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domingo, 9 de dezembro de 2018

Relógios da Cidade Proibida em Lisboa


Concubina imperial, período do Imperador Qianlong (pormenor, com a personagem a mostrar na mão um relógio mecânico, de produção ocidental)

Decorre até 4 de Março de 2019 no Palácio Nacional da Ajuda a exposição "A Rota Marítima da Seda", constituída por peças do Museu da Cidade Proibidia, e no âmbito da visita de Estado que o Presidente chinês, Xin Jin Ping, fez em Dezembro de 2018 a Portugal.

Entre os 1,8 milhões de peças que constituem o acervo do Museu da Cidade Proibida, e para ilustrar a Rota Marítima da Seda (iniciada pelos portugueses e em alternativa à clásssica, milenar e terrestre Rota da Seda), foram escolhidas peças de porcelana, de jade, de vidro, de esmalte, instrumentos científicos e... relógios.

Como temos referido amiude, Portugal e o Padroado Português do Oriente (com sede em Goa), foram os responsáveis pela introdução da relojoaria mecânica em toda a Ásia Extrema.




Relógio de produçãp francesa, final do século XIX, com carrilhão, para a corte imperial chinesa

Em 2009, sobre o tema, escrevemos:

Tomás Pereira (1645 — 1708), Um Jesuíta na China de Kangxi foi uma exposição promovida em 2009 pelo Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, em honra deste homem multifacetado, que teve um papel importante nas relações entre o Império do Meio e Portugal. Entre muitas outras coisas, Tomás Pereira foi também relojoeiro do Imperador. Para ilustrar o tipo de relojoaria grossa que se fazia ao tempo dele, foi-se buscar um exemplar recentemente restaurado.

O relógio que esteve patente na exposição é um exemplar do século XVIII, possivelmente de fabrico nacional, provavelmente anterior ao Terramoto, proveniente do Convento de Jesus, em Lisboa, e intervencionado no final do século XIX.

Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, o espólio dos vários conventos, incluindo relógios, passa para terceiras mãos, sejam elas o Estado ou os particulares. O Convento de Jesus passou a albergar a Academia das Ciências, local onde ainda hoje a instituição se encontra, e o relógio saiu de lá em 1883. Foi parar ao Arco Triunfal da Rua Augusta, que era finalmente construído, mais de um século após o terramoto de 1755.

O relógio do Convento de Jesus é um exemplar da chamada relojoaria grossa ou férrea e as suas peças estão arrumadas numa gaiola cavilhada, característica da técnica dos séculos XVII e XVIII. Como relata a imprensa da época, o relógio “não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua”. Ou seja, era, como muitos exemplares do seu tempo, para “bater” e não para “mostrar” o tempo, não tinha mostrador. Assinalava sonoramente as horas e os quartos através de sinos que estavam a ele ligados. Quem o adaptou para ter mostrador e ponteiros e lhe deu um novo escape (substituindo o de folliot por um de âncora) foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, ainda hoje a única que se dedica ao ensino da relojoaria em Portugal. O relógio acaba de ser restaurado, numa acção de mecenato que incluiu também a recuperação do relógio que se encontra actualmente no Arco da Rua Augusta e que o foi substituir nos anos 40 do século passado.


Relógio que esteve no Conventio de Jesus, em Lisboa, e que chegou a estar no Arco da Rua Augusta (arquivo Fernando Correia de Oliveira)

Escolhemos este exemplar de relojoaria grossa para ilustrar o tipo de relógios que os padres jesuítas fabricavam no século XVII na China. Foram os portugueses que introduziram a relojoaria mecânica, primeiro na Índia, depois na China, no Vietname, na Coreia e no Japão, quase sempre pela mão pioneira dos Jesuítas.

Quanto à China, essa entrada do relógio terá ocorrido em 1582, através de Macau, e como forma de impressionar o vice-rei de Cantão. Segundo relatos coevos de Francisco de Sousa, perante tão estranho e fascinante objecto, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.

A primeira embaixada jesuíta a Beijing, em 1601, dirigida por Michele Ruggieri e Matteo Ricci, inclui relógios entre os presentes. Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem. Na visão de alguns historiadores chineses, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, desiludida, como veio a acontecer). Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”. Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau, destinados a “abrir portas” entre eunucos e mandarinato.


Jesuías vestidos de mandarim, na corte imperial chinesa

Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira. Este último, músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.

É esse relógio com carrilhão que aparece na célebre gravura incluída na Mursurgia Universalis, de Atanásio Kircher, de 1650. O mecanismo de relojoaria accionava um tambor com espigões, semelhante aos das caixas de música, que por sua vez accionavam arames ligados a sinos, assinalando todas as horas com melodias tradicionais chinesas. Na figura, onde se assinala com “x” está o escape do relógio, do tipo folliot.


Esquema do relógio construído por Tomás Pereira

Quanto a Gabriel de Magalhães (Pedrógão Grande, 1609 – Beijing 1677), sabe-se que produziu pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir (e até escreveu um poema dedicado ao Relógio, essa máquina que “roda sem descanso e dá horas sempre certas”). Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões.


Em cima, relógio de mesa, com autómatos. Em baixo, relógios de bolso. Produção francesa e inglesa, respectivamente, para a corte imperial em Beijing.



Outro exemplar de produção ocidental exposto agora em Lisboa e que pertence ao acervo do Museu da Cidade Proibida


Sobre a introdução da relojoaria mecânica na China, trasnscrevemos também parte do artigo que escrevemos em 2004 para obra editada pelo Instituto Camões:

[...] Desde o início que a Companhia de Jesus esteve ligada ao destino de Macau (os três primeiros padres chegaram ao território em 1562). Fundada como resposta de Roma ao movimento da Reforma, a nova ordem religiosa aproveitou a Expansão portuguesa, “colou-se” a ela, onde quer que ela fosse. O Oriente não foi excepção. O objectivo era “conquistar” pela fé aqueles desconhecidos, imensos e superpovoados territórios. E Macau, onde o primeiro bispo “do Japão e da China”, D. Melchior Carneiro, chega em 1568, era a antecâmara do Padroado Português do Oriente (monopólio religioso concedido pelo papa a Lisboa), que ali preparava os seus agentes evangelizadores no contacto com os hábitos e a língua dos gentios. Mas a resistência da China à entrada dos padres era grande.

Um dos religiosos dessa época, Francisco de Sousa, relata que, em 1582, ocorreu um incidente “do qual com maior fundamento se podia esperar serem os portugueses lançados de Macau, que os padres admitidos na China”.

Beijing tinha mudado de vice-rei de Cantão, a província que tinha poder administrativo sobre Macau. O novo mandarim acusava os portugueses de estarem a usurpar a justiça imperial, por levantarem tribunais ou decidirem causas. Além disso, estariam a “meterem estrangeiros em terra firme”, especialmente japoneses e cafres. Mandou o vice-rei que o Capitão de Macau e o seu Bispo, Belchior Carneiro, comparecessem perante si, em Chaoqin, no continente, onde residia. Os portugueses enviaram em nome do Capitão, o Ouvidor; em nome do Bispo, os religiosos Miguel Rugieri e Francisco Pacio.

Depois de um primeiro encontro, aprazível, em que a delegação ocidental apresenta sedas e cristais de presentes ao vice-rei (que as paga), faz-lhe chegar posteriormente a informação de que dispunha de “uma máquina de aço toda de rodas por dentro, que continuamente se moviam por si mesmas, e mostravam por fora todas as horas do dia e da noite, e ao som de uma campainha dizia o número de cada uma delas”.

E, perante a curiosidade ansiosa do vice-rei, dá-se o facto histórico: a 27 de Dezembro de 1582, os italianos Rugieri e Pacio fazem o que se pensa ser a introdução do primeiro relógio ocidental na China. Seria, segundo o que se sabe, um relógio de mediana grandeza, “obrado por excelente artífice”, e mandado da Europa ao padre português Rui Vicente, que o destinou à missão da China.

