Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Há dez anos - era inaugurado o relógio restaurado de Orgens, Viseu


Mestre Romão Pereira, junto ao relógio de Orgens, que recuperou (arquivo Fernando Correia de Oliveira)

A 19 de Dezembro de 2004, num domingo chuvoso, depois da missa, há exactamente 10 anos, fazíamos na Igreja de Orgens, Viseu, a seguinte palestra:

Caros Padre António Teixeira, Manuel Pereira, Presidente da Junta de Freguesia de Orgens, obrigado pelo convite que me dirigiram. Meus caros:

O Tempo, Portugal e a Modernidade

Até à época capitalista, o tempo foi sempre local. Não existia, com efeito, a medida do tempo único para os territórios extensos e menos ainda para os Estados e regiões mais vastas. Como faz notar Aaron J. Gourevitch (1), o particularismo da vida social aparecia também nos sistemas de cálculo de tempo. O método mecânica de determinação do tempo torna possível a sua unificação e os governos, tomando o controlo do tempo, impuseram, como única exacta, a sua própria hora a todos os súbditos. O tempo local separava, enquanto que o tempo do Estado, depois o dos fusos horários, se tornou um meio de união, de reforço dos laços. É assim que nasce uma temporalidade única.

A importância dada no Ocidente, a partir do século XII, ao carácter indestrutível da escrita, por um lado, e a laicização da temática registada, por outro, fazem os homens preocuparem-se cada vez mais com os registos do passado, com os comportamentos do seu presente, com a maneira como as gerações futuras ajuizarão deles. A vida terrena ganha peso em relação à vida depois da morte. E o tempo das horas canónicas, lento, errático, local, muda-se para a noção laica de dias com 24 horas, iguais em todo o lado, necessárias para o entendimento de novos comércios.

O letargo da Idade Média, em que as comunicações entre pessoas e mercadorias ficaram praticamente interrompidas, em que a circulação de saber como que congelou, foi pouco a pouco tendo o seu despertar primaveril. Às ilhas de saber que constituíam os conventos, mosteiros e outras comunidades religiosas, depositárias de preciosos e escassos conjuntos de textos que tinham sobrevivido à desconstrução do Império Romano e às invasões bárbaras, juntavam-se a pouco e pouco cortes mais ou menos cultas, onde o rei podia ainda não saber ler nem escrever mas se rodeava de um conhecimento cada vez mais laico. Muitas vezes, esse saber era protagonizado por classes marginais, para-nómadas, constituídas por comerciantes judeus, personalidades islamizadas ou recém-convertidas ao cristianismo, que corriam de cidade em cidade – jograis e trovadores, magos e adivinhos, astrólogos e boticários. A Europa do Saber recomeçava a mover-se.


O relógio, recuperado em 2004, e tal como o encontrámos, em 2002 (arquivo Fernando Correia de Oliveira)


Um dos factores que contribuiu para esse Renascimento “avant la lettre” foi, obviamente, a consolidação de laços sociais entre senhores e vassalos. A Alta Idade Média, com um feudalismo a partir para soluções que dariam os Estados modernos, a Reconquista dos territórios europeus ainda em mãos do Islão, o recomeço dos circuitos comerciais, com cada vez mais segurança, foram dando as condições de “recomeço”.

Mas, para a mudança de mentalidades — do pan-religioso do quotidiano, devido à precariedade da vida e aos temores adjacentes, para uma esfera do privado laico cada vez mais alargada — terá decisivamente contribuído a ideia do carácter indestrutível da escrita. Cada vez há mais textos a circular, primeiro copiados à mão, depois impressos, cada vez há mais gente para os ler. E cada vez mais, os textos deixam a esfera monopolista do religioso para ganharem temas e abordagens totalmente laicas. Os textos aparecem aos olhos dos homens como fixadores de realidades passadas, no seio das quais não se admite a mudança. Encarados como veículos do conhecimento, são o legado de uma geração para a seguinte. Isto rompe a ideia de “ciclo” medieval, grilheta do inexorável e do breve (a vida de cada ser humano), explode para o conceito eminentemente moderno de “progresso”. Começa assim a aparecer no seio da História profana uma linearidade de passado, presente e futuro que a tradição agostiniana considerava absolutamente submetida não só à vontade de Deus como aos seus trágicos ciclos. O futuro profano passa a ser possível de pensar, quando antes apenas o futuro sagrado (a vida além da morte e toda a sua imagética de pavor e paraíso) era concebível.

Como há escrita, os feitos do homem ficam registados. Os feitos dos homens (das gerações) passam a poder ser julgados na posteridade. Vale a pena praticar actos gloriosos, não apenas aos olhos de Deus, mas também aos olhos dos mortais seus pares. Na epigrafia funerária, ao lado da data da morte, aparece a partir do século XIV a idade do defunto. Isto porque, tanto do ponto de vista teológico como profano, a vida e o tempo são agora percebidos como algo de precioso.

Desde o século XIII, e a partir das cidades-estado italianas, que a economia europeia se tinha monetarizado, havendo cunhagem maciça de moedas em ouro e prata. Os seus grandes utilizadores são a classe emergente de comerciantes, cambistas, banqueiros, a burocracia notarial, contabilista, copista, etc. Todas estas personagens praticam ofícios que obrigam a quantificar o tempo, antes mesmo de ser possível medi-lo com o relógio. A ideia de que “tempo é dinheiro” é pela primeira vez equacionada.

