Estação Cronográfica, entre o grupo de jornalistas ocidentais, é recebida em audiência, em Tóquio, em 1998, pelo casal imperial japonês
Leituras acidentais de um ocidental. Décima primeira crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Março de 2005.
Fernando Correia de Oliveira
A crise dinástica no Japão
No início de 1998, um grupo de jornalistas ocidentais foi convidado a visitar oficialmente o Japão – o objectivo era que portugueses, britânicos e noruegueses ficassem a conhecer melhor a Família Imperial japonesa, o seu estatuto, o papel que desempenha no Japão actual, na véspera da deslocação dos Imperadores Akihito e Mishiko a Portugal, Grã-Bretanha e Noruega. No caso português, seria a primeira vez que os titulares do Trono do Crisântemo se deslocariam ao país, por ocasião da Expo 98.
O privilegiado e restrito grupo de jornalistas, entre eles o mundialmente famoso John Simpson, da BBC, teve ocasião de acompanhar o casal imperial numa deslocação fora de Tóquio, pela província de Goma, durante dois dias. E percebeu como o povo japonês vive as figuras destas personagens sem poder real mas com uma carga simbólica que ultrapassa em muito o que se passa com outras monarquias, nomeadamente na Ásia ou na Europa. Não apenas as gerações mais velhas, também jovens e crianças ficam em estado de delírio contido (uma forma muito japonesa de reacção) à passagem da caravana motorizada imperial – fortes medidas de segurança impedem uma paragem na estrada, um contacto directo espontâneo, mas os milhares e milhares de japoneses postados nas bermas, agitando bandeiras nacionais, embora num estranho silêncio, parecem ficar realizados, preenchidos, satisfeitos como comunidade ao fazerem parte figurante e efémera nestas passagens. Os mais velhos, mesmo muitos novos, curvam-se respeitosamente em frente do carro que transporta o casal imperial, que responde sorrindo e acenando delicadamente.
Nas paragens – comemorações de um Dia da Árvore, ida a um viveiro de plantas, visita a um centro de reabilitação de deficientes mentais – a emoção é de um nível elevadíssimo, nada comparado com os contactos da rainha de Inglaterra, por exemplo, com os seus súbditos. Para a esmagadora maioria dos japoneses, a figura do Imperador, o Tennô, é ainda a de um deus.
O grupo de jornalistas ocidentais foi, no fim da visita, recebido no Palácio Imperial, em Tóquio, pelos próprios Imperadores. Privilégio raro, invejado pelos japoneses. E tiveram ocasião de ver o contraste entre a decoração minimalista, espartana, das várias salas do complexo, em contraste com a riqueza ostensiva, barroca, da maioria dos palácios reais ou imperiais asiáticos ou europeus. Tudo a condizer com um estilo de vida que se quer simples, devotado ao povo, sem escândalos de casamentos e divórcios, de comportamentos mais ou menos reprováveis de príncipes herdeiros.
Assim, a imprensa cor-de-rosa nipónica, desde logo muito respeitosa da intimidade dos soberanos e do seu círculo mais próximo, tem pouco para falar. Mas as coisas estão a mudar, o interesse humano na família imperial japonesa tem ultrapassado nos últimos anos as revistas de coração, é assunto recorrente nos jornais de referência, são-lhe dedicados cada vez mais ensaios universitários. Há algum comportamento criticável, de algum príncipe mais rebelde? Não. Muito simplesmente, o Japão confronta-se com uma realidade que, ao longo de milhares de anos, conseguiu evitar – não há sucessor masculino ao Trono do Crisântemo.
Esta é uma questão séria para o regime, muito mais do que as crises de uma monarquia inglesa a braços com uma família totalmente disfuncional – mesmo que não haja monarca depois de Isabel II (o que cada vez mais se advoga entre a opinião pública britânica) e se passe ao regime republicano, a comunidade não se sentiria tão perdida, tão órfã, como no Japão, onde a questão do desaparecimento da figura do Imperador nem sequer se põe. O problema é, pois, sério. E os japoneses começam a equacionar a hipótese de vir a ter uma Imperadora.
O Partido Democrático, no poder no Japão, apresentou uma proposta de revisão da Lei da Casa Imperial, que permita uma sucessão feminina ao trono. Essa proposta ainda não foi debatida no Parlamento, mas o assunto está cada vez mais na ordem do dia. Segundo a lenda e a História, toda a sucessão de 125 soberanos, desde o mítico Jinmu até ao actual Imperador Akihito, se tem processado da linha masculina. Os japoneses não gostam muito de referir isso, mas apenas através do sistema de concubinato se conseguiu a proeza de haver apenas uma dinastia no país – aliás, a mais longeva do mundo no poder.