Apresentado o relógio, nas palavras de Francisco de Sousa, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.

Segundo alguns historiadores chineses contemporâneos, o presente do relógio mecânico ao vice-rei de Cantão foi essencial para lhe ganhar as boas graças e conseguir a permanência dos portugueses em Macau. Sustenta ainda que foram os relógios – e outra mercadoria rara e idolatrada, o âmbar cinzento – que abriram a corte imperial, em Beijing, aos jesuítas, que tinham facilidades de comércio em toda a região.

Ganhar as graças do vice-rei de Cantão, era uma coisa. Mas chegar a Beijing, a milhares de quilómetros de distância, era outra. Os fundadores da Missão católica na China, os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, acompanhados de outros jesuítas, como os portugueses António de Almeida e Duarte de Sande, conseguiram atingir, depois de longa e complicada viagem, a corte imperial — estava-se a 24 de Janeiro de 1601. A embaixada religiosa levava consigo vários presentes. É claro que os relógios não podiam faltar. Os objectos não eram entregues directamente ao imperador, mas antes ao grupo de eunucos que verdadeiramente detinha o poder na Cidade Proibida.

Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.

Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem.

Na visão dos historiadores chineses já referidos, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, como veio a acontecer).

Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”. Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau.

Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira.

Este último, nascido em 1645, em São Martinho do Vale, concelho de Barcelos, foi uma das figuras mais polifacetadas e curiosas entre os jesuítas portugueses a servirem no Oriente.

Em 1672, estando ele em Macau, o imperador Kangxi (já da dinastia Qing, grande admirador das técnicas ocidentais, apaixonado pelos relógios, chegando a fazer poemas sobre eles), mandou chamá-lo a Beijing, devido às referências que ouvira dele por parte de outro jesuíta, o belga Ferdinand Verbiest. Ficou por lá os 35 anos seguintes, até morrer, em 1708. Músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.

Os jesuítas, a elite europeia daquele tempo, eram gente de muitos talentos, não se limitando ao conhecimento da mecânica aplicada à relojoaria. Fabricavam outros instrumentos científicos, como lunetas. Sabiam da língua, fazendo os primeiros dicionários e gramáticas de chinês para línguas ocidentais; sabiam de cartografia, desenhando as primeiras representações do novo mundo a uma corte chinesa habituada a “estar no meio”; sabiam de música, de pintura, eram diplomatas. Quase todos eles eram também astrónomos. A previsão acertada de um eclipse solar em Junho de 1629 permitiu aos jesuítas, com o seu método, ganharem aos “adversários” que a corte lhes tinha apresentado – adeptos dos métodos tradicional chinês e islâmico. Nesse ano, são nomeados os primeiros astrónomos ocidentais para o chamado Tribunal das Matemáticas, até então sob direcção de quadros islamizados (Adam Schall, Gabriel de Magalhães, Manuel Dias, Ferdinand Verbiest, Tomás Pereira, Terrencius são alguns dos jesuítas que ascendem ao mandarinato, responsáveis pela modernização do pensamento científico chinês no século XVII). Este Tribunal das Matemáticas, crucial na administração do poder, interface entre os deuses no céu e o Imperador-deus na terra, destinava-se a fazer os calendários, a prever os eclipses, a fabricar e manusear os instrumentos científicos necessários a essas missões.

Matteo Ricci, em carta para Roma, em 1605, dizia: “Estes globos, relógios, esferas, astrolábios, e outros, que fiz e cujo uso ensino, deram-me a reputação de ser o maior matemático do mundo. Não tenho um único livro de astrologia, mas apenas com a ajuda de algumas efemérides e almanaques portugueses, prevejo por vezes eclipses mais acuradamente” que os 200 funcionários chineses e árabes empregues pelo imperador para a feitura do calendário.