A contrapor a séculos de trevas e vida curta, isolada e incerta nos campos, ao tempo litúrgico, surge o tempo dos relógios, cada vez mais urbano. Primeiro, esses relógios ainda são pertença das comunidades religiosas. Os sinos tocam, a partir de torres de conventos e mosteiros, as horas canónicas, a que os burgueses vão obedecendo. De dia, o monge relojoeiro ia orientando o seu primitivo relógio mecânico a partir de um mais fiável de sol. De noite, ou em dias encobertos, ele contava o tempo segundo o número de salmos que tinha recitado, ou segundo o número de páginas que tinha lido, ou segundo a quantidade de cera ou de azeite que tinham sido queimados numa vela ou numa lamparina. E fazia soar os sinos a esse ritmo incerto.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

As horas canónicas tinham, assim, tempos muito pouco exactos. E sintomaticamente lentos: seguindo o sistema sazonal, havia as “matinas” antes da aurora, a “prima” ao nascer do Sol, a “terça” às três horas, a “sexta” às seis, a “nona” às nove, as “vésperas” às onze (sendo as quatro últimas contadas a partir do nascer do Sol) e as “completas” depois do pôr-do-sol. Com o tempo, as “nonas” foram antecipadas em três horas, para o meio-dia, e essa é a origem da palavra inglesa “noon”. Os leigos devotos que desejavam participar nesse programa diário precisavam de ter os seus próprios guias, os chamados “livros de horas”. Numa primeira fase, o termo “horas” indica, não um intervalo de 60 minutos, mas partes menos precisas do dia reservadas às tarefas religiosas. Mas, o poder real e municipal quer impor-se. E um dos sinais do seu novo vigor será a construção de torres relojoeiras, a contratação de especialistas para cuidarem dos mecanismos, a imposição gradual dos ritmos e dos tempos laicos do burgo às pulsões oratórias diárias do clero.

A multiplicação dos relógios mecânicos nas cidades, a partir do século XIV, é um movimento explosivo. A generalização da divisão do dia em vinte e quatro horas iguais, cada uma de sessenta minutos, dividindo-se por sua vez o minuto em sessenta segundos eram então princípios puramente teóricos, dada a insipiência dos mecanismos. Mas a reforma das mentalidades era inexorável. O ano já não começava em datas diferentes conforme as cidades ou as regiões, uniformiza-se a data de 1 de Janeiro.

Apesar do inconveniente de contar grande número de batidas, os primeiros relógios com mostradores, eram de 24 horas. E apenas um ponteiro, o das horas. Passou-se depois ao mostrador de 12 horas, que servia para marcar, no mesmo espaço, o dia e a noite. Mas a precisão dos mecanismos tornava ainda desnecessário o aparecimento do ponteiro dos minutos. Assinalavam-se apenas (sonoramente) as horas e os quartos. O ponteiro dos segundos só surge maciçamente no tempo público a partir do século XIX. De qualquer modo, a padronização do tempo, baseada na razão dos homens e não da dos deuses, tinha começado.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

A relojoaria de torre, ou férrea era, como o nome indica, pesada. O passo seguinte à laicização do tempo foi a sua privatização. Ao desejo urbano e burguês de mecanismos menores e mais facilmente transportáveis respondeu o engenho humano. No início do século XV começaram a ser usadas molas em lugar de pesos como fonte da força motora, o que permitiu avançar para a miniaturização e portabilidade do tempo – passa-se ao relógio doméstico, e deste para o de bolso.

O relógio público, quer estivesse instalado numa igreja ou numa praça, lembrava a passagem do tempo apenas de modo intermitente, mas um relógio doméstico ou de algibeira era um indicador constantemente visível. Impunha-se na vida privada de todos, em todas as situações.

Como afirma o académico norte-americano David S. Landes (2), embora pudesse ser usado para abrir e fechar mercados, assinalar o início e o fim dos períodos de trabalho e dirigir o movimento das pessoas, o relógio público assinalava apenas momentos, e não a passagem contínua do tempo. Mas um relógio de mesa ou de algibeira passava a ser um evocador sempre visível do “tempo usado, tempo gasto, tempo desperdiçado, tempo perdido”. Como tal, tornou-se estímulo e chave da realização e da produtividade individuais. Para muitos pensadores ocidentais contemporâneos, a superioridade tecnológica do Ocidente terá começado mesmo com a laicização do tempo e a invenção de maneiras mecânicas de o medir.

Para Lewis Mumford (3), “o relógio não é meramente um meio de manter um registo das horas, mas também de sincronizar as acções dos homens. O relógio, e não a máquina a vapor, é o elemento-chave da moderna era industrial… Na sua relação com a determinação de quantidades de energia, estandardização, automação, e finalmente com o seu próprio produto específico – a medição exacta do tempo, o relógio tem sido a máquina mais avançada na utilização das técnicas modernas; e em cada período ele tem permanecido na vanguarda; o relógio marca uma perfeição a que outras máquinas aspiram”.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

O Tempo em Portugal

Quando e como começaram os homens e mulheres que habitaram o território a que hoje chamamos Portugal a “pensar” o Tempo, a ter dele consciência, a medi-lo?

Terá sido no Neolítico final e começos da Idade do Cobre (3000-2500 a.C.) que surge a magnífica, exuberante, misteriosa cultura megalítica – esse grande arco que terá por cenário praticamente a totalidade dos territórios a que hoje designamos por Portugal, Espanha, França, Irlanda, Dinamarca, Grã-Bretanha e Alemanha.

Aos nossos dias, chegaram conjuntos monumentais, pedras enormes, por vezes gravadas, colocadas umas sobre as outras, umas ao lado das outras, mas especialmente orientadas – antas ou dólmenes, menires, cromeleques, que os especialistas associam a espaços sagrados, a monumentos funerários, mas também à surpreendente função de marcadores do tempo.

Portugal é especialmente rico nesses conjuntos, nomeadamente no Alto Alentejo, na Beira Baixa, no Minho. Os monumentos megalíticos deste tipo, sem excepção estão todos dirigidos para o quadrante situado entre nordeste e sudeste, ou seja, para os pontos de amplitude máxima e mínima do nascer do Sol ao longo do ano.

As localizações dos cromeleques sugerem desde logo o conhecimento da orientação solar, ou seja, das direcções equinociais e solsticiais, cujos azimutes podiam ser medidos através de linhas virtuais que ligavam determinados pontos do cromeleque, como o seu centro, a relevos evidentes da paisagem envolvente.

Temos pois que, os primeiros calendários “portugueses”, ainda e sempre prontos a funcionar, a indicar equinócios e solstícios, datam de há cinco mil anos.

Os primeiros relógios de sol terão entrado no território que é hoje Portugal através da conquista romana. Mas é grande a raridade e escassez de referências a esse tipo de artefactos. Deste período, foram encontrados até hoje alguns exemplares, como um, em barro, em Conímbriga; um, de quadrante esférico, proveniente da vila romana da Herdade da Olivã, Campo Maior, junto à fronteira espanhola; ou um fragmento, em pedra, no teatro romano de Lisboa e outro, também em pedra, na vila de Freiria (S. Domingos de Rana, Cascais). Mas o exemplar mais interessante, até porque o único rigorosamente datado e aquele que alguma controvérsia tem gerado, é um que não foi até hoje descoberto mas cuja existência está documentada numa inscrição.

Estamos a referir-nos a uma lápide romana, de 16 a.C., encontrada em Idanha-a-Velha (antiga Egitânia). A inscrição nela contida, uma das mais antigas que se conhecem em território da Lusitânia, diz-nos que um tal Q. Iallius Augurinus mandou construir, à sua custa, um “(h)orarium” (relógio), que ofereceu à cidade de Igaeditanis.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

Em 1377, seguramente, a Sé de Lisboa instala “um relógio de torre, batendo sinos.” Segundo os registos, terá sido seu autor um tal “mestre João”, francês. É a primeira referência segura, em território nacional, a um relógio mecânico, de torre – a chamada relojoaria grossa.

O casamento, em 1387, da filha de João de Gant, D. Filipa de Lencastre (1360-1415), com o rei português D. João I (1357-1433) inicia, por um lado, a dinastia de Avis, por outro, o relacionamento sistemático dessa casa real com a Inglaterra e com as fontes de saber científico que vinham do norte e centro da Europa. A relojoaria que entra em Portugal a partir dessa altura é da chamada “escola inglesa”.

No século XVI, a família Behaim, natural de Nuremberga, e com negócios em Lisboa, terá sido a responsável pela importação de muitos instrumentos científicos, entre os quais belas meridianas em marfim (relógios de sol) e pela introdução dos primeiros relógios mecânicos portáteis, os chamados “ovos de Nuremberga”.

No tempo da Expansão, os ocidentais, liderados pela Coroa portuguesa, pelo respectivo Padroado e pela Companhia de Jesus, conseguiram introduzir-se nos corredores do poder na China, no Japão ou no que é hoje o Vietname, através de relógios mecânicos e autómatos, que muito maravilhavam imperadores e shoguns. Padres portugueses construíram relógios para a corte de Beijing, chefiaram o Observatório Astronómico local ou o de Hainan (nome do antigo reino vietnamita) e fundaram mesmo a primeira escola de relojoaria do Japão.

O tempo de D. João V é glorioso para a relojoaria nacional: com o ouro do Brasil, importam-se dos melhores mecanismos que havia na Europa, sendo disso paradigma os dois exemplares de torre vindos de Antuérpia e que equipam o Convento de Mafra. O terramoto de 1755 e as Invasões Francesas são marcos de destruição no património relojoeiro nacional. A extinção das ordens religiosas e a venda do seu património a particulares, em 1834, foram a terceira machadada num acervo que continua hoje desprezado.

Em 1755 publicava-se em Lisboa um folheto científico onde se dava conta de um eclipse parcial da Lua, observado nesta cidade a 27 de Março desse ano. Eram seus autores os jesuítas Eusébio da Veiga e José Teixeira.

O que o opúsculo tem de interessante, resume-se a dois factos: prova que Portugal, e especialmente os jesuítas, estavam tão avançados como o resto da Europa no capítulo da astronomia, que eram capazes de fazer relógios dos mais modernos para o tempo, que os auxiliavam nas suas observações. Nota curiosa, trata-se da primeira vez que detectámos, em documentos escritos portugueses, a noção do segundo como unidade de tempo.

Escrito em latim, o opúsculo diz a abrir: “Para a medição do tempo, foi utilizado um relógio com oscilador do tipo Graham”. Ora, o relojoeiro inglês com esse nome acabara de inventar há poucos anos essa melhoria extraordinária, que iria tornar mais exactos os relógios a partir de então. Os jesuítas portugueses estavam a par desses desenvolvimentos tecnológicos e, mais, sabiam como aplicá-los.

Em 1765, por iniciativa do Marquês de Pombal, funda-se na zona das Amoreiras-Rato uma “Real Fábrica da Relogiaria”, com capital estatal, saber estrangeiro (francês), a primeira do género no país. Duraria algumas décadas.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

João Jacinto de Magalhães, um “estrangeirado” estabelecido em Londres, comprou no século XVIII muitos instrumentos científicos encomendados pela corte portuguesa. E inventou alguns relógios, que ainda se podem apreciar em instituições nacionais.

No século XIX, dois nomes, Augusto Justiniano de Araújo, fundador em 1895 da Escola de Relojoaria da Casa Pia (continua a ser a única do país) e o do seu amigo Veríssimo Alves Pereira (que equipou com meridianas – mecanismos que faziam troar peças de canhão aquando da passagem do sol pelo zénite – as cidades de Lisboa e do Porto) dominam o Tempo português.

A Boa Reguladora, de Vila Nova de Famalicão, fundada em 1892, é exemplo único de perenidade na indústria relojoeira nacional.

Na passagem do século XIX para o século XX, um português, António Augusto de Carvalho Monteiro, o “Monteiro dos Milhões”, grande coleccionador de várias coisas, entre elas relógios, encomendou ao relojoeiro francês Leroy aquele que foi durante décadas considerado “o relógio mais complicado do mundo”, um exemplar de bolso, ricamente trabalhado e com dezenas de funções. Hoje, a peça encontra-se no museu de Relojoaria de Besançon.

