O século XVIII aproximava-se do fim e os olhos da Europa estavam, naqueles tempos, todos pousados em França, onde os acontecimentos políticos poriam em marcha formas de Governo que influenciaram até hoje o continente e o mundo. Luís XVI convoca em 1789 os Estados Gerais, mas as relações entre clero, nobreza e povo já não se podiam resolver com assembleias, tais as tensões sociais que se tinham acumulado. Em 1789 dá-se a Tomada da Bastilha e a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791 dá-se a fuga e prisão do rei e, em 1793, a sua execução. Tinha-se iniciado o Terror.
Em Portugal, D. Maria I, por morte do marido (D. Pedro III,
em 1786), e do filho primogénito, o príncipe D. José (1788) e, segundo relatos
coevos, “aterrada com a marcha da Revolução em França”, foi pouco a pouco
perdendo a razão e a saúde. O Governo passou em 1792 para o príncipe D. João
(depois D. João VI), que governou ao princípio em nome da mãe e, a partir de
1799, com a rainha irremediavelmente louca, como príncipe regente.
No Porto, por esses tempos, um regimento municipal,
regulando os vários mesteres do burgo, (91) dizia quanto aos chamados “oficiais
mecânicos”, incluindo os relojoeiros: “...que nenhum jogue bola nem outro
qualquer jogo aos dias de fazer; sob pena de mil réis, e na mesma incorrerá a
pessoa que deixa jogar em sua casa, como também a algum escravo cativo”.
Para além da perseguição em horas de trabalho ao que viria a
ser o desporto-rei, havia já as preocupações ambientais: “...nenhum oficial de
ferreiro, ou criado deste possa tirar barro dentro desta cidade, e subúrbios, e
da mesma forma amassá-lo às suas portas, de modo que suje a rua, pena de cinco
tostões, e na mesma pena incorrerão se deitar os escumalhos em outro lugar que
não seja o destinado para deitar os mais entulhos”.
Ainda no Porto, refira-se a figura de José Francisco de
Paiva (1744-1824), ensamblador e arquitecto, que em 1787 assina um desenho
intitulado “Relógios de Caixa Alta”. Paiva trabalhou muito para clientes da
comunidade inglesa do Porto, produzindo-lhes uma série de peças de mobiliário.
Não sabemos se chegou a fazer as caixas de relógios, em estilo neo-clássico. A
colecção dos seus desenhos, incluindo este, está no Museu Nacional de Arte
Antiga.
Nos manuscritos da Biblioteca da Ajuda há, sem data, mas
presumindo-se que da segunda metade do século XVIII, duas folhas não assinadas,
escritas em portugês e versando relojoaria. Intitulando-se Lembrança do que se
deve fazer para se poupar trabalho na fabrica dos relojos, contêm desenhos que
ensinam a dividir um quarto de círculo em seis e em 9 partes iguais, que dão as
“linhas” para o tamanho dos movimentos. (92) Nessa altura, funcionava em pleno
a Real Fábrica de Relógios do Rato e as duas folhas deverão ter pertencido a
algum dos relojoeiros portugueses que lá trabalharam, sob a direcção dos
franceses Berthet e Durand.
Em 1781, José Militão da Mata publicava O destro observador
ou método fácil de saber a latitude do mar a qualquer hora do dia, sem
dependência da observação meridiana, com uma prefacção analítica sobre os
progressos da pilotagem em Portugal.
Embora a questão da latitude já estivesse há muito resolvida
e apenas a da longitude, em mar, continuasse a ser mais difícil de determinar,
a obra de Militão da Mata teve grande influência na marinharia portuguesa. A
dado passo, recomenda: “Devem-se observar duas diversas alturas do Sol, e o
intervalo de tempo que mediar entre elas, por meio de um relógio de algibeira,
ou na falta dele, por alguma ampulheta bem ajustada. O relógio não importa ande
certo; basta que tenