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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"


Leituras acidentais de um ocidental. Nona crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Dezembro de 2004.

Fernando Correia de Oliveira*

Uma utopia real – a social-democracia

O comportamento da economia europeia desde meados dos anos 90 caracterizou-se por baixas taxas de crescimento e a persistência de elevados níveis de desemprego. Embora alguns países da União tenham registado evoluções mais favoráveis – os casos da Grã-Bretanha, mas sobretudo da Irlanda são os mais notórios – para o conjunto do espaço económico, as expectativas de um crescimento acelerado apoiado na estabilidade macroeconómica e na crescente integração viram-se defraudadas.

O espanhol Guillermo de la Dehesa procura na sua mais recente obra (1) explicar as causas desse insucesso relativo, comparando o percurso recente da economia europeia com o da norte-americana. Durante as décadas de 60, 70 e 80, parecia que a Europa estava em “convergência” com os Estados Unidos, encurtando as distâncias com a potência que lidera o mundo. Mas, na última década, a distância voltou a aumentar, especialmente porque os Estados Unidos cresceram na década de 90 uma média anual de 3,4 por cento, contra sensivelmente metade do registado na União. O “motor de arranque” dessa prosperidade parece ter sido a chamada “nova economia”, a que se baseia nas novas tecnologias informáticas e de comunicação.

Actualmente, o rendimento per capita europeu é 30 por cento inferior ao norte-americano, “e tudo parece indicar que a Europa é incapaz de recuperar o terreno perdido e aproximar-se dos níveis de prosperidade e das taxas de progresso que se registam do outro lado do Atlântico”, afirma J. A. Martinez Serrano, catedrático de Economia Aplicada da Universidade de Valência (2). “Quando se comparam ambas as economias, o que chama poderosamente a atenção é o baixo nível de emprego que a europeia gera. De facto, o diferencial em rendimento per capita explica-se em dois terços pelo grau de utilização do factor trabalho, enquanto que as diferenças de produtividade explicam apenas o terço restante”.

Martinez Serrano acha que a Europa tem “uma estrutura de incentivos económicos, políticos e sociais que não favorece um comportamento individual e colectivo que garanta a prosperidade económica”. Por outras palavras, decreta-se aqui, de forma clara, a falência da social-democracia, exactamente o sistema que, no pós-guerra, conduziu a Europa (do Norte, que o Sul estava ainda todo ele mergulhado num mundo ditatorial pré-moderno, desde Portugal à Grécia, passando pela Espanha) a níveis de bem-estar e prosperidade nunca vistos no mundo.

Com o fenómeno da globalização, sem liderança clara a nível político, apertada por taxas de natalidade negativas que lhe projectam um fiasco nos sistemas de pensões, e por imigração descontrolada que lhe vai pesando cada vez mais no sistema de segurança e assistência social, a Europa procurou encontrar uma resposta teórica: em 2000, numa cimeira na capital portuguesa, liderada pelo então primeiro-ministro português, António Guterres, lançou-se a chamada Agenda de Lisboa. Trata-se de um programa que, mexendo em vários factores – desde a educação à formação profissional, passando pela flexibilização do emprego – pretende tornar a Europa na economia mais dinâmica do mundo, isto no espaço de uma geração.

Para além do ataque ao sistema que a social-democracia conseguiu erigir ao longo de três ou quatro gerações – menos garantia de emprego, menos garantia de reforma, liberalização de sistemas de saúde e de pensões, nada mais fez a generalidade dos Governos desta “velha” Europa para implementar a Agenda de Lisboa.

Mas, terá a social-democracia sido mandada para o “caixote do lixo da História”, como o foram as utopias do comunismo, nas suas várias versões? Terá o capitalismo ultra-liberal praticado cada vez mais pelos Estados Unidos, à escala global, ditado “o fim da Economia”, parafraseando a teoria do Fim da História, de Francis Fukuyama? Desde logo, a social-democracia não é uma utopia, é uma prática política, social, económica, aplicada pelas elites do Norte da Europa sem o recurso a campanhas de massas, à manipulação por Grandes Líderes. Foi um sistema aplicado sempre em liberdade, em sociedade aberta, fruto de uma base de populações alfabetizadas a 100 por cento há muitas gerações, ligadas por uma moral e uma ética protestantes, de valorização do trabalho e feroz justiça fiscal. A social-democracia, em milénios de evolução do conceito de Democracia, desde Atenas, foi até hoje o auge de um sistema mais justo, mais humano, mais equilibrado. Uma classe média poderosa, com poucos ricos (a pagarem muitos impostos) e sem pobres, a garantirem um futuro civilizado e de bem-estar para as actuais e futuras gerações.

Pode este sistema competir com os Estados Unidos, para já não falar do “não-sistema” chinês, que está a ultrapassar a outrance o capitalismo selvagem, ironicamente sob a capa de socialismo – com mão-de-obra infantil, negação de direitos sindicais, desrespeito pelo ambiente?