Manuel Francisco Cousinha (Cacilhas, Almada) ou José Pereira Cardina (Nazaré), Jerónimo & Filhos (Braga) ou Garage Nelas (Viseu) são exemplos de construtores portugueses de relojoaria grossa que, na primeira metade do século XX equiparam muitas torres de igrejas e municípios com máquinas de sua autoria.

Um beirão, Dimas de Melo Pimenta, cedo emigrado no Brasil, construiu ali nos anos 50 do século XX uma sólida indústria relojoeira, que ainda hoje perdura, fundou um dos mais importantes museus de relojoaria, em São Paulo.

Germano Silva, um português radicado há muito na Califórnia, dedica-se à construção de espectaculares relógios de sala, munidos de grandes complicações, como carrilhões e horas universais.

Um empresário com bom gosto, António de Medeiros e Almeida, adquiriu a pouco e pouco, no século passado, entre outras peças decorativas, a maior colecção de relógios privada de Portugal, e uma das maiores do mundo em exemplares Breguet. Que não saiu do país e pode ser admirada na sua casa-museu, em Lisboa. Calouste Gulbenkian, Ricardo Espírito Santo, Anastácio Gonçalves, António de Almeida, Pisani Burnay são outros nomes de importantes coleccionadores de relógios do séc. XX português.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

A Hora Legal e o Segundo Padrão

A partir de 1 de Janeiro de 1912, a chamada Hora Legal, em todo o território português, fica subordinada ao meridiano de Greewich, segundo o princípio adoptado na Convenção de Washington em 1884. Por esse diploma legal, em que se considerou que a adopção de tal princípio oferecia muitas vantagens, tanto no movimento internacional dos comboios, como nos serviços telegráficos, nas relações marítimas e no convívio científico do país com o estrangeiro, os relógios nacionais foram adiantados de 36 minutos e 44,68 segundos. Além disso, permitiu-se e tornou-se válido para todos os efeitos legais ou jurídicos, que se designassem pelos números de 13 a 23 as horas compreendidas entre o meio-dia e a meia-noite, suprimindo-se assim, as designações “Tarde” e “Manhã” ou outras equivalentes, e que a meia-noite se designasse por zero. Pelo mesmo diploma, desapareceu a diferença existente de cinco minutos entre os relógios internos e externos das estações ferroviárias.

Fosse qual fosse a hora que vigorava, desde 1903 que, por lei, era o Real Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda) quem tinha por missão o serviço de transmissão telegráfica da hora oficial às estações semafóricas, que constituía na “transmissão diária dos sinais da pêndula média para o Arsenal da Marinha e Escola Politécnica, a fim de promover a queda do balão à uma hora precisa do tempo médio oficial”.

À Comissão da Hora Oficial, com sede na Escola Naval, confirmaram-se por decreto-lei de 1915, os poderes de superintendência no serviço do novo sinal horário, competindo ao Observatório da Ajuda “enviar constantemente os sinais para a regulação do relógio público”.

Um decreto de 1924 dizia que os serviços radiotelegráficos da Armada ficavam subordinados ao sinal horário dado pelo Posto Radiotelegráfico de Monsanto.

Legislação de 1944 extinguiu o Serviço da Hora Legal e criou a Comissão Permanente da Hora, à qual preside o director do Observatório Astronómico de Lisboa, estando nele representados vários serviços directamente interessados (incluindo a Emissora Nacional de Radiodifusão), concedendo-se a essa comissão o direito de intervir em tudo quanto se relacionasse com a determinação, conservação, difusão e fiscalização da hora em Portugal. Para além de fixar a chamada Hora de Verão, a comissão tinha que fiscalizar os relógios expostos nas vias públicas, estações de caminhos-de-ferro, estações dos correios, aeroportos, estações marítimas e outros locais públicos.

Mas a anarquia quanto ao conceito de Hora Legal em Portugal acentuou-se na década de 90 do século XX, especialmente devido à proliferação de emissões de sinais horários por parte de meios de comunicação em mercado liberalizado. Cada estação de rádio dá os seus sinais como bem entende, as televisões fazem o mesmo, cada uma vai buscar a sua “hora certa” às mais variadas fontes, geralmente internacionais.

Para combater essa situação, a 18 de Julho de 2002 entrava em funcionamento no Observatório Astronómico de Lisboa o Centro Horário de Alta Segurança. A finalidade deste centro reside na Certificação da Hora Digital (Segura), permitindo calcular a hora certa, de modo a evitar que as entidades utilizadoras deste serviço tenham problemas resultantes da inexactidão horária. Na sala do Observatório adaptada para o efeito, sob temperatura o mais constante possível, com autonomia de energia para casos de emergência, relógios de césio e emissores GPS, colocados nas situações o mais estáveis possível, vão dando, silenciosamente, o tempo. Certo.

O objectivo é que, a partir desta sala, o Observatório possa emitir um “tempo certificado” para todas as entidades públicas ou privadas que assinem o serviço entretanto criado (O Banco de Portugal é um dos seus clientes). Este time stamping, ou carimbar do tempo, como é conhecida internacionalmente a função, torna-se cada vez mais necessário num mundo de decisões rápidas e globalizantes. O observatório, entidade idónea, não sujeita a pressões económicas ou de outro tipo, passa a garantir, com total independência, a emissão do tempo em Portugal, coordenado com o Tempo Universal mundial.

Se a hora legal é uma questão astronómica, por tradição, e por isso dada como missão em Portugal aos vários observatórios astronómicos que foram existindo, já a determinação da unidade de tempo padrão é do âmbito da metrologia, a ciência que homologa as várias formas de medir as várias realidades.