Os padres, aos olhos dos mandarins chineses, tinham muito menos uma função religiosa ou de proselitismo (quando os jesuítas seguiam esses caminhos eram expulsos ou tinham outros problemas) e muito mais uma função de especialistas técnicos. Esse Tribunal das Matemáticas não era mais do que um Observatório Astronómico, que aliás ainda hoje existe em Beijing, embora a maioria dos instrumentos que lá estão sejam réplicas (os genuínos, anteriores à chegada dos ocidentais ou construídos pelos jesuítas, foram pilhados por assaltos sucessivos de revoltas internas ou invasões estrangeiras).

Os jesuítas tinham outros observatórios astronómicos instalados nos terraços das suas residências, em Beijing. Com as observações de eclipses, determinavam com exactidão as coordenadas geográficas das várias cidades chinesas.

Na Academia das Ciências, em Lisboa, há relatos dessas observações astronómicas. Uma diz respeito ao eclipse solar ocorrido a 15 de Julho de 1730, medido pelos padres André Pereira e Inácio Kegler. André Rodrigues faz, no final do século XVIII, um balanço que manda para aquela instituição, das dezenas de observações de eclipses solares e lunares entre 1753 e 1794. Dos globos construídos pelos ocidentais em Beijing, conhece-se hoje apenas um exemplar, e que se encontra na British Library, Londres. A esfera, de madeira pintada e lacada, com diâmetro de 59 cm, correspondendo a uma escala de 1/21.000.000. O chamado globo chinês, executado em 1623, baseia-se nos conhecimentos geográficos da época mas, especialmente, está apoiado no planisfério desenhado por Matteo Ricci em 1602. São seus autores os jesuítas Manuel Dias, o Jovem (Castelo Branco, 1574 – Beijing, 1659) e Nicolo Longobardi (1559, Sicília – 1654, Beijing).

Sabe-se que Gabriel de Magalhães produziu em Beijing pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir. Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões externas que já referimos.

Um “estrangeirado”, João Jacinto de Magalhães, estando a viver em Londres, escrevia em 1782 ao governante português Martinho de Melo e Castro, sobre os instrumentos científicos que lhe tinham sido encomendados e destinados ao bispo de Beijing (continuava a preocupação portuguesa e da instituição Igreja de abrir as portas do Império do Meio através de uma superioridade técnica e científica).

O mesmo João Jacinto de Magalhães tinha escrito em 1768 ao seu compatriota Ribeiro Sanches (na altura a servir como médico na corte russa, em São Petersburgo) dando-lhe conta de que fora ver umas “máquinas prodigiosas e preciosas” que, de Inglaterra, iam ser remetidas aos imperadores da China e do Mogol (Índia), constituídas por figuras de animais, que eram movimentadas por um sistema de relojoaria.

O diálogo epistolar entre Lisboa, Londres, São Petersburgo e Beijing, no final do século XVIII, protagonizado por portugueses e estrangeiros, religiosos e laicos, e tendo essencialmente como tema as observações astronómicas, a troca de informações sobre fauna e flora, terá sido o auge do diálogo científico que trouxe o Oriente ao Ocidente.

Se em 1640 Portugal recupera a independência de Espanha, quatro anos mais tarde instala-se no Trono do Dragão uma nova dinastia imperial. Os portugueses tinham chegado ao contacto com a China no final da dinastia Ming, a partir de 1644 passam a tratar com os Qing, manchus que duraram até 1911, quando a República é proclamada.

São desse tempo as grandes missões diplomáticas da Coroa portuguesa enviadas à China – Manuel de Saldanha (1670), Bento Pereira de Faria (1678), Alexandre Metello (1727), Pacheco de Sampaio (1753) numa diplomacia própria, muito auxiliada em Beijing pelos jesuítas, e que fazia a inveja do resto da Europa. É também o tempo do contacto directo com três grandes imperadores chineses – Kangxi, Yangzheng, Qianlong (de 1661 a 1799) – e de alguma simpatia particular que o primeiro deles e alguns sectores da corte sentiam por Portugal, em detrimento de outras potencias ocidentais. Muitas vezes, por intercessão dos padres, jogava-se, e ganhava-se nessas audiências a continuidade do estatuto de Macau.

