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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Há 140 anos... suicidava-se José Fontana, relojoeiro e revolucionário


José Fontana (gravura no António Maria nº 253, de 3 de Abril de 1884)

A 2 de Setembro de 1876 suicidava-se em Lisboa o relojoeiro e revolucionário profissional suíço Giuseppe Fontana. Para a História, passaria com o nome de José Fontana, introdutor em Portugal do ideário socialista e fundador do partido com esse nome.

Passados exactamente 140 anos sobre a morte de Fontana, transcrevemos aqui parte do Capítulo IV do livro O Relógio da República (Âncora, 2010), onde se aborda a relação entre as comunidades relojoeiras helvéticas e os ideiais anarquistas, comunistas e socialistas que inspiraram figuras como Bakunine (em 1869, dá conferências no Locle e encontra-se com relojoeiros que tinham acabado de formar a primeira sociedade de resistência autónoma) ou Kropotkin:

A Relojoaria como inspiradora de utopias sociais e políticas. Como um jovem relojoeiro suíço, Giuseppe Fontana, esteve na génese das ideias socialistas em Portugal, fundou associações de classe, estimulou o cooperativismo – a curta vida de José Fontana. A questão dos Horários de Trabalho, antes e depois da proclamação da República.

Desde o aparecimento da Relojoaria Mecânica, no final do séc. XIII e início do séc. XIV, que muitos autores, nomeadamente de textos religiosos, sentiram a tentação de comparar o comportamento das engrenagens dos medidores do tempo com o Universo.

E Deus foi chamado de Supremo Relojoeiro, criador e guardião da Mecânica Celeste, tão perfeita na sua Harmonia de Esferas. Os corpos celestes com os seus ritmos exactos, eram, eles próprios, inspiradores dessas mesmas engrenagens, que os representavam em miniatura, através de relógios astronómicos. Na Terra, os reis deveriam governar segundo as regras do “relógio” de Deus e serem, eles próprios, “mestres relojoeiros” das sociedades que tinham ao seu cuidado.

Os Enciclopedistas, o Século das Luzes, voltaram a fascinar-se pelo mundo da relojoaria. E essa relação entre Relojoaria e Filosofia irá prolongar-se nos séculos XIX e XX a anarquistas, socialistas e comunistas.


O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, neto e filho de relojoeiros, aprendeu o ofício, tendo-o exercido na oficina da família, em Genebra


O filósofo genebrino  (1712-1778), no seu insistente desejo de encontrar um país ideal onde Natureza e Cultura chegassem a uma síntese harmoniosa, pensava na Suíça como a terra onde uma população se ia desenvolvendo sem abandonar o contacto com a Natureza – tão caro às ideias rousseanas – e conseguia, ao mesmo tempo, um grau muito elevado de perfeição técnica.

Numa carta ao filósofo francês Jean le Rond d’Alembert, Rousseau recorda o que viu nos arredores de Neuchâtel, onde vivia uma população realizando o ideal de vida perfeita, desenvolvendo uma criatividade produtora de inúmeros objectos, que exportava, inclusivamente para Paris. “Entre outras coisas, estes pequenos relógios de madeira que desde há anos se vêem por aí. Fazem-nos também de ferro, e relógios de bolso, e, o que parece incrível, cada um destes artesãos reúne em si todos os ofícios em que se divide a relojoaria, e inclusivamente fabricam eles próprios as suas ferramentas”.

Rousseau admira a ilustração destes industriosos montanheses que, para o autor do Contrato Social, constituem exemplares perfeitos da Humanidade.

O próprio d’Alembert usou recorrentemente a imagem do relógio para exprimir as suas ideias filosóficas: “Haverá mais crimes num mundo onde não existam nem pena nem recompensa, como haveria mais desacerto num relógio cujas rodas não tivessem todos os seus dentes”; ou ainda: “Aquele que tivesse inventado rodas dentadas e pinhões teria inventado os relógios num outro século”.

Outro filósofo francês, Sébastien Roch, dito Nicolas de Chamfort, afirmava pela mesma altura: “A felicidade é como os relógios. Os menos complicados são aqueles que se desregulam menos”.


