Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

domingo, 19 de outubro de 2014

O Apple Watch e a indústria relojoeira suíça - crise do quartzo, capítulo II?


Artigo de análise sobre o Apple Watch, os smart watches e os efeitos económicos e sociais que eles podem ter face à relojoaria tradicional. No suplemento Fora de Série Especial Relógios, da edição de 17 de Outubro de 2014 do Diário Económico.

Os desafios do Apple Watch

A Suíça está lixada?

Fernando Correia de Oliveira

Um fantasma perfila-se no horizonte da indústria relojoeira tradicional – o smartwatch. Particularmente, será que o Apple Watch provocará um terramoto social e acabará com um objecto que anda há um século no pulso de toda a gente? Vem aí, para os suíços, a sequela de um filme de terror, “Crise do Quartzo II”?

Não se chama iWatch nem iPhone Smartwatch, como se especulava. Com caixa tipo almofada, o Apple Watch é compatível com os iPhones e usa o sistema operativo iOS 8. Além de dar horas, armazena uma série de dados relacionados com a saúde e o bem-estar do utilizador - calorias ingeridas, calorias gastas, passos dados... ritmo cardíaco, etc.

A batalha pelo espaço no pulso das novas gerações está, portanto, lançada - o relógio como símbolo de estatuto social e de história, património, herança, por um lado; o relógio como objecto high-tech, de usar e deitar fora quando sai uma nova geração, sem haver sequer o conceito de manutenção ou reparação, por outro. Somos suspeitos, claro. Gostamos de relógios... e não esperamos deixar por herança aos nossos filhos gadgets ultrapassados no momento em que saem da fábrica... Além disso, alguns observadores avisam - tal como os smart phones, estes gadgets de pulso são intrusivos da vida pessoal de cada um - os dados vão parar à nuvem e, daí... seguem para sabe-se lá onde. Quer que o seu vizinho fique a saber o que acabou de comer ou quantos passos deu ontem pelo parque?

Mas, desde já, reconhecemos - esteticamente, o Apple Watch é de longe o mais bem conseguido de entre os gadgets até agora aparecidos no mercado para colocar no pulso.

Deverá a indústria relojoeira suíça começar a tremer, como disse há dias o responsável de Design da Apple? Ninguém sabe. Lá que começou uma guerra por um pequeno mas valioso espaço vital - o pulso - lá isso, começou...

Muito se disse nas últimas semanas sobre o Apple Watch. Se não ouviu nada sobre ele, “é porque terá passado os últimos tempos no fundo de uma gruta, no Alasca”, ironizava uma colunista de um site norte-americano de electrónica.

Elmar Mock, co-inventor do relógio Swatch foi das vozes mais alarmadas, acreditando que a indústria relojoeira suíça está a ignorar o novo objecto sem saber que ele a ameaça directamente. Numa entrevista ao site governamental suíço, Mock diz estar a ver os mesmos erros dos anos 1970 a serem repetidos, quando a indústria relojoeira helvética subestimou a concorrência dos relógios de quartzo japoneses.

Em 1970, Elmar Mock inventou o Swatch, juntamente com Jacques Müller e Ernst Thomke. O relógio foi desenhado para ser um produto acessível, que pudesse competir com os relógios japoneses de quartzo, muito baratos e que inundavam o mercado. Actualmente director da Creaholic, uma consultora para a inovação, Mock está contra a relutância suíça de entrar no jogo e responder, no mesmo campo, aos smart watches.

Muitos observadores prevêem que o Apple Watch, que estará à venda no início de 2015, será tão perturbador para o mercado como o foram o computador pessoal Mac, o iPhone ou o iPad. Para Mock, “o grande problema não é o Apple Watch em si mas o facto de um gigante da electronica como é a Apple ter entrado no mercado dos relógios. Faz todo o sentido ter uma ferramenta de comunicação no pulso, este espaço estratégico tem um enorme potencial de mercado”.

Para um dos “pais” do Swatch, “o principal desafio reside no ambiente digital e na experiência do consumidor que um smartwatch pode oferecer”. E acrescenta: “Há muito para aprender nesta nova área, mas só é possível aprender criando. É aqui que penso que gigantes da electrónica como a Apple, a Samsung ou a Google estão a ganhar a batalha”.