O economista norte-americano Robert Gordon, da Northwestern University, não está nada optimista quanto ao modelo norte-americano. Citado por J. Bradford DeLong, catedrático de Economia na Universidade de Berkley, Califórnia, que foi sub-secretário do Tesouro durante a Administração Clinton, Gordon afirma que os dados estatísticos estão muitas vezes viciados: por exemplo, os norte-americanos compram automóveis porque os transportes públicos no país são péssimos – mas no PIB norte-americano entra o valor dos automóveis. No entanto, os sistemas de transportes públicos europeus não são contabilizados pelo valor que representam para os seus passageiros, entram antes como custos da administração pública. Do mesmo modo, os norte-americanos têm dois milhões de pessoas nas cadeias: o custo de construir prisões e de pagar o sistema prisional também é incluído no PIB. Um último exemplo: o clima mais extremo dos Estados Unidos faz com que os gastos com aquecimento e ar condicionado sejam maiores. Qual o resultado líquido destes cálculos? Os habitantes da Europa ocidental trabalham aproximadamente 25 por cento menos que os norte-americanos, mas o seu nível de bem-estar social (clima incluído) é apenas 15 por cento inferior ao deles, e têm uma distribuição de rendimentos mais igualitária e índices de pobreza menos elevados.

“Os Estados Unidos não ganharam muito – ou nenhum – terreno em relação à Europa na passada década, se nos guiarmos pelo índice de bem-estar social”, diz DeLong (3).

Com o alargamento a 25, a União Europeia enfrenta agora desafios ainda maiores. A EU tem já uma população superior à dos Estados Unidos. O rendimento per capita dos novos Estados é inferior à metade da que possuem os 15 países que já dela faziam parte. No entanto, os índices de crescimento do PIB dos novos membros são o dobro do dos 15 países considerados em bloco. Com salários mais baixos, mas boa formação profissional, a “nova” Europa passa a ser a ameaça mais próxima de deslocalização das empresas estabelecidas na “velha” Europa. Na Alemanha, já se assiste ao aumento voluntário de horas de trabalho, ao congelamento de aumentos salariais, em troca de uma garantia do posto de trabalho a médio prazo.

Muita da competitividade e riqueza dos Estados Unidos resultam da Pesquisa e Desenvolvimento que empresas e universidades vêm desenvolvendo há décadas, mantendo o país na liderança da inovação tecnológica mundial. A fuga de cérebros para os Estados Unidos, que até há pouco tempo era um fluxo alimentado apenas pelo Terceiro Mundo, está agora a produzir-se igualmente a partir da Europa. Sem essa elite de cientistas e inovadores, nunca haverá uma Agenda de Lisboa que resista.

Fomentar a imigração selectiva (como já está a fazer a Alemanha), escolhendo jovens altamente preparados do ponto de vista tecnológico, oriundos de países como a Índia, o Paquistão ou a China, pode parecer um método eticamente errado (esses países ficam, assim, sem as suas elites, que de qualquer modo partiriam… para os Estados Unidos). Mas é uma das soluções para uma Europa que precisa de reformular todo o seu sistema educativo, tornando-o (em todo o espaço europeu) mais exigente, dinâmico e concorrencial.

Lutar pela implantação de uma social-democracia na “nova” Europa (aqui, sem a desculpa da natalidade, já que os países do Leste têm taxas positivas), dar voltas à imaginação para salvar o Estado de bem-estar na “velha” Europa, seria a resposta mais correcta do Continente à avalanche aparentemente triunfadora do neo-liberalismo globalizante (mas, quem são os líderes que se atreveriam a remar contra-corrente e, ao mesmo tempo, conseguir ter contas públicas saudáveis? – isso, sim, seria um grande desafio).

Benjamin Fraklin costumava dizer aos seus compatriotas norte-americanos (inspirados e ajudados pela então fraternal França): “se não caminharmos juntos, enforcam-nos por separado”.

A Europa do século XXI está entalada entre três frentes hostis. Entalada, por um lado, pelo neo-liberalismo e neo-conservadorismo selvagem de uma Administração Bush que está, tudo o indica, para ficar, prolongando cenários de um Mundo cada vez menos justo e cada vez mais desequilibrado e instável. Entalada porque “quatro anos mais de Bush podem supor a confirmação de milhões de muçulmanos com uma fobia auto-destrutiva contra o Ocidente”, como aponta Timothy Garton Ash (4). Alguns desses milhões de muçulmanos vivem na Europa. E entalada pela competição lançada pelo não menos selvagem capitalismo oriental (chinês, “de fachada socialista”).

Assim, a Europa arrisca-se a perder uma das mais recentes, mas maiores, conquistas da sua História, a do Estado de bem-estar. E isto não é uma questão de Esquerda ou de Direita, é uma questão de avanço ou recuo da Humanidade e da sua Dignidade. Quem disse que o modelo está esgotado? Quem tem coragem de defender a social-democracia?

*Jornalista e investigador

1 – Quo Vadis Europa? Por qué la Unión Europea sigue creciendo más lentamente que Estados Unidos, Guillermo de la Dehesa, Alianza Editorial, Madrid 2004.
2 – “Sobre el atraso relativo de Europa”, El Pais, 04 de Julho de 2004
3 – “El modelo europeo está vivo”, El Pais, 04 de Julho de 2004
4 – “Las elecciones mundiales – neutralidad europea ante las presidenciales de eeuu”, El Pais, 05 de Setembro de 2004

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