Voltaire em Ferney, localidade francesa junto da fronteira com a Suíça, nos arredores de Genebra, e onde o filósofo, montou uma fábrica de relógios


Aquele de entre os protagonistas do Século das Luzes que mais relacionamento teve com a Relojoaria foi, sem dúvida Voltaire. “O Universo embaraça-me, e não posso pensar que este relógio existe e não tem relojoeiro”, refere este teísta, que acreditava num Ser Supremo criador e guardião da Harmonia das Esferas. “Se um relógio não é feito para mostrar as horas, pensarei então que as causas finais são quimeras”, decreta ele no seu determinismo.

O séc. XVIII assistiu no Ocidente europeu à secularização da religião, retirou os padres do centro da sociedade e substituiu-os pelos intelectuais. A nova “bíblia”, sem milagres, passou a ser a Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert, cujas definições analíticas e frias, muitas delas escritas pelo próprio Voltaire, desdenhavam das efabulações das Escrituras.

Mas Voltaire venerava Deus ou, pelo menos, respeitava a Inteligência que ele pensava estar por detrás da construção do Universo; tal como os seus colegas teístas, o Criador que ele venerava assemelhava-se a um relojoeiro.

François Marie Arouet (1694-1778), que escolheu como nome literário Voltaire, foi mesmo industrial e comerciante de relojoaria. E tentou fazer à volta da comunidade de operários e artesãos que dirigiu uma sociedade perfeita.

Voltaire montou em Ferney, localidade francesa junto da fronteira com a Suíça, nos arredores de Genebra, uma fábrica de relógios, congregando voluntários do ofício que o quisessem seguir.

Voltaire comprara terras em Ferney em 1758, quando tinha 64 anos, regressando a França de um exílio que o tinha levado a Londres, à Prússia e a Genebra. Construiu lá um castelo, e passou a viver nele com a sobrinha, a partir de 1760, recebendo na sua “corte” os notáveis da Europa. Senhor de grande fortuna, fruto de um labor intelectual intenso, mas também de empréstimos a nobres arruinados, que lhe pagavam em forma de tença vitalícia, Voltaire tinha espírito empresarial e na sua correspondência definia-se, além de intelectual, como “agricultor”, “vinicultor”, “jardineiro”, trabalhador”, “arquitecto” ou “bibliotecário”. É a partir de 1770 que se intitula orgulhosamente como “empresário de relógios de Ferney” ou mesmo como “relojoeiro”.

Ao fundar em 1770 uma manufactura de relógios, “o rei de Ferney”, como gostava agora de se descrever, Voltaire seguia uma moda do seu tempo e encontrava-se em bem ilustre companhia. Na época, os monarcas europeus Luís XV, Luís XVI, Frederico II, Catarina II e José II esforçavam-se por criar manufacturas relojoeiras nos seus respectivos reinos. Em Portugal, por iniciativa do Marquês de Pombal, fundava-se em 1765, no Bairro das Amoreiras, em Lisboa, uma Real Fábrica de Relojoaria, a primeira do seu género no país, e que teve à sua frente mestres relojoeiros franceses. A criação de uma manufactura relojoeira inscrevia-se paralelamente no quadro do projecto voltairiano de transformar Ferney, na sequência da revogação em França do Édito de Nantes (liberdade religiosa), num burgo florescente e obediente ao lema que o filósofo decretara para o seu pequeno mundo – “Fazer o Bem”. Depois de se ter dedicado à agricultura, Voltaire fundou sucessivamente na localidade uma olaria, uma fábrica de faiança, uma outra de telhas, uma tanoaria e um tear de seda, antes de fundar a manufactura de relojoaria.

Os relojoeiros empregues por Voltaire eram franceses huguenotes ou seus descendentes que tinham fugido para Genebra e que agora regressavam sob o guarda-chuva do filósofo.E dá-se aí mais uma experiência utópica. Nas cartas que dirigia às personalidades mais destacadas do seu tempo, Voltaire insistia na necessidade de protecção para a sua pequena república. A uns enviava amostras do trabalho realizado pelos seus “súbditos”; a outros pedia ajuda na importação de ouro para o fabrico das caixas dos relógios. A outros ainda pedia que intercedam junto do rei de França, para que encomendasse os seus relógios, que oferecia a preços muito mais baixos que os relojoeiros de Paris, Londres ou Genebra. A manufactura de Ferney funcionou até 1778, não resistindo à morte de Voltaire. Mas as sementes desta experiência comunitária deixaram frutos. E a relação entre filósofos e relojoeiros – ambos reflectem sobre a marcha do Tempo – iria ser retomada com os movimentos anarquistas, socialistas e comunistas.