Os presentes que a Coroa portuguesa enviava a Beijing eram cada vez mais espectaculares. Na embaixada de Bento Pereira de Faria, por exemplo, seguiu um leão, caçado em Moçambique, levado para Goa, daí transportado para Macau e, depois, para a capital do império. Kangxi, acompanhado de dois filhos, foi ver de imediato o animal, mesmo antes de receber a embaixada. “As crianças ficaram radiantes”, relata o jesuíta Verbiest. A embaixada de Metello, ao tempo de D. João V, terá sido a reedição asiática da enviada a Roma. “Na Corte fiz a minha entrada tão estrondosa que entendo se não tinha visto acção tão luzidia em toda a Ásia, e assim o confessam os que se prezam de ter notícias”, diz ele. Era, na verdade, uma comitiva impressionante, composta por 326 pessoas, 30 andores amarelos para transportar os presentes ao imperador, 12 azuis para o guarda-roupa do embaixador, 24 carros com os móveis da sua casa, 40 cavalos ajaezados de veludo guarnecido de prata e ouro…

No Museu de Física da Universidade de Coimbra há uma espectacular peça, “Magnete chinês contido numa coroa”, e cujo elemento central é um bloco de magnetite de dimensões invulgares, pesando cerca de 12 kg. Desconhece-se a sua origem exacta mas, segundo a tradição, a pedra teria sido encontrada na China e vindo para Portugal como oferta de Kangxi a D. João V. A pedra encontra-se envolvida numa coroa real de metal dourado e todo o conjunto se encontra suspenso, por meio de uma corda, de uma trave horizontal de madeira assente em duas colunas verticais. Um sistema de roldanas permite elevar e baixar a pedra. Na sua versão original, uma esfera armilar encimava o conjunto, desconhecendo-se hoje o seu paradeiro.

O auge da influência dos jesuítas junto do imperador da China ocorre no reinado de Kangxi. Ele fora educado por Verbiest, admirava as coisas do Ocidente – escreveu poemas louvando os óculos, outra invenção introduzida na altura, além de estrofes aos relógios.

Em 1688, Kangxi nomeia o já referido padre Tomás Pereira, que tinha sido seu mestre de música, para integrar uma expedição político-militar que seguiu para norte, para conferenciar com representantes do czar russo sobre questões de fronteira na região do Amur. O outro estrangeiro na missão, actuando também como “técnico”, era o padre francês Jean-François Gerbillon. Actuando como intérpretes-mediadores, os dois jesuítas, usando o latim e o chinês, desempenhariam um papel crucial na negociação do Tratado de Nerchinsk, o primeiro acordo internacional feito por um governo chinês e documento-base na delimitação das fronteiras entre os dois gigantes asiáticos, que funcionou praticamente até à actualidade.

A cartografia moderna foi uma das principais contribuições científicas desse tempo. O padre Francisco Cardoso, chegado à China em 1710 e falecido em Beijing em 1723 fez parte de uma equipa de jesuítas que elaborou mapas de várias regiões do país, incluídos num Atlas publicado na capital chinesa em 1718. E o primeiro mapa da China a aparecer num Atlas europeu, como sublinha o historiador Joseph Needham, é da autoria do jesuíta português Jorge Ludovico.

Grato pelo papel dos jesuítas na negociação do tratado de Nerchinsk, (só assinado em 1689), Kangxi faria publicar, em 1692, um célebre édito de tolerância, onde a fé cristã era aceite como religião institucional no império. Mas o édito seria pouco depois revogado pelo seu sucessor.

