quinta-feira, 7 de maio de 2020
Recordando Manuel Francisco Cousinha no dia em que o seu Sino da Paz, na Benfeita, deu mais uma vez 1.620 badaladas
Manuel Francisco Cousinha
in História do Tempo em Portugal (2003)
Cercado no seu bunker de Berlim pelas tropas soviéticas, Adolf Hitler suicida-se de 30 de Abril para 1 de Maio de 1945. No dia 3, o Governo do Estado Novo, culminando a posição de ambiguidade que teve em todo o conflito, decide decretar “luto oficial” de três dias pela morte do Fuhrer. No dia 7, com a rendição total e incondicional do III Reich, termina na Europa a II Guerra Mundial. Por esses dias, ocorrem em diversas localidades portuguesas manifestações espontâneas de regozijo pela vitória dos Aliados e contra o regime salazarista.
Mas, a 19 de Maio, organizada pelas câmaras municipais e pelos governos civis, bem como pelas organizações de massas do regime corporativo (União Nacional, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa, Mocidade Portuguesa Feminina, FNAT, Sindicatos, Casas do Povo e Casas dos Pescadores, Grémios da Lavoura, do Comércio e da Indústria, etc.) ocorre em Lisboa, no Terreiro do Paço, uma gigantesca manifestação de apoio ao Estado Novo e a Salazar. Há um movimento de “Mães de Portugal” agradecidas ao “estadista que soube, através de tantas dificuldades conhecidas e de muitas outras ainda ignoradas, mas que a história divulgará um dia para sua maior glória, evitar, com inexcedível dignidade e proceder clarividente, que a guerra horrorosa que destruía a Europa se alargasse à nossa terra”, como escreve o jornal “A Comarca de Arganil a 5 de Junho de 1945.
É através dessa edição de A Comarca de Arganil que ficamos a saber da “Torre de Salazar”, ou “Torre da Paz”, erigida por essa altura no adro da capela de Santa Rita, na localidade da Benfeita, concelho de Arganil. Nela se instalou o chamado “Sino da Paz”, que tocou pela primeira vez anunciando o fim da II Guerra Mundial.
O sino foi instalado por Manuel Francisco Cousinha, para esse fim, pelo que foi adaptado a ele um relógio com um dispositivo mecânico especial, que automaticamente fazia disparar, todos os anos, 1.620 badaladas, comemorando assim o dia do aniversário do fim do conflito.
Antes de ser instalada, a máquina do relógio que ficou ligada ao Sino da Paz da Benfeita, da autoria de Cousinha, esteve patente em Lisboa, na Casa Travassos, ao Rossio, durante uma semana, para espanto e admiração dos alfacinhas. Sobre todo o dispositivo repousava uma pomba em bronze, poisada numa esfera armilar. A pomba tinha no bico um ramo de oliveira e em volta da esfera lia-se a legenda: “A Paz esteja connosco”. À esquerda e à direita da pomba, gravadas em dois discos também em bronze, viam-se mais duas legendas, citando duas frases proferidas por Salazar na Assembleia Nacional, ao anunciar a vitória dos Aliados: “Bendigamos a Paz” e “Bendigamos a Vitória”. O mostrador do relógio, que já tinha sido instalado na torre, tinha um metro de diâmetro. A iniciativa foi referida em toda a imprensa portuguesa, e até espanhola ou brasileira.
Manuel Francisco Cousinha nasceu a 15 de Julho de 1894 na pequena propriedade “Palheiro às Pontes”, em Sobral Magro, freguesia de Pomares, perto de Arganil, filho de um pedreiro e de uma mãe que tomava conta dos trabalhos agrícolas do pequeno prédio rústico. Todos os domingos o padre da freguesia ia dizer missa ao lugarejo, pago pelas contribuições de quem lá habitava. Um dia, esse padre Nogueira perguntou ao pai de Manuel se se importava que o filho o acolitasse. Dado o assentimento paternal, o pequeno foi instruído nas artes da liturgia por um pároco que se ia espantando com a facilidade de aprendizagem do novel ajudante.
Vendo que tinha ali uma inteligência fora do vulgar, o padre Nogueira instou o pai Cousinha a mandar o filho estudar. Ao que este lhe disse que não havia dinheiro para isso. O padre propôs-se então como que adoptar a criança, passando esta a viver com ele, e encarregando-se o religioso da sua educação. Passados dois anos, era o padre Nogueira transferido para Coimbra e o pequeno Manuel regressou à casa dos pais. Ainda andou nos trabalhos agrícolas, mas cedo se percebeu que ele só atrasava o ritmo dos outros e que não tinha jeito nenhum para isso. O pai, zangado, fê-lo antes ir pastar ovelhas e cabras.
Manuel, que tinha muita habilidade de mãos e já vira um ou outro relógio, e para quem o tempo corria agora devagar, lembrou-se, para se entreter, de construir uma máquina semelhante às que vira. Ao fim de três anos, reza a história, o pequeno pastor, então com nove anos, tinha conseguido fabricar, com casca de carvalho e folha-de-flandres, um relógio. As ferramentas usadas tinham sido apenas uma velha sovela, uma tesoura e uma navalha comprada de propósito. A campainha do relógio era um chocalho de cabra. Guardando o segredo da sua façanha, Manuel guardou a maquineta no palheiro da propriedade. O pai, ao passar um dia por ali, ouviu o tiquetaque do relógio e ficou intrigado. Depois de muitas insistências, Manuel lá apresentou a máquina, mas a família julgava que ele a tinha roubado em algum lado. Mostradas as ferramentas, chora o pai de alívio e de orgulho, convencendo-se de que aquele filho não nascera para pastor.
Manuel vai para Lisboa, recomendado a um tio, esperançado em aprender a arte de relojoeiro. Mas, à chegada, o familiar arranjou-lhe antes trabalho de estiva, no porto da capital.
Aproveitado a ausência temporária do tio da cidade, Manuel Cousinha foi oferecer os seus préstimos a um relojoeiro estabelecido na rua da Prata. Desconfiado da juventude e do aspecto rude do rapaz, o relojoeiro resiste, mas perante a insistência do candidato, emprega-o por alguns dias, à experiência, dando-lhe pequenos trabalhos de limpeza. Mas, reza a lenda, logo ao terceiro dia apareceu o caso de um despertador velho e avariado. Lançado o desafio, Manuel consegue arranjá-lo em dois tempos. O patrão fica convencido e emprega-o definitivamente.
Quando Portugal entra na I Guerra Mundial, Manuel Cousinha faz parte do Corpo Expedicionário Português (CEP) que segue para França. Foi como cabo, foi ferido à bala numa perna, teve combates de arma branca, foi condecorado. Extremamente religioso, rezava o Terço todos os dias, e organizava leituras de textos religiosos com os colegas.
Terminada a campanha militar, Manuel foi descansar para a pequena cidade de Morez, no Departamento do Jura, região da França que faz fronteira com a Suíça. Porque foi ele lá parar – o acaso ou a determinação em saber mais – não se sabe ao certo. O que se sabe é que Morez sempre foi uma zona de tradição relojoeira. Aliás, como já referimos, há várias máquinas “Morez du Jura” a equipar torres sineiras portuguesas nos finais do século XIX e início do século XX.
Por essa altura, um tal alferes Amaral, do CEP, ter-lhe-á ensinado os rudimentos do desenho industrial. Com a estadia em Morez, uma espécie de estágio, Manuel Cousinha aprofundou os conhecimentos quase instintivos que até aí tivera sobre relojoaria.
Regressado depois a Portugal, Manuel Francisco Cousinha sai das fileiras do exército. Tencionava voltar a França, para lá ganhar a vida como relojoeiro, mas casou entretanto e assentou arraiais na margem esquerda do Tejo. Em 1930 funda a firma “A Boa Construtora – Fábrica Nacional de Relógios Monumentais”, num barracão em pleno coração de Almada.
O primeiro relógio com carrilhão que construiu foi o que lhe encomendaram para a basílica de S. Pedro, de Guimarães. Tocava o “avé” dos Pastorinhos de Fátima, a “Canção das Ceifeiras” e o hino da cidade. Foi premiado na Grande Exposição Industrial Portuguesa de 1932. Seguiram-se muitos outros, no continente ou nas ilhas, no ultramar ou no Brasil. Há referência ao que colocou na igreja matriz de Vila do Porto (Santa Maria, Açores) ou ao do torreão municipal de Castelo Branco (batendo as horas, que repetia, e os quartos, tocando o hino da cidade).
Além do da “Torre Salazar”, que ele ofereceu aos seus conterrâneos, fez um para o edifício dos Paços do Concelho do Fundão, cujo mecanismo acendia e apagava, às horas previamente determinadas, a iluminação pública da vila.
O relógio Cousinha montado na fábrica do Pessegueiro (Sever do Vouga), mandado instalar pela Sociedade Industrial do Vouga no torreão desse seu estabelecimento fabril, batia as horas e meias horas e, através de sirene eléctrica, audível num raio de cinco quilómetros, dava apitos que indicavam as horas de abrir e fechar a fábrica, os intervalos para almoço ou pausas de descanso, isto tudo atendendo ao horário de Verão ou de Inverno ou ao regime de “semana-inglesa”. Emudecido aos domingos, este mecanismo principal comandava outros cinco secundários, instalados em dependências da fábrica e que tinham a marcha regulada pela dele.
Mas a glória máxima da fábrica “A Boa Construtora” foi o gigantesco relógio carrilhão inventado por Manuel Francisco Cousinha, feito em liga de bronze e antimónio, em escassos quatro meses, e inaugurado a 8 de Dezembro de 1947 na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Porto.
Com a respectiva base, aquele autêntico monumento de relojoaria media 3,6 metros de comprimento, 1,30 metros de largura e um metro de altura, pesando três toneladas. Dando horas e quartos, estes eram precedidos pelo coro do “Avé dos Pastorinhos de Fátima”, enquanto a Introdução desse hino precedia as horas. Após o toque do meio-dia, ouvia-se a “Salve Rainha”, havendo ainda mais uns quantos hinos religiosos para o período da manhã e da tarde, todos diferentes. Por meio de um motor privativo elevavam-se sete pesos, cuja descida fazia funcionar o colossal relógio. Dezoito sinos, com um peso total de sete toneladas, serviam para dar o total das sete melodias programadas. O mecanismo fazia andar os ponteiros de quatro mostradores exteriores, na torre da igreja.
A peça, que foi vendida por Cousinha sem qualquer margem de lucro, antes fazendo apelo à sua fé religiosa, estava decorada ao centro com uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, servindo-lhe de cercadura a legenda: “Senhora da Conceição – Rainha de Portugal – Protegei este País – E a Indústria Nacional”.
No ano seguinte, 1949, “A Boa Construtora”, Fábrica de Relógios Monumentais, começa a laborar em novas instalações, no mesmo sítio onde existira o barracão. É o período áureo da empresa de Manuel Francisco Cousinha, que emprega dezenas de operários e, além de relógios de torre, fabrica relógios de ponto, pára-raios, cata-ventos, sirenes, etc.
Muitos dos pormenores da vida de Manuel Francisco Cousinha sabem-se hoje porque um amigo seu, o conde de Rio Maior, o visitava frequentemente, devido ao facto de ambos serem extremamente religiosos e devotos de Nossa Senhora de Fátima. O conde passou a escrito uma pequena biografia do humilde pastor transformado em industrial de sucesso.
Falecido o fundador, em Outubro de 1961, com 67 anos, nova geração toma conta da fábrica. Com as dificuldades laborais ocorridas após o 25 de Abril de 1974, e havendo uma inadaptação da produção às novas exigências do mercado (relógios electrónicos, com circuitos integrados, concorrência asiática muito forte), a empresa vai à falência.
Hoje, um neto de Manuel Francisco Cousinha, Luís, está à frente de uma empresa herdeira de toda esta história, a “Cousinha – Electromecânica e Informática”, que além de ir restaurando e reparando as máquinas instaladas pelo avô um pouco por todo o país, vai também trabalhando no restauro de máquinas mais antigas (como os relógios de torre da Igreja de Porto Formoso, São Miguel, Açores; Sé de Vila Real de Trás-os-Montes; Torre Pública da Ribeira Grande, São Miguel, Açores; Torre Pública de Vila Franca do Campo, São Miguel, Açores; Torre Pública da Freguesia de Póvoa e Meadas, Castelo de Vide, Portalegre; Igreja de Moimenta, Vinhais, Bragança; Igreja da Base Aérea nº 1, Granja do Marquês, Sintra; Sé de Miranda do Douro).
O trabalho tem aumentado nos últimos anos, com o aumento da sensibilidade colectiva para este património, depois de décadas de abandono a que a relojoaria grossa, férrea ou de torre foi sendo votada por entidades públicas e privadas, religiosas e laicas, de Portugal.
Das mais de 2 mil folhas de obras que, ao longo da sua história, desde 1930, “A Boa Construtora” executou, existem hoje apenas cerca de 900 processos, devido às contingências por que passou o acervo histórico da empresa (incêndio, duas cheias e duas mudanças de instalações). (121)
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