Piotr Kropotkin

Tomemos o exemplo de Piotr Kropotkin, um nobre russo nascido em 1842, em Moscovo. Foi como topógrafo e geógrafo que percorreu a Sibéria e a Manchúria, tomando contacto com as condições de vida miseráveis do seu povo. Movendo-se nos meios anarquistas, deles bebeu as ideias de Justiça e Igualdade Social, começando a militar por elas.

Em 1872, Kropotkin realiza uma viagem à Bélgica e à Suíça, onde mantém contactos com o movimento anarquista da Federação do Jura, tendo-se filiado na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), vulgarmente conhecida como Primeira Internacional.

Nas suas obras, Kropotkin tenta construir uma base científica para o pensamento anarquista. Usa uma linguagem simples, clara, tornando-se no mais lido e traduzido autor libertário de todos os tempos. Os seus livros chegaram às mais baixas camadas da população e, no final do século XIX e início do século XX faziam parte da biblioteca de camponeses e operários, nomeadamente em Portugal.

A sua obra mais conhecida é A Conquista do Pão. O pensamento de Kropotkin é classificado por ele próprio como “comunismo libertário”. Na base desse edifício ideológico está a ideia de que o critério para o consumo de bens e serviços não assente no trabalho mas na necessidade de cada indivíduo. Na sua utopia, para além da colectivização dos meios de produção, defende a livre distribuição da produção, a extinção de qualquer sistema de salários, a orientação da produção para as necessidades de consumo e não para o lucro. Todo isso tendo em vista um sistema que consiga conciliar e satisfazer as necessidades de todos.

O Estado, no ideário deste anarquista russo, basear-se-ia num sistema administrativo em rede, formado por comunas. Cada uma reuniria os interesses sociais representados por grupos de indivíduos directamente ligados a eles. A união dessas comunas produziria a tal rede, em substituição do Estado central.

Onde foi Kropotkin buscar as suas ideias? Muito especialmente a uma pequena comunidade relojoeira que ele estudou em Sonvillier, aldeia encravada nas montanhas do Jura suíço.

A Suíça, pela sua histórica neutralidade, e até devido à sua Constituição altamente descentralizada e à tradição de democracia directa, através de referendo, tinha-se tornado na segunda metade do século XIX no porto de abrigo para milhares de refugiados políticos dos impérios austro-húngaro, alemão e russo e dos perseguidos da repressão da Comuna de Paris, em 1871.

Depois de analisar o trabalho político de grupos marxistas em Zurique e Genebra, e tendo ficado mal impressionado com o que viu, foi aconselhado a visitar a pequena comunidade anarquista de relojoeiros de Sonvillier. Estes artesãos operavam a sua pequena indústria na base de um auto-governo operário, dentro do contexto de uma federação de comunas de aldeia. Essa federação do Jura tinha sido fortemente influenciada por outra grande figura do anarquismo, Bakunin.

Segundo Martin Miller, o principal biógrafo de Kropotkin, “as reuniões que ele manteve com os operários relojoeiros revelaram a liberdade espontânea sem autoridade ou direcção vindas de cima com que ele sempre tinha sonhado”.

Isolados e auto-suficientes, os relojoeiros do Jura impressionaram Kropotkin como um exemplo que podia transformar a sociedade, se tal comunidade se pudesse desenvolver numa escala mais larga, a nível regional, nacional, depois internacional.

Na sua obra, é recorrente Kropotkin socorrer-se do que viu em Sonvillier e outras comunas de relojoeiros do Jura para daí tirar exemplo para um governo mundial sem Estado.

“O trabalho de relojoeiro organiza-se de maneira independente, sem horário nem constrangimentos, que não sejam o de produzir quanto baste para viver”, diz o anarquista russo nas suas Memórias. “Pago à tarefa, de forma muito desigual segundo a sua especialização, o salário depende cruelmente da conjuntura. Mas, mesmo assim, neste sector, as condições de vida são muito melhores do que na generalidade dos outros, e os viajantes admiram estas famílias de relojoeiros bem alojados e bem vestidos”.

Sobre a actividade em Saint-Imier, outro pólo relojoeiro tradicional helvético, onde existe uma escola profissional de relojoaria desde 1866, Kropotkin faz notar que “apesar das confusões provocadas pela Revolução Francesa, o sector continua a desenvolver-se bem”.

“O trabalho relojoeiro efectua-se em casa, exigindo mais habilidade manual do que esforço físico, e é melhor remunerado do que o trabalho nas fábricas, atraindo de imediato as mulheres”, faz notar o anarquista.

Não é por acaso que o sector relojoeiro atrai Kropotkin e outros pensadores – foi nele que a divisão do trabalho e a produção em linha começou, inspirando depois outras indústrias (poucos sabem, mas Henry Ford foi relojoeiro antes de fundar a empresa com o seu nome, e levou para a indústria automóvel os métodos que viu na relojoaria).

Só nessas pequenas comunidades de relojoeiros do Jura Kropotkin viu solidariedade, coesão social, liberdade, igualdade entre sexos, dignidade nas condições de vida. Um exemplo que ele queria transportar para o modo de vida nas cidades.

Resume Kropotkin nas suas Memórias: “Os princípios igualitários que encontrei nas montanhas do Jura, a independência de pensamento e de linguagem que vi desenvolverem-se entre os operários, tudo isso exerceu sobre os meus sentimentos uma influência cada vez mais forte; e quando deixei essas montanhas, as minhas ideias sobre o socialismo estavam fixadas. Era anarquista”.


José Fontana

Não admira, pois, que tenha sido um jovem relojoeiro suíço a trazer para Portugal as ideias inovadoras de organização operária autónoma, de cooperativismo.

Giuseppe Silo Domenico Fontana – José Fontana – nasceu em Cabbio, Ticino, a 28 de Outubro de 1840. O Ticino, actualmente o único cantão da Suíça com apenas uma língua oficial, o italiano, foi uma república italiana até à integração na Confederação Helvética, em 1803. Giuseppe era filho de Giovanni Battista Fontana, com negócios em Lisboa, e de Maria Clara Bertrand Bonardelli, natural de Odemira, membro da família Bertrand, estabelecida em Lisboa desde o século XVIII com a actividade de editora e livreira.

Maria Manuela Cruzeiro edita aquando do 150º aniversário do nascimento de José Fontana uma biografia sobre esta figura com episódios da sua vida ainda hoje por esclarecer. A investigadora foi a Cabbio e conseguiu determinar que a família Fontana terá vivido lá até possivelmente até à morte de Giovanni Battista. Em 1847, seguramente, Maria Clara já era viúva.

Nesta fase omissa da sua vida – onde aprendeu a profissão de relojoeiro, por exemplo – Fontana terá consolidado os laços com o movimento operário internacional, rapidamente chegando a lugares de liderança. Com apenas 26 anos, foi membro do comité central (posteriormente conselho geral) e primeiro secretário pela Itália na Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional), em Londres, de Novembro de 1864 a Abril de 1865.


Antero de Quental

Fontana terá chegado a Lisboa em data não determinada, mas seguramente depois de 1865. Segundo os seus primeiros biógrafos – camaradas do movimento operário – terá começado por exercer em Lisboa a profissão de relojoeiro, habilitação profissional que terá adquirido na Suíça. Só em 1870 começam a aparecer escritos seus em jornais como A Federação, O Protesto ou O Pensamento Social. Neste último, o lema era “Não mais deveres sem direitos, não mais direitos sem deveres”. Mas, antes, terá pertencido ao Cenáculo, uma tertúlia em que participaram Eça de Queiroz ou Antero de Quental. E ao Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas.

Relatos coevos falam de um José Fontana agora já empregado da Livraria Bertrand, como tipógrafo, “muito alto, muito magro, sempre vestido de preto”, nas palavras de Antero de Quental. Jaime Batalha Reis, em Anos de Lisboa, In Memoriam de Antero de Quental, diz: “Cerrada a Livraria, ele aparecia trazendo novas da revolução que deveria irromper na próxima semana. Ligado à Associação Internacional dos Trabalhadores, não raro acompanhavam-no, desconfiados e temerosos, agentes internacionais, todos eles embebidos das doutrinas de Marx, e desejosos de conversarem com Antero”.

Em 1871 chegaram a Lisboa três emissários espanhóis – Mora, Lorenzo e Morago – delegados da Associação Internacional dos Trabalhadores. Dirigiram-se ao Centro Promotor e procuraram José Fontana. “Era um jovem de uns 30 anos de idade, alto, simpático, suíço se não estou em erro, e caixeiro de uma Livraria”, diz Lorenzo.

O objectivo era criar uma secção da AIT em Portugal. A reunião, para despistar a polícia política, decorre num barco, ao largo do Tejo. É ainda em 1871, que uma vaga grevista, que se prolongaria pelo ano seguinte, marcava um período de grande agitação social no país. Na sua génese, a expansão do mercado nacional e o crescimento da indústria, acompanhados pelo rápido crescimento do operariado e pela emergência do movimento operário. Entre 1871 e 1900, o número de greves em Portugal deve ter ultrapassado as sete centenas. A maior parte ocorre em Lisboa e Porto, denunciando já alguma concentração industrial nas duas maiores cidades, logo seguidas de Setúbal. As principais motivações prendiam-se com aumentos salariais, horários e condições de trabalho, que constituem indicadores das condições de vida do operariado nesta fase de expansão do capitalismo português. José Fontana esteve sempre presente na vanguarda organizada desse vasto movimento.

Em Janeiro de 1872 era fundada a Associação Fraternidade Operária, saída do Centro Promotor. De tendência socialista, a associação criada por Antero de Quental, Nobre França, José Fontana e outros, seria acusada por organizações mais moderadas de defender ideias anárquicas e a extinção da família.

Luís Figueiredo, no Almanaque José Fontana, em 1885, fala da acção de Fontana nessa associação: “O vulto de José Fontana era daqueles que nunca se esquecem mais, uma vez encontrados na vida. Tinha um não sei quê de nobre e simpático, que o inundava de uma tonalidade doce e meiga que o faziam atraente e vago.

“Quando ele falava vagarosamente, espaçando as palavras e seguindo-as nos ares com o seu grande dedo comprido e descarnado, recorrendo à parábola e pintando comovido as misérias dos operários, o desalinho do lar e as lágrimas dos filhos, tomava um aspecto singular, como de um sonhador iluminado.

“Se tivesse nascido noutra época, Fontana seria talvez um asceta, um inspirado – tal é, pelo menos, a forma como o reconstruo no meu cérebro, à distância de um par de anos!”

Antes, José Fontana tinha sido dos primeiros a fomentar em Portugal a ideia de cooperativismo. E, ainda em 1872, está na génese da cooperativa de produção Indústria Social, feita a partir de uns 80 operários que, depois de uma greve, ficaram sem trabalho. “Foi pelo esforço dessa fábrica que acabaram de vez os serões nas serralharias. A estes importantes êxitos, andava associado o espírito de José Fontana”, diz Sousa Brandão no Almanaque José Fontana de 1885. Em carta escrita a Engels, em 1873, o próprio José Fontana pede auxílio para esta cooperativa, para que duas máquinas encomendadas em Leeds não venham defeituosas. Embora ideologicamente próximo das linhas anarquistas de Bakunine e Kropotkin, manteve também correspondência com Marx.

A 10 de Janeiro de 1875 foi fundado o Partido Socialista Português (Partido Operário Socialista), tendo sido nomeada a comissão de elaboração do programa. José Fontana, Nobre França, Azedo Gneco ou Antero que Quental, entre outros, fazem parte dela. A questão do regime – monárquico ou republicano, não é o mais importante para Fontana. É ainda Luís de Figueiredo quem nos faz chegar uma intervenção dele numa das reuniões preparatórias da fundação do Partido Socialista: “Sou suíço, filho dessa república que apontais como modelo. Sou, pois, uma testemunha viva do que ela vale, e todos sabem que não sei enganar os que me escutam.

“Pois bem, sob a minha palavra de honra, certifico à assembleia que na Suíça os operários sofrem tanto como em Portugal, que são tão desgraçados, tão miseráveis, tão tiranizados como neste país monárquico, porque lá também existe o mesmo e grande tirano dos operários – o capital.