Por despacho de Fevereiro de 1999, é ao Instituto Português da Qualidade (IPQ) que compete a responsabilidade da gestão do Sistema Internacional de Unidades (SI), incluindo a de aprovar os padrões nacionais das unidades de medida da grandeza massa – o quilograma, e das grandezas comprimento, tempo, temperatura, termodinâmica e quantidade de matéria – respectivamente o metro, o segundo, o Kelvin e o mole. Por outras palavras, e no que diz respeito ao tempo, o IPQ é o depositário e fiscalizador do chamado segundo padrão. Situado no Monte da Caparica, nele está instalado o Laboratório Central de Metrologia, um laboratório primário de tempo e frequência, equipado com relógios de césio, ligado a uma rede mundial.

Hoje, o segundo corresponde a 9 192 631 770 períodos do estado fundamental do átomo de césio 133. Os relógios “atómicos” têm variações inferiores a um segundo em 20 milhões de anos.

Com uma precisão conseguida ao milésimo de segundo ou menos, o tempo continua a ser a grandeza que o homem consegue medir com mais precisão. Essa precisão permitiu estabelecer uma referência horária legal para todo o mundo: o Tempo Universal Coordenado (UTC).

Em Sévres, perto de Paris, o Bureau Internacional dos Pesos e Medidas (BIPM), organização privada financiada por 50 Estados, incluindo Portugal, gere a metrologia, a ciência das medidas. O BIPM define o Tempo Atómico Internacional (TAI) a partir da média de 230 relógios atómicos instalados nos cinquenta países membros. O IPQ, através dos seus relógios de césio, a partir do Monte da Caparica, contribui para essa medida.

É fascinante a aventura do Homem no Tempo, da evolução paralela das Mentalidades, da corrida técnica que as máquinas medidoras do Tempo têm protagonizado, ganhando de pleno direito um lugar de destaque na História do Conhecimento.

Portugal, que liderou durante umas dezenas de anos do século XVI o Saber europeu (ocidental, mundial), aquando do auge do seu período de Expansão marítima, através de saberes autóctones ou importados, cedo perdeu essa primazia e a sua relação (acerto) com o Tempo tem sido, desde então, sintomaticamente, difícil.

Desprezando, mais por ignorância do que por falta de meios, o seu património relojoeiro (especialmente o de torre), o país vai tendo, aqui e acolá, exemplos de sensibilidade, de mecenato, de protecção das Máquinas do Tempo que ainda não foram destruídas ou vendidas para o estrangeiro.

Instituições como o Palácio da Ajuda, onde está parte da colecção Real, o município de Santarém, com o seu Núcleo Museológico do Tempo, ou o Museu do Relógios, em Serpa, procuram também a dignificação de um acervo que se mistura muito com o Saber Científico, a Modernidade.


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

O relógio de Orgens

O século XV foi acentuando a importância do tempo público, marcado primeiro a partir de relógios de torre de mosteiros, com mecanismos que accionavam os sinos, passando a pouco e pouco a estar instalados nas torres municipais. Em Portugal, um frade leigo, João da Comenda, sabia ler e escrever. E fazia “bons” relógios, graças aos seus conhecimentos de serralheiro.

“No ano do Senhor de 1478, sendo vigário provincial frei João da Póvoa: requereu-lhe um frade leigo que se chamava Frei João da Comenda, natural de São Pedro do Sul, morador nessa altura em Orgens, perto de Viseu, licença para construir um Relógio de Rodas de Ferro. Porque o engenho lhe dizia que o poderia fazer bem [...] E o dito vigário lhe deu esta licença, mandando ao guardião de São Francisco de Orgens que lhe fizesse a despesa do ferro e pagasse o ferreiro que lhe forjasse as rodas e o artifício, se não que ele compassaria e limaria e pregaria e faria tudo o que lhe cumpria, e que fizesse logo um relógio para o dito mosteiro. À qual cousa aviada meteu mão à obra com despesa de 500 reis”. Esta informação está contida numa obra quinhentista existente no Arquivo Distrital do Porto, escrito por Frei João da Póvoa.

Camilo Castelo Branco, numa colectânea de contos (4), fala de frei João da Póvoa, confessor de D. João II e primeiro cronista dos franciscanos em Portugal. Refere Camilo que este frei João “proveu de relógios nove conventos de franciscanos”. E acrescenta, de forma pouco exacta e romântica que, “naquele tempo em Portugal existia unicamente um relojoeiro. Era frei João da Comenda, leigo d’esta casa [da Ordem de S. Francisco]. Fez treze relógios, e alguns a pedido do rei. Aqui viveu e morreu. O relógio, que ele aqui deixou, duzentos anos depois, regulava ainda, e pedia à meia-noite um pater por alma do artífice”.

João da Comenda não seria “o único relojoeiro” existente à época em Portugal (à ordem dos principais municípios ou das sés estariam relojoeiros estrangeiros ou portugueses, que se encarregavam da manutenção da relojoaria grossa ou férrea). Mas, segundo vários investigadores, terá sido o primeiro relojoeiro português, no sentido de ter feito mecanismos de raiz. É pelo menos o primeiro referenciado deste modo nas fontes até agora encontradas. Quem seria Frei João da Comenda, franciscano, irmão leigo, que por seu engenho fez este e vários relógios de rodas para outras tantas torres de Portugal? Onde terá ele aprendido a arte de calcular diâmetros de rodas, número de dentes, sistemas de pesos e contrapesos? Ninguém sabe. Mas, sendo um franciscano, coloca-se a hipótese de ele ter viajado por França, ou especialmente por Itália (na altura o país tecnologicamente mais avançado em relojoaria grossa), pois os membros desta ordem eram conhecidos por fazerem grandes périplos ao longo da vida.

O cronista João da Póvoa adianta que o primeiro e “bom” relógio foi feito em três meses. A este seguiram-se encomendas de mosteiros de todo o país, chegando tão ao sul como Setúbal, para um total de 13 relógios de torre. E acrescenta mais alguns pormenores sobre a personagem: “sabe ler e escrever, é um frade leigo, homem fiel e honesto e bem devoto, e de bom exemplo: filho de um Fernão Vaz, que teve carrego de uma comenda da ordem dos Cavaleiros de Rodes [...) E é de idade de 35 anos quase. E é subtil em outras cousas...” O mesmo cronista refere um frei João da Montanha, serralheiro, que tomou hábito em Alenquer, em 1475. Era “muito subtil em todo o mundo em fazer todo o labor de lima” e subentende-se que terá feito também obra relojoeira, a chamada “horologia ferrea”.