E, perante a classificação depreciativa destes smartwatches de meros gadgets, Mock diz: “De longe, o Apple Watch é o mais atraente deles. Decerto que me sinto atraído a usar um. É preciso não esquecer que os primeiros smartphones não substituíram de imediato os telemóveis convencionais. Quando foi lançado o primeiro iPhone, a Blackberry convenceu-se de que os consumidores dariam pela falta do teclado e a Nokia achou que os ecrãs grandes iriam ser do desagrado dos utilizadores…” Ao The New York Times, um designer da Apple citou o designer-chefe da empresa, Jonathan Ive, que terá dito “A Suíça está em apuros” (a frase exacta de Ive terá sido mais directa – Switzerland is f…).

Deverá então a indústria relojoeira suíça temer a invasão dos smartwatch, como previu Ive? Mock está mais do que pessimista: “A Suíça já perdeu a guerra do relógio de pulso. Apenas um em cada 200 relógios produzidos no mundo é suíço”, diz. No entanto, também reconhece que o lucro feito com um relógio suíço é maior do que o dos outros 199 somados. “Ganhámos, por agora, a guerra do lucro”.

A indústria relojoeira suíça conseguiu transformar um relógio numa jóia mecânica, que representa o engenho e a produção manuais. Também consegue ter o melhor design, o melhor marketing, a melhor comunicação. “Os smartwatches não vão substituir, de um dia para om outro, os relógios mecânicos, assim como as metralhadoras Kalashnikov não tornaram as espadas de samurai objectos menos apetecíveis”, nota com alguma ironia Mock.

E acusa: “A Suíça perdeu uma enorme oportunidade e é chocante que os líderes da indústria relojoeira não achem que o mercado dos smartwatch seja apetecível. Este mercado pode valer 30 mil milhões de euros, assumindo um número realista de 100 milhões de smartwatches vendidos anualmente”.

Será Nick Hayek, CEO do Swatch Group, um exemplo da atitude despreocupada face aos smartwatches? “Claro que sim!”, ataca Mock. “Compreende-se que marcas topo de gama como Breguet, Rolex, Cartier ou Patek Philippe estejam despreocupadas. Mas a Swatch, pelo contrário, deveria estar num papel de liderança neste processo. Os relojoeiros suíços parecem ter esquecido como subestimaram os relógios japoneses de quartzo nos anos 1970, dizendo que eles eram meros gadgets e não verdadeiros relógios. Esse erro levou ao quase colapso da indústria relojoeira suíça”. E vai mais longe: “Eventualmente, com o Swatch, conseguimos responder com sucesso e criar um relógio de quartzo com estilo. Mas falhámos depois a reconquista do mercado global de relógios através de investimento na industrialização. Obssecado com os lucros a curto prazo, o Swatch Group deu uma reviravolta de 180 graus e dedicou-se aos relógios deluxo. Em vez de investir em ideias, o grupo tem escolhido investir em marcas de luxo e em boutiques monomarca por todo o mundo”.

Nick Hayek, nas reacções públicas que tem tido em relação ao Apple Watch, desvaloria o novo produto, recordando que a Swatch tem uma experiência de mais de uma década na concepção, desenvolvimento e produção de smartwatches e que esses modelos não têm tido êxito, antes e sempre problemas com a constante renovação do software e com a substituição rápida do próprio relógio.

Está o Swatch Group assustado com o Apple Watch? “Não! Vamos lançar o nosso próprio smartwatch para o ano e o Swatch Group foi pioneiro no capítulo dos smartwatches quando lançou o Swatch Paparazzi , já em 2004. Desde então que não parámos de produzir smartwatches.”