“Enquanto não houver igualdade económica, a igualdade política será uma mentira; enquanto o capital for senhor, o trabalho será escravo”. Filia-se, entretanto, na Maçonaria.

Com 35 anos, José Fontana, que começara como tipógrafo, chega sócio-gerente da Bertrand. Mas está tuberculoso. Na altura, mal incurável. Em cartas a amigos, começa a falar de suicídio, “por não se sentir com força para suportar a doença”. E, a 2 de Setembro de 1876, a semanas de completar 36 anos, dispara um tiro de revolver na cabeça. Exactamente 15 anos depois, Antero faria o mesmo.

Sobre José Fontana, pode ainda dizer-se que, em 1915, é dado o seu nome a uma praça de Lisboa e, em 1990, por ocasião do 150º aniversário do seu nascimento, é-lhe ali erigida uma escultura evocativa.

Em 2008, Alberto Nessi, escritor suíço, publica o romance histórico "La prossima settimana, forse", inspirado na vida de Fontana.


Monumento a José Fontana, na praça com o seu nome, em Lisboa (fotos Fernando Correia de Oliveira)




A questão do horário de trabalho

Em Outubro de 1878, o Partido Republicano apresentava-se, pela primeira vez, às eleições como força organizada e elegia o seu primeiro deputado pelo círculo do Porto (Rodrigues de Freitas).

O 10 de Junho de 1880, assinalando o tricentenário da morte de Camões, decorre um pouco por todo o país, culminando em Lisboa com o grande cortejo cívico. O movimento republicano apropria-se das comemorações, fazendo delas uma manifestação anti-monárquica.

Em Abril de 1882 realizam-se as celebrações do Centenário Pombalino. De novo, o movimento republicano e anti-clerical lidera o evento, transformando-o numa acção de massas anti-monárquica.

Por subscrição pública, e com a participação de dezenas de organizações do mundo operário, é erigido um mausoléu no Cemitério dos Prazeres em honra de José Fontana, inaugurado em 1884, na presença de milhares de pessoas.


Monumento funerário em memória de José Fontana, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, com recurso a elementos de clara simbologia maçónica (fotos Fernando Correia de Oliveira)




O António Maria de 3 de Abril desse ano diz, a respeito do evento: “José Fontana era um rapaz simpático e trabalhador a cuja subida inteligência e prestante iniciativa as classes operárias muito ficaram devendo. Apaixonado ardente dos princípios de associação, aquele belo moço dedicou boa parte da sua vida laboriosa e do seu robusto talento na fundação das numerosas associações cujos agremiados acabam de prestar à memória do seu benfeitor uma singular homenagem de respeito e saudade nessa imponente cerimónia a que a cidade aderiu, fazendo-se representar por bastantes milhares dos seus habitantes”.

A 11 de Janeiro de 1890 é conhecido publicamente o ultimato do Governo inglês a Portugal. Contra o plano do Mapa Cor-de-Rosa (ligar o interland de Angola a Moçambique), opunha-se o projecto de Cecil Rhodes (ligar o Cairo ao Cabo). O ultimato humilha o orgulho e a consciência nacionais. As forças anti-monárquicas cavalgam o descontentamento, promovendo o ideário republicano.


Romagem a 1 de Maio de 1890 ao futuro mausoléu a José Fontana, a primeira vez que se comemora em Portugal o Dia do Trabalhador


Em cima, José Fontana. Em baixo, à esquerda, Guedes Quignones; à direita, Azevedo Gneco. Ao centro, fotografia com a romagerm de 1890. Notícia sobre o 1º de Maio em Portugal in Arquivo Nacional de 3 de Maio de 1939 (arquivo Fernando Correia de Oliveira)



É precisamente nesse ano que o 1º de Maio é comemorado pela primeira vez em Portugal, em Lisboa. A romagem ao túmulo de Fontana é o culminar dos desfiles na capital, mantendo-se uma tradição anual que se prolongará pela República. De entre as reivindicações, a jornada das 8 horas de trabalho é omnipresente, até ser satisfeita. “Viva Fontana e sete dias de descanso por semana”, gritava-se em tom jocoso.

Para saber mais, leia-se O Relógio da República

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