De qualquer modo, oito mulheres ocuparam no passado o Trono do Crisântemo. Todas estas mulheres vinham da linha masculina de ascendência ao trono – metade eram viúvas de Imperadores, enquanto a outra metade eram princesas que permaneceram solteiras até à morte. Nunca houve, assim, uma princesa reinante que tenha casado e tomado o nome de família do seu marido (a família imperial japonesa não tem nenhum nome de família). A sucessão nunca se processou através da linha feminina, e o Japão nunca teve uma mudança dinástica.
A questão de uma Imperatriz colocou-se a partir de Dezembro de 2001, quando o filho mais velho do Imperador Akihito, o Princípe Herdeiro Naruhito, casado com a Princesa Masako, teve uma filha, a Princesa Aiko. Este nascimento era há muito esperado pela Nação que, em vez de ficar frustrada com a situação, a parece ter aceite bem, passando a apoiar maioritariamente uma mudança constitucional (70 por cento a favor) que permita a ascensão de uma mulher ao cargo imperial. Não é fácil a vida das mulheres na rarefeita e estritamente protocolar atmosfera do Palácio – tanto Mishiko como Masako sofrem pressões terríveis vindas dos funcionários da corte, e têm até tido problemas físicos e psíquicos. A primeira esteve anos sem falar, traumatizada com ligeiras referências feitas na imprensa ao seu comportamento, a segunda está desde há mais de um ano mergulhada numa depressão.
Alheia a isto tudo está Aiko, uma deliciosa princezinha, que encanta a opinião pública e que poderá estar destinada a ser Imperatriz. A Lei da Casa Imperial estabelece uma desigualdade de tratamento entre homens e mulheres no que respeita ao casamento. Estabelece que uma plebeia (como é o caso de Masako) que case com um imperador ou um príncipe imperial se torna membro da Casa Imperial, mas que um plebeu que case com uma princesa imperial não gozará desse estatuto; em vez disso, estabelece a lei, a princesa perde o seu estatuto imperial.
Mesmo que a lei mude, como faz notar o académico Kasahara Hidehiko (1), “encontrar um marido conveniente para uma princesa imperial não será tarefa simples – de facto, será uma tarefa mais difícil do que encontrar uma esposa para um príncipe imperial. Será preciso certificar-se que o candidato está de perfeita saúde mental e física. O seu background familiar será escrutinado pormenorizadamente. Será dada especial atenção ao facto de o seu passado o apresentar como o tipo de homem que possa servir com o tipo de neutralidade política requerido a um consorte imperial. E ele terá que estar disposto a desistir do seu nome de família”.
A seguir à derrota na II Guerra Mundial, o Japão, ocupado pelos Estados Unidos, viu-se forçado a uma revisão constitucional que vigorou até hoje, acabando com a classe nobre para além da directamente ligada, por sangue, à Família Imperial. Na linha de sucessão, há, para além de Naruhito, o seu irmão mais novo, Príncipe Akishino (nascido em 1960). Depois, seguem-se o irmão do actual imperador ou os seus filhos – até ao sexto grau na sucessão. Mas a verdade é que, desde o nascimento de Akishino, o mais jovem varão na família, e que está a fazer 40 anos, que nenhum outro homem nasceu, o que torna a crise inevitável. Isto se não se alargar, como defendem alguns, o conceito de Família Imperial, fazendo reviver as outras 11 casas nobres que foram extintas com a derrota de 1945.
Por outro lado, como faz notar Takamori Akinori (2), “na linha de sucessão directa de sangue que vem directamente do Imperador Jinmu até ao actual imperador, encontramos 60 casos em 125 pessoas. As sucessões fizeram-se por vezes por linhas colaterais, mas esta linha tem um lugar de honra especial, central. A passagem do trono, por sucessão directa de pai para filho dá-nos um sentimento de continuidade histórica que transcende o tempo”.
Para além de símbolo da unidade nacional, o Tennô tem como principal tarefa praticar os actos religiosos imperiais, como chefe do Shintô, a religião autóctone nipónica. “Não há razão para que uma mulher não seja capaz de desempenhar esse papel simbólico”, diz Kasahara Hidehiko.
Para Takamori Akinori, professor universitário (3), “O Japão está agora mergulhado nas ondas da globalização. Neste contexto, o último reduto da nossa identidade como japoneses é a existência do Imperador como o herdeiro de uma linha de sangue e de ritos religiosos que vão até às origens mitológicas do nosso país”.
Quem se sentará, pois, no Trono do Crisântemo, algures no século XXI, depois da morte de Naruhito, não é uma questão de pormenor.
1 – Chuo Koron, Setembro de 2004
2 – Voice, Outubro de 2004
3 – Idem
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