Um tal D. João de Abreu ou D. João Gomes de Abreu, devoto do convento, e cujas armas ainda hoje estão no arco da capela-mor, tinha mandado fazer em 1476 a torre para o relógio. Como era usual nessa altura, a torre tinha apenas abertura para os sinos, um profundo vão para deixar passar a corda e os pesos do relógio (quanto mais extensa a corda, maior a autonomia), mas não dispunha de mostradores. É que os relógios da altura eram apenas de “tanger”, faziam soar sinos, “batiam” as horas, não as mostravam, e eram muito inexactos. Um mostrador, mesmo que apenas com o ponteiro das horas, ainda estava para chegar.

Segundo o investigador Rolando van Zeller, e referindo-se a João da Comenda, “o conhecimento que o bom do frade tinha, da maneira como se construíam relógios, devia resultar da convivência com outros serralheiros leigos ou monges, pois não se admite que subitamente lhe viesse à ideia de fabricar um, perdido como estava nos claustros do Mosteiro de Orgens”.

Van Zeller, refere que João da Comenda era do Convento da Conceição de Leça da Palmeira, vizinho do de S. Salvador de Bouças, este último pertencente à ordem de Cister, o que poderia explicar alguma coisa. Essa ordem “sempre procurou juntar a cristianização que operava em Portugal ao desenvolvimento de actividades industriais úteis para o progresso do país”. E acrescenta: “Se examinarmos com atenção o mapa da nossa terra, verificamos que é perto dos conventos principais da ordem de Cister que a arte de relojoaria se desenvolveu na província, e de que ainda restavam vestígios no final do século XVIII.”

Cister instalou-se em Portugal por volta de 1144, a partir provavelmente de São João de Tarouca, espalhando-se depois um pouco por todo o país. Van Zeller aventa a hipótese dos monges desta ordem terem recebido os ensinamentos sobre trabalhar o ferro com os monges de Alcobaça, que se preocuparam em instalarem fundições e serralharias nos seus conventos ou vizinhanças.

Contrariando a primazia aventada por van Zeller, outro investigador, Jorge Custódio, faz notar que “a maioria das máquinas montadas no século XV foram encomendadas por conventos franciscanos e jerónimos e não tanto por beneditinos ou cistercenses”.

Toda a interpretação que se seguiu ao escrito de van Zeller partiu da premissa errada cistercense. Como Orgens é franciscano (fundado em 1410 por um frade galego, Pedro de Alemancos), parece que a questão fica mais ou menos resolvida.

Aquando da nacionalização dos bens das ordens religiosas, em 1834, Orgens também foi vendido. Do inventário da altura regista-se, na torre: um relógio com a sua competente sineta, avaliado em 24 mil réis; um sino grande, avaliado em 30 mil réis; uma sineta pertencente ao Refeitório, avaliada em 600 réis; outra sineta, pertencente à Portaria, avaliada em 6.800 réis e uma bandeira de ferro da Torre, avaliada em 300 réis.

Dos sinos, não há hoje sinal. Da bandeira de ferro, certamente um cata-vento, houve igual sumiço. Quanto ao relógio, que teoricamente seria ainda o feito em 1478 por frei João da Comenda, dizia-nos em Novembro de 2000 o historiador local Alexandre Alves: “A preciosa relíquia, inteiramente de ferro […] encontra-se actualmente devidamente preservada e encaixotada”. O historiador baseava-se numa notícia aparecida sete anos antes, no Jornal da Beira.

Viemos pela primeira vez a Orgens em 2002, no âmbito das investigações que estávamos a efectuar para a obra História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades. (Novembro de 2003, edição Diamantouro). E o que encontrámos, então, metia dó. O conjunto jazia a apodrecer à chuva e ao vento, entre cacos, dejectos de pombo e uns madeiros podres, na tal torre sineira. A gaiola deste relógio cavilhado (porque se usavam cavilhas em vez de pregos) ainda deve ser a original, mas muitas das peças terão sido substituídas ao longo dos quase 525 anos que esteve a funcionar. Uma das primeiras a ser substituída terá sido o escape, que era do tipo folliot, e que hoje é de âncora. Uma equipa de técnicos do IPPAR estivera pouco tempo antes no local, inventariando a capela para classificação. Tivemos acesso ao relatório que daí resultou. Fala-se de tudo, menos do relógio (certamente por ignorância de que lá se encontrava uma peça importantíssima da arqueologia industrial portuguesa).

Recebidos com cordialidade pelos responsáveis religiosos e autárquicos locais, nas pessoas do Sr. Padre António Teixeira e do Presidente da Junta de Freguesia de Orgens, Sr. Manuel Pereira, e ali assinalámos a importância da peça, mesmo no estado em que se encontrava, manifestámos a nossa pena pelo facto de ela não ter tratamento museológico mínimo, de ela não poder estar à disposição do público em geral, especialmente as camadas mais jovens, que devem desde cedo ser sensibilizadas para o património e para a sua protecção.

Ficámos agradavelmente surpreendidos há uns meses, quando deparámos com notícias na imprensa regional beirã, dando conta de que o relógio de Orgens iria ser recuperado, por um relojoeiro que tinha tratado durante décadas da máquina, mestre Romão Pereira, e receber tratamento museológico adequado. Já refiro isso no livro que acabo de publicar, Cronologia do Tempo em Portugal (Novembro de 2004, edição Lagonda).

Foi com imenso prazer que viemos hoje até aqui – para testemunhar a aliança entre os poderes sagrado e profano na preservação “para memória futura” de um exemplar de relojoaria férrea que, como tentei explicar, tem muito para contar.

