Esquecido durante décadas entre as reservas do museu, fomos agora “desenterrá-la”. Ela lá estava, continuando a não se saber como ali foi parar. Por aqueles acasos do destino que as investigações por vezes proporcionam, chegámos ao mesmo tempo ao contacto com um livro publicado em Cambridge em 1988, aquando de uma exposição de relógios de sol: The Ivory Sundials of Nuremberg 1500-1700, de Penelope Gouk. E o mistério, pelo menos parcialmente, desfez-se.
A elegante peça que se encontra em Lisboa é gravada nas duas faces. Chega-se facilmente à conclusão de que não se trata de uma meridiana completa – é apenas a metade superior de um conjunto cuja base, possivelmente também em marfim, teria uma bússola. É este pelo menos o aspecto normal das meridianas produzidas à época.
Na face exterior, notam-se os furos onde assentariam os gnómons (ou espigões, geralmente em metal, que servem para projectar a sombra do sol numa escala e, assim, darem as horas). Além de três escalas nessa face, a peça está datada (1556) e assinada – Iohann Gebhart Nor.
Pois este tal Gebhart é dos artífices mais referenciados entre os que, nos séculos XVI e XVII fizeram da cidade alemã de Nuremberga um dos pontos mais importantes de construção de instrumentos científicos da Europa (do mundo). Na exposição de Cambridge figuram vários exemplares seus, assinados “Johann Gebhart Norenberge Faciebat”. No exemplar que se encontra em Lisboa, apenas o nome e a abreviatura da cidade.
Depois, na face interior, com um ornamento solar muito característico deste artífice, está uma espécie de relógio de sol universal, com a possibilidade de se saber a hora nas principais cidades europeias. Os números em frente do nome de cada uma das urbes dizem respeito às latitudes respectivas, tal como tinham sido calculadas à época. Danzig, Cracóvia, Praga, Viena, Colónia, Antuérpia, do centro e do norte da Europa, mas também Veneza, Roma, Nápoles, Florença, Sevilha ou Valência figuram no exemplar lisboeta.
Entre as peças que estiveram em exposição em Cambridge, muitos dos mestres de Nuremberga, Hieronymus Reinmann ou até Gebhart, incluíram frequentemente Lisboa nas escalas de latitude dos seus relógios de sol (ou meridianas, dado que, para se fazer a leitura, geralmente é preciso orientar o conjunto de acordo com o meridiano local e segundo o chamado eixo terrestre). Ironicamente, o exemplar do Museu Nacional de Arqueologia não conta com a capital portuguesa nas suas escalas.
Outra possível ironia – segundo Penelope Gouk, a maior parte do marfim que era usado pelos artífices de Nuremberga na feitura destes instrumentos de medição do tempo provinha de Lisboa (local de chegada das presas vindas de África, comercializadas pelos portugueses), de onde irradiava para toda a Europa de então.
Quem poderá ter usado as meridianas de Gebhart e de outros mestres seus conterrâneos? “Só o facto de este tipo de instrumento ser ajustável geograficamente indica desde logo que se tratava de objectos para distribuição alargada para além das fronteiras da cidade ou de um país”, diz-nos a especialista. “Embora este tipo de meridiana pudesse ser utilizada em todas as cidades a que fazia referência, a função real da lista de metrópoles era indicar que o seu possuidor era alguém que necessitava dessa informação. Da mesma maneira que as agendas de hoje incluem mapas, listas de aeroportos, datas de feriados e eventos religiosos em muitos países, enquanto relógios de pulso podem indicar tempos de até oito cidades espalhadas pelo mundo, mediante o simples toque de um botão. Estes objectos podem ser usados por pessoas que nunca vão para além cidade mais próxima, mas que gostam de imaginar viagens pelo mundo. Posto em termos modernos, os artífices de bússolas e meridianas conseguiam 'embrulhar' com imaginação um conceito de viagens pelo estrangeiro para todo aquele com dinheiro suficiente para comprar os seus instrumentos”.
Está documentado que havia relações comerciais intensas entre Lisboa e Nuremberga nos séculos XVI e XVII. Em Janeiro de 1507, por exemplo, Michael Behaim escreveu de Nuremberga ao seu irmão Wolfgang, sediado em Lisboa, agente ou sócio comercial da família Hirschvogel, igualmente daquela cidade. (27) Eles eram irmãos de um mais conhecido Martin Behaim, a que já fizemos referência, famoso pelo globo terrestre que ajudou a construir em 1492. A família era proveniente da região de Schwarzbach (Boémia), embora se tenha radicado em Nuremberga no século XIII, passando os seus membros a serem conhecidos pelos Behaim (boémios).
Na sua carta a Wolfgang, Michael fazia notar que a bússola que um tal Erhard Etzlaub estava a fazer seria entregue dentro de três a quatro semanas, sendo depois enviada para Lisboa. Esta não era, decerto, a bússola que aqui apresentamos. Mas o pequeno e elegante objecto manufacturado por Iohann Gebhart, de que apenas temos metade, terá sido também encomendada pelos Behaim? Não, porque foi feita cerca de meio século depois da morte dos dois irmãos que viveram em Lisboa. Mas terão sido eles os primeiros a introduzir em Portugal instrumentos desse género, feitos na sua cidade natal.
O mais novo dos Behaim, Wolfgang, tinha chegado a Lisboa alguns anos depois de Martin, mas morreria a 20 de Março de 1507,na capital portuguesa, quatro meses antes do irmão.
Para uma História da Relojoaria em Portugal, o seu testamento revela-se um elemento precioso. “Schlagurlein” – relógios despertadores – são mencionados entre os artigos deixados por Wolfgang. Como tinha deixado dívidas, os relógios tiveram que ser vendidos, para as pagar. Os relógios a que se refere o testamento são os famosos “ovos de Nuremberga”, pela primeira vez instrumentos portáteis e mecânicos de medição do tempo, inventados poucos anos antes pelo seu conterrâneo Peter Henlein.
É, julgamos, a primeira vez que se encontra referência a este tipo de objectos em território português.
*Adaptado de artigo publicado em 2003 no sumpelemento anual Cronos - Pilares do Tempo, do jornal Público.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
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