Swatch Paparazzi? Quem se lembra? E fazia o quê? Convenhamos que a resposta do responsável pelo maior grupo relojoeiro do mundo não será nada convincente. Com a legitimidade de ser um dos inventores do Swatch, o relógio que salvou a indústria relojoeira suíça, Mock conclui: “O sector começa a parecer-se com uma reserva índia americana. Recusa-se a fazer parte das mais recentes alterações, não devido a falta de criatividade ou inovação, mas por escolha estratégica. Infelizmente, falta à Suíça um Steve Jobs que possa conduzir a sua indústria relojoeira até ao futuro. Isso não quer dizer necessariamente que a indústria esteja no caminho errado, mas que perdeu o barco quanto aos smartwatches”.

No seu Watch Insider, Alexander Linz, um jornalista austríaco especializado, que muito respeitamos, refere: “Estamos a falar de dois segmentos totalmente diferentes, e também de compradores diferentes. Pode acontecer que alguém que esteja habituado a usar um relógio mecânico passe agora a usar também, no outro pulso, um smartwatch, mas este nunca substituirá o relógio mecânico. Pelo contrário, penso que a Apple e todos os outros produtores de smartwatches provavelmente estimularão que nunca antes usaram relógio a comprar agora um, e posso imaginar que essas pessoas possam mais tarde começar a comprar outros relógios, com alguns eventualmente a comprarem um relógio mecânico”.

Para muitos observadores, os relógios mecânicos topo de gama terão cimentado o seu estatuto de objectos de luxo perante uma audiência mundial que continua a crescer. “Ninguém precisa verdadeiramente de um relógio caro, mas também ninguém precisa de um Lamborghini Gallardo ou de um original de Jackson Pollock ou de uma garrafa de Chateau Lafitte Rothschild 1945”, refere Mark Bernardo, outro colaborador do Watch Insider. “Um iPhone é caro, mas ninguém pode dizer hoje em dia de forma convicente de que se está perante um artigo de luxo. Se os smartwatches vierem um dia a ultrapassar definitivamente os relógios mecânicos, isso será sinal de algo muito mais importante: um abandon generalizado do luxo e do que é artesanal a favor dos produtos de produção maciça e totalmente utilitários. E isso é difícil de imaginar”. “Acho que o smartwatch nem sequer vai beliscar os relógios de quartzo, pois sei que hoje em dia muitas companhias reuniram muito know-how e que estarão prontas a responder, se necessário”, defende Alexander Linz. “O facto de, até agora, ninguém ter apresentado na Suíça um relógio desses significa que o sector está numa posição de expectativa, para ver como reagirá o mercado. Não será necessário que os suíços, neste caso, liderem”. E fala do Apple Watch mais como “uma bracelete digital” do que como um verdadeiro relógio.

Na verdade, dois pontos negativos do Apple Watch, apontados por Jen King, jornalista senior no Luxury Daily, são a autonomia da sua bateria e a necessidade de ter um iPhone por perto para o poder utilizar. Assim, o novo produto será mais um acessório, um periférico, do telemóvel, que o objecto autónomo.

Mas a Apple encara a questão “relógio” muito a sério. A contratação de Patrick Pruniaux, antigo vice-presidente de vendas da Tag Heuer, indica exactamente isso. Se a chamada alta relojoaria parece estar a salvo do fenómeno smartwatch, isso não impede que muitos analistas avisem: a Apple está a entrar no sector do luxo, para capitalizar enormes margens de lucro e aproveitar a força da sua imagem de marca. O facto de a empresa ter contratado recentemente os CEOs da Burberry e da Saint Laurent indica estar a caminhar nesse sentido.

Classificado já como “o mais pessoal” de todos os produtos Apple, o relógio terá uma exactidão entre os 50 milisegundos, estará ligado ao sistema de GPS e mudará automaticamente de fuso horário. Mas essas façanhas técnicas não chegam para poder ser considerado “artigo de luxo”. Haverá linhas personalizadas do Apple Watrch, usando, por exemplo, metais preciosos? Sim. A linha Edition terá caixa de ouro rosa ou amarelo e custará cerca de mil euros. Há já quem fale de cooperação futura entre a Apple e criadores joalheiros, para o aparecimento de um Apple Watch jóia.