Que a boa-nova se espalhe, e que o exemplo de Orgens frutifique. Que quem hoje nos ouve passe a olhar com outros olhos para estas magníficas máquinas do tempo, e que Orgens – pioneiro na relojoaria férrea nacional, seja também o sinal de partida para a recuperação e contextualização do que ainda resta por esse país fora.

Bem-hajam

Fernando Correia de Oliveira

Jornalista e investigador

(1) Les catégories de la culture médiévale

(2) Revolution in Time

(3) Technics and Civilization

(4) Cavar em Ruínas


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)


(foto Arquivo Fernando Correia de Oliveira)

Semanas depois, saia um dos vários artigos que escrevemos sobre o restauro do relógio de Orgens, desta vez na revista Internacional Horas & Relógios.

Em Orgens, Viseu

Recuperado o mais antigo relógio mecânico referenciado em Portugal

O relógio mecânico da Igreja do Convento de S. Francisco de Orgens, em Viseu, considerado como uma raridade, e da autoria daquele que é considerado como o primeiro relojoeiro português – Frei João da Comenda – acaba de ser restaurado.

Fernando Correia de Oliveira

Naquele domingo chuvoso de Dezembro de 2004, com a igreja de São Francisco de Orgens apinhada de povo, o pároco vicentino António Teixeira Ribeiro estava comovido: depois de celebrar a missa, anunciou: “E agora, vamos inaugurar o nosso relógio”.

Ele e o presidente da junta de freguesia, Manuel Almeida Pereira, deram as boas-vindas ao secretário de Estado da Administração Local, José Cesário, vindo expressamente de Coimbra, e ao presidente da Câmara Municipal de Viseu, Fernando Ruas.

O momento era solene: um dos mais antigos relógios mecânicos de que há referência no país, o primeiro a ser fabricado por um português, iria voltar a dar horas.

Romão da Costa Pereira, um relojoeiro autodidacta local, que durante a década de 60 do século XX tinha tomado conta do relógio, metera meses antes mãos à obra e conseguira recuperar a peça, muito danificada, e que há décadas não “batia” horas. Mediante um gesto seu, o pêndulo pôs-se em marcha, e o relógio de Orgens voltou a soar. De lágrimas nos olhos, uma paroquiana idosa, não se conteve: “Há quanto tempo não ouvia este som, as memórias que ele me traz...” E garantiu: “Isto merece um poema, vou escrever um”.

Retirado da torre original, agora protegido das intempéries, numa caixa em acrílico, e mais facilmente visto por quem lá passe – o relógio vai passar a ser “uma peça fundamental do património de Orgens, que levará as pessoas a visitar a freguesia”, disse Manuel Almeida Pereira.

Fernando Ruas sublinhou a importância da recuperação do património do concelho. Segundo o edil, “é pela maneira como se tratam as coisas do passado que se vê o trabalho no futuro”. Mas qual é a história deste exemplar da chamada relojoaria cavilhada, férrea, de torre ou monumental?*

“No ano do Senhor de 1478, sendo vigário provincial frei João da Póvoa: requereu-lhe um frade leigo que se chamava Frei João da Comenda, natural de São Pedro do Sul, morador nessa altura em Orgens, perto de Viseu, licença para construir um Relógio de Rodas de Ferro. Porque o engenho lhe dizia que o poderia fazer bem [...] E o dito vigário lhe deu esta licença, mandando ao guardião de São Francisco de Orgens que lhe fizesse a despesa do ferro e pagasse o ferreiro que lhe forjasse as rodas e o artifício, se não que ele compassaria e limaria e pregaria e faria tudo o que lhe cumpria, e que fizesse logo um relógio para o dito mosteiro. À qual cousa aviada meteu mão à obra com despesa de 500 reis”. Esta informação está contida numa obra quinhentista existente no Arquivo Distrital do Porto, escrito por Frei João da Póvoa.

Camilo Castelo Branco, numa colectânea de contos, Cavar em Ruinas, fala de Frei João da Póvoa, confessor de D. João II e primeiro cronista dos franciscanos em Portugal. Refere Camilo que este frei João “proveu de relógios nove conventos de franciscanos”. E acrescenta, de forma pouco exacta e romântica que, “naquele tempo em Portugal existia unicamente um relojoeiro. Era frei João da Comenda, leigo d’esta casa [da Ordem de S. Francisco]. Fez treze relógios, e alguns a pedido do rei. Aqui viveu e morreu. O relógio, que ele aqui deixou, duzentos anos depois, regulava ainda, e pedia à meia-noite um pater por alma do artífice”.

João da Comenda não seria “o único relojoeiro” existente à época em Portugal (à ordem dos principais municípios ou das sés estariam relojoeiros estrangeiros ou portugueses, que se encarregavam da manutenção da relojoaria grossa ou férrea). Mas, segundo vários investigadores, terá sido o primeiro relojoeiro português, no sentido de ter feito mecanismos de raiz. É pelo menos o primeiro referenciado deste modo nas fontes até agora encontradas.

Quem seria Frei João da Comenda, franciscano, irmão leigo, que por seu engenho fez este e vários relógios de rodas para outras tantas torres de Portugal? Onde terá ele aprendido a arte de calcular diâmetros de rodas, número de dentes, sistemas de pesos e contrapesos? Ninguém sabe. Mas, sendo um franciscano, coloca-se a hipótese de ele ter viajado por França, ou especialmente por Itália (na altura o país tecnologicamente mais avançado em relojoaria grossa), pois os membros desta ordem eram conhecidos por fazerem grandes périplos ao longo da vida.

O cronista João da Póvoa adianta que o primeiro e “bom” relógio foi feito em três meses. A este seguiram-se encomendas de mosteiros de todo o país, chegando tão ao sul como Setúbal, para um total de 13 relógios de torre. E acrescenta mais alguns pormenores sobre a personagem: “sabe ler e escrever, é um frade leigo, homem fiel e honesto e bem devoto, e de bom exemplo: filho de um Fernão Vaz, que teve carrego de uma comenda da ordem dos Cavaleiros de Rodes [...) E é de idade de 35 anos quase. E é subtil em outras cousas...”

