Joost, Jobst ou Justus é como aparece o primeiro nome deste génio, referido nas mais diferentes fontes. O nome de família, em latim, surge muitas vezes como Byrgius.
Em 1631, Jost Bürgi regressa a Kassel, onde morre a 31 de Janeiro do ano seguinte, a 28 dias (ou 672 horas, ou 40.320 minutos, ou 2.419.200 segundos… ) de fazer 80 anos.
(1) Willebrord Snellius (1580-1626)
(2) Christoph Rothman
*Jornalista e investigador da temática do Tempo, da Relojoaria e da Evolução das Mentalidades
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