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sábado, 6 de fevereiro de 2010

Pista da semana - O Paço


“Reservatório dos acontecimentos, local dos poderes e das acções duráveis, lugar de ocasiões místicas, o tempo-quadro adquire particular interesse para quem — deus, herói ou chefe — quer reinar, triunfar, fundar: esse, seja quem for, deve tentar apropriar-se do tempo tal como do espaço”. A frase, do historiador francês George Dumézil, aplica-se como uma luva a um soberano como D. João V.

Senhor de um tempo de surtos de peste, de vagas de ladroagem pelas ruas sujas da capital, de touradas nos campos próximos do Tejo, mas também das demonstrações “aéreas” do padre Bartolomeu de Gusmão ou de saraus de música ao melhor nível do que havia na Europa de então, D. João V “comprou” ao papa, para Lisboa, a dignidade de estatuto Patriarcal para o seu bispo.
Inquilino de um Paço, na Ribeira, que poucas alterações sofrera desde os tempos áureos da Expansão — de D. João II ou D. Manuel I — O Magnânimo achou que essa morada não era digna de um dos monarcas mais ricos da Europa. E, emulando Versailles ou o Escorial, também ali procurou aumentar a magnificência dos aposentos reais.

Para aumentar o Paço, contratou um renomado arquitecto italiano, António Canevari (1681-1750), que já tinha obra sua na cidade natal, Roma (conventos de S. João e S. Paulo, igreja de Santa Eustácia, etc.). Activo em Portugal a partir de 1728, Canevari foi “de todos os arquitectos italianos que trabalharam para D. João V, aquele que mais obras deixou entre nós, na região de Lisboa, não só para o próprio monarca, mas também para outros clientes, como seja o Cardeal Patriarca, D. Tomás de Almeida”, diz-nos Francisco José Gentil Berger, em Lisboa e os Arquitectos de D. João V. Isso, claro, se exceptuarmos os casos de Ludovice ou Mardel, que adquiriram nacionalidade portuguesa e nunca mais regressaram ao seu país de origem.

Infelizmente, boa parte do trabalho que se sabe ter sido edificado sob projecto de Canevari desapareceu com o terramoto de 1755, pois situava-se no desaparecido Paço da Ribeira e imediações, como seja: os aposentos da rainha no paço, a escadaria que lhe dava acesso, a igreja Patriarcal e, acima de tudo, a célebre torre do relógio.

Porque seria célebre a torre do relógio mandada fazer por D. João V? Sabe-se que, pelo menos desde D. Manuel I, o tempo “do poder” em Lisboa era marcado por uma torre sineira-relojoeira situada no Terreiro do Paço. D. João V queria marcar com cunho pessoal “o seu tempo”.

Nas biografias de Canevari, em qualquer enciclopédia de arte, portuguesa, francesa, italiana, inglesa, vem sempre, invariavelmente a referência à “célebre torre do relógio” de Lisboa. Poderá ter sido “célebre”, mas foi efémera, não terá durado em pé mais do que vinte magros anos. Pelos exemplos vindos das torres de Mafra, esta também deveria ter sido uma magnífica obra, do ponto de vista relojoeiro. Mas, na documentação portuguesa, pouco ou nada se consegue encontrar.

Pessoalmente, apenas conhecemos duas representações da “célebre” torre do relógio joanina. Em Alguns Desenhos Inéditos de Lisboa no Fim do Século XVIII, o olissipógrafo Gustavo de Matos Sequeira comenta-nos um desenho anónimo, onde aparece o Paço da Ribeira, “arruinado pelo terramoto”. Nesse desenho, representa-se o Paço, em ruínas, vendo-se a Torre da Patriarcal, aparentemente inteira, ostentando relógio, sinos e cata-vento.

Por outro lado, Triunfos de la nobleza lusitana y origem de sua blazones, de António Soares de Albergaria, uma obra de 1631 existente nos Reservados na Biblioteca Nacional de Lisboa, e pertencente à família Correia Freire, tem várias ilustrações anónimas, em desenho aguarelado, intercaladas ao longo do tempo nas folhas manuscritas. Uma delas, uma representação de Nossa Senhora da Conceição, tem por baixo o brasão da família. Nele, um aspecto do Terreiro do Paço e a Torre do Relógio, de Canevari, um apontamento minúsculo.

Da obra de Cavenari ficou, porém, um notável conjunto de edifícios em Santo Antão do Tojal (Loures), construído para o bispo D. Tomás de Almeida, o primeiro Patriarca de Lisboa.

Canevari foi igualmente chamado a dirigir aquela que terá sido a maior obra joanina em termos de equipamento, o Aqueduto das Águas Livres, destinado a terminar com as velhas e cíclicas carências de água na capital. Contrariamente ao que se possa pensar, D. João V não contribuiu com qualquer quantia para a obra, sendo as despesas pagas pela população de Lisboa, através da aplicação de impostos sobre bens de consumo.

Parece que Canevari conseguiu, logo de início, ter contra si todos os arquitectos portugueses intervenientes na obra, entre eles Manuel da Maia. Garantiam que, com o seu plano, a água não correria. Calúnias e invejas, segundo muitos historiadores da Arquitectura em Portugal, já que Canevari tinha provado saber construir aquedutos, ao fazer um para o complexo de Santo António do Tojal. Obrigado a abandonar o país, Canevari entrou ao serviço de Carlos de Bourbon, rei de Nápoles, continuando a assinar obra até morrer, aos 83 anos.

O Terreiro do Paço joanino era, segundo relatos de nacionais e de estrangeiros que visitavam Lisboa, dos sítios mais cosmopolitas da Europa, dada a profusão de nacionalidades e mesmo de credos em presença quando se tratava de nobres, comerciantes, militares, a população que, todos os dias, enchia a praça. Conta-se que era um espectáculo digno de nota quando, ao meio-dia, com as missas a decorrem por toda a cidade, se processava a Elevação do Santíssimo, e os sinos tocavam em uníssono as badaladas para o recolhimento dos fiéis. Os cristãos ajoelhavam, rezando e fazendo o sinal da cruz, os protestantes ficavam de pé, aguardando aquele momento de pausa espiritual dos parceiros, para depois recomeçar a azáfama do negócio.

A “célebre” Torre do Relógio de Canevari deve ter marcado mesmo profundamente quem a viu. Eugénio dos Santos delineou, na reconstrução da cidade, após o cataclismo de 1755, o arco triunfal do novo Terreiro do Paço. Carlos Mardel, num projecto posterior, acrescentava-lhe, ao centro, uma elegante torre de relógio, “cheia de recordações da famosa torre construída por Canevari décadas antes”, informa-nos Nelson Correia Borges na sua História da Arte em Portugal - do Barroco ao Rococó.

O arco foi construído, ainda lá está, mas em proporções muito menores às idealizadas pelos arquitectos. Quanto ao relógio, também lá foi posto um, mas dando apenas para a rua Augusta. E, sem apelo nem glória, quase sempre avariado.

A pista desta semana é pois o Terreiro do Paço, toda a sua envolvência, e os marcadores de tempo que por lá foram havendo - mesmo que já não existam, mesmo que estejam parados... Imaginação precisa-se!

Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003) ou Tempo e Poder em Lisboa - O Relógio do Arco da Rua Augusta (Espiral do Tempo, 2007).

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