A primeira tentativa de evangelização da China é feita pelos nestorianos, nos séculos VII e VIII. Esta corrente do cristianismo, iniciada pelo patriarca Nestório, de Constantinopla, considerada heresia a partir de 431, expande-se fortemente na Ásia, a partir do Egipto, atingindo a Pérsia, a Índia, chegando à China no tempo da dinastia Tang. Os núcleos cristãos tinham há muito desaparecido quando os jesuítas chegaram a Beijing. Mas, em 1625, foi descoberta perto de Xian (antiga capital) uma enorme pedra de mármore negro, com duas toneladas e 2,79 metros de altura, assente sobre uma gigantesca tartaruga. Estava esculpida e cheia de inscrições. Além do chinês, descobriu-se mais tarde, contava uma história em siríaco. Era o “Memorial da propagação na China da religião luminosa vinda de Daqin”. A tal “religião luminosa” era a pregada por Cristo e Da Qin significava o Império Romano. Foi um jesuíta português quem, em 1628, fez a tradução para a linguagem corrente chinesa dessa estela, de grande importância para os jesuítas, que assim legitimavam historicamente, e no tempo, a sua religião. Na sua obra Relação da Grande Monarquia da China, Semedo relata o episódio e transcreve a tradução.

O jesuíta António de Magalhães seria o primeiro “embaixador” chinês enviado a Portugal, formalmente empossado por Kangxi. A Gazeta de Lisboa de 24 de Dezembro de 1722 relata que ele, na qualidade de “Embaixador da China e seu Mandarim de letras”, teve “audiência particular de Suas Majestades”. O aspecto de Magalhães, vestido de mandarim, todo de vermelho e de longas barbas, surpreendeu Lisboa.

Quando Qianlong ascende ao poder, em 1736, o português mais proeminente em Beijing era o jesuíta Félix da Rocha, que chegou a Presidente do Tribunal das Matemáticas. Mas, em Portugal, com o Marquês de Pombal, os jesuítas eram extintos e expulsos, prelúdio da sua extinção a nível internacional. Na China, a Questão dos Ritos (guerra teológica com Roma) ajudava à sua perca de peso. Sintomaticamente, foi um franciscano, D. Frei Alexandre de Gouveia, Doutor em Matemática pela Universidade de Coimbra, nascido em Évora, que D. Maria II nomeou em 1783 como Bispo de Pequim mas que, aos olhos do imperador, era apenas um “técnico” mais – e que ele tinha expressamente encomendado de nacionalidade portuguesa – para substituir no Tribunal das Matemáticas um Félix da Rocha já muito velho e que viria a falecer em 1781.

Muitos dos jesuítas ocidentais que morreram em Beijing estão enterrados no cemitério de Chala (Sha Lai Um Di), também conhecido como o Cemitério dos Portugueses. Foi inaugurado quando Matteo Ricci ali foi enterrado, em 1622. As estelas funerárias (algumas delas vindas mais recentemente de outros cemitérios da cidade) mostram um curioso e significativo estilo que mistura a cosmogonia tradicional chinesa (dragões) com os sinais cristãos. Hoje, nas suas instalações funciona uma Escola de Quadros do Partido Comunista.

Das igrejas construídas pelos jesuítas em Beijing, só a Catedral do Sul (Nan Tang) está aberta ao culto, tendo sido recentemente restaurada.

Quanto ao observatório, Gu Guan Xiang Tai, permanece hoje de pé (está actualmente a ter obras de restauro na zona do terraço), fica situado num dos lados da avenida Xang’an, a maior da capital, atravessando-a de leste a oeste.


Representação das observações astronómicas em Beijing, com a ajuda dos Jesuítas


Esferas armilares - o conhecimento técnico ocidental ao serviço das observações astronómicas imperiais chinesas - objectos do Museu da Cidade Proibida, agora expostos em Lisboa



Em cima, o Imperador Qangxi. Em baixo, o Imperador Qianlong



Johann Adam Schall, jesuíta ao serviço do Padroado Português do Oriente, com o Imperador Shunzi



Em cima, representação do Observatório Astronómico de Beijing (onde funcionava o Tribunal das Matemáticas) ao tempo da actividade dos jesuítas no local. Em baixo, o Observatório, na actualidade (arquivo Fernando Correia de Oliveira)

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