Um tal D. João de Abreu ou D. João Gomes de Abreu, devoto do convento, e cujas armas ainda hoje estão no arco da capela-mor, tinha mandado fazer em 1476 a torre para o relógio.

Como era usual nessa altura, a torre tinha apenas abertura para os sinos, um profundo vão para deixar passar a corda e os pesos do relógio (quanto mais extensa a corda, maior a autonomia), mas não dispunha de mostradores. É que os relógios da altura eram apenas de “tanger”, faziam soar sinos, “batiam” as horas, não as mostravam, e eram muito inexactos. Um mostrador, mesmo que apenas com o ponteiro das horas, ainda era coisa rara.

Segundo o investigador Rolando van Zeller, e referindo-se a João da Comenda, “o conhecimento que o bom do frade tinha, da maneira como se construíam relógios, devia resultar da convivência com outros serralheiros leigos ou monges, pois não se admite que subitamente lhe viesse à ideia de fabricar um, perdido como estava nos claustros do Mosteiro de Orgens”.

Van Zeller, refere que João da Comenda era do Convento da Conceição de Leça da Palmeira, vizinho do de S. Salvador de Bouças, este último pertencente à ordem de Cister, o que poderia explicar alguma coisa. Essa ordem “sempre procurou juntar a cristianização que operava em Portugal ao desenvolvimento de actividades industriais úteis para o progresso do país”. E acrescenta: “Se examinarmos com atenção o mapa da nossa terra, verificamos que é perto dos conventos principais da ordem de Cister que a arte de relojoaria se desenvolveu na província, e de que ainda restavam vestígios no final do século XVIII.”

Cister instalou-se em Portugal por volta de 1144, a partir provavelmente de São João de Tarouca, espalhando-se depois um pouco por todo o país. Van Zeller aventa a hipótese dos monges desta ordem terem recebido os ensinamentos sobre trabalhar o ferro com os monges de Alcobaça, que se preocuparam em instalarem fundições e serralharias nos seus conventos ou vizinhanças.

Contrariando a primazia aventada por van Zeller, outro investigador, Jorge Custódio, faz notar que “a maioria das máquinas montadas no século XV foram encomendadas por conventos franciscanos e jerónimos e não tanto por beneditinos ou cistercenses”.

Toda a interpretação que se seguiu ao escrito de van Zeller partiu da premissa errada cistercense. Como Orgens é franciscano (fundado em 1410 por um frade galego, Pedro de Alemancos), parece que a questão fica mais ou menos resolvida.

Aquando da nacionalização dos bens das ordens religiosas, em 1834, Orgens também foi vendido. Do inventário da altura regista-se, na torre: um relógio com a sua competente sineta, avaliado em 24 mil réis; um sino grande, avaliado em 30 mil réis; uma sineta pertencente ao Refeitório, avaliada em 600 réis; outra sineta, pertencente à Portaria, avaliada em 6.800 réis e uma bandeira de ferro da Torre, avaliada em 300 réis.

Dos sinos, não há hoje sinal. Da bandeira de ferro, certamente um cata-vento, houve igual sumiço. Quanto ao relógio, que teoricamente seria ainda o feito em 1478 por frei João da Comenda, dizia-nos em Novembro de 2000 o historiador local Alexandre Alves: “A preciosa relíquia, inteiramente de ferro […] encontra-se actualmente devidamente preservada e encaixotada”. O historiador baseava-se numa notícia aparecida sete anos antes, no Jornal da Beira.

Viemos pela primeira vez a Orgens em 2002, no âmbito das investigações que estávamos a efectuar para a obra História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades. (Novembro de 2003, edição Diamantouro). E o que encontrámos, então, metia dó. O conjunto jazia a apodrecer à chuva e ao vento, entre cacos, dejectos de pombo e uns madeiros podres, na tal torre sineira. A gaiola deste relógio cavilhado (porque se usavam cavilhas em vez de pregos) ainda deve ser a original, mas muitas das peças terão sido substituídas ao longo dos quase 525 anos que esteve a funcionar. Uma das primeira a ser substituída terá sido o escape, que era do tipo folliot, e que hoje é de âncora. Uma equipa de técnicos do IPPAR estivera pouco tempo antes no local, inventariando a capela para classificação. Tivemos acesso ao relatório que daí resultou. Fala-se de tudo, menos do relógio (certamente por ignorância de que lá se encontrava uma peça importantíssima da arqueologia industrial portuguesa).

Recebidos com cordialidade pelos responsáveis religiosos e autárquicos locais, ali assinalámos a importância da peça, mesmo no estado em que se encontrava, manifestámos a nossa pena pelo facto de ela não ter tratamento museológico mínimo, de ela não poder estar à disposição do público em geral, especialmente as camadas mais jovens, que devem desde cedo ser sensibilizadas para o património e para a sua protecção.

Ficámos agradavelmente surpreendidos há uns meses, quando deparámos com notícias na imprensa regional beirã, dando conta de que o relógio de Orgens iria ser recuperado e receber tratamento museológico adequado. Já refiro isso no livro que acabo de publicar, Cronologia do Tempo em Portugal (Novembro de 2004, edição Lagonda). Foi com imenso prazer que testemunhámos a aliança entre os poderes sagrado e profano na preservação “para memória futura” de um exemplar de relojoaria férrea que tem muito para contar.

Que a boa-nova se espalhe, e que o exemplo de Orgens frutifique. Que se passe a olhar com outros olhos para estas magníficas máquinas do tempo, e que Orgens – pioneiro na relojoaria férrea nacional, seja também o sinal de partida para a recuperação e contextualização do que ainda resta por esse país fora.

*Adaptado da comunicação O Tempo, Portugal e a Modernidade, feita em Orgens, aquando da cerimónia de inauguração do seu relógio restaurado, em 19/12/04.

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