Soam — devem ser oito as que não conto — badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteiro no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contacto com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me
pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não
contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures
exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma
alma que fosse exterior.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
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