Su Jia Xian, um coleccionador de relógios de Singapura, personalidade muito conhecida em todo o mundo da relojoaria, mercê da sua presença nas redes sociais, e autor do blog Watches by SJX ouviu alguns dos principais players da indústria relojoeira suíça sobre o Apple Watch.

Maximilian Büsser, da MB&F, diz que “os relógios mecânicos há muito que perderam a sua razão prática de existência, pelo que não penso que as marcas topo de gama – que se baseiam em arte, tradição e bela manufactura – tenham muito a temer. A questão, provavelmente será a de saber se os clients irão usar um relógio em cada pulso. Um muito ‘smart’ e o outro com uma alma verdadeira”.

Felix Baumgartner, da Urwerk, afirma: “Tenho iPhone, iPad, iBook mas não estou tentado ainda a comprar o Apple Watch. Ter qualquer coisa no pulso que faz beep sempre que recebo um email é algo demais para mim”.

O francês François-Paul Journe, da Montres Journe, radicado há muitos anos em Genebra, nota: “Há jóias de pulso, relógios de pulso e agora computadores de pulso. Podemos usar o que quisermos no pulso. Que impacto terá isso na alta relojoaria? Nenhum. Não se pode comprar algo dsescartável com algo que durará centenas de anos”.

O inglês Stephen Forsey, da Greubel Forsey, ele também há décadas instalado na Suíça, refere: Tem um design interessante, em termos de tecnologia de uso corrente, mas não é com um Apple Watch que vamos sentir a emoção ou a cultura e o carácter que encontramos num relógio mecânico topo de gama”.

Finalmente, a opinião de Ryan Raffaelli, um especialista na indústria do luxo, que escreveu recentemente na Harvard Business Review, e que acha que a indústria relojoeira suíça não tem nada a temer do Smart Watch, antes pelo contrário.

“Desde logo, o Apple Watch faz o uso do relógio relevante para uma nova geração de futuros coleccionadores de relógios”, diz ele. “Pergunto frequentemente a outros professores em todo o mundo quantos dos seus estudantes usam relógio. A resposta é sempre a mesma: ‘muito poucos’. Para muitos jovens adultos que cresceram a usar telemóveis para lhes dizerem a hora, a ideia de usar um relógio é equivalente a enviar um telegrama ou armazenar dados numa disquete”, defende. “O Apple Watch introduz o conceito de usar relógio a muitos dos jovens entre os 18 e os 35 anos, público alvo da Apple. Se a moda pegar, é provável que estes consumidores comprarão eventualmente outro tipo de relógios, que marquem acontecimentos ao longo da sua vida. Falem com qualquer executivo suíço de relojoaria e ele dirá que os seus melhores clientes começaram a coleccionjar Swatchs nos anos 1980, mas que eventualmente passaram a comprar, quando mais velhos, marcas mais caras como Rolex, Blancpain, Breguet, ou Audemars. Tal como o Swatch, pode ser que o Apple Watch venha a criar uma nova geração de aficionados e coleccionadores”.

Terminamos com uma opinião emitida um destes dias, em Lisboa, durante um almoço, por um jornalista de um título especializado do sector automóvel: “Durante muitos anos deixei de usar relógio, quando comprei o primeiro telemóvel e passei a ver as horas nele. Mas, há uns três anos, voltei a usar relógio. É que, nas mais diversas situações sociais, quando queria ver as horas, tirava o telemóvel do bolso e as outras pessoas lá pensavam – ‘que indelicadeza, lá vai ele ver ou enviar uma mensagem’. Quando o que eu queria era só ver as horas. Assim, quando agora olho para o pulso, já sabem claramente que só estou a procurar saber que horas são”.

O relógio de pulso começou a ser popularizado, em detrimento do relógio de bolso, há exactamente cem anos, aquando da I Guerra Mundial e do seu uso pelas tropas norte-americanas que desembarcaram em teatro europeu. Terá agora o seu ocaso?

Ou, no futuro, um smartwatch dum lado, um relógio mecânico do outro? Nós, pessoalmente, não. Usar um smartwatch seria como que andar a passear com o irritante e “espacial” auricular, tipo estafeta, que já pulula por aí. Mas, claro, gostos não se discutem.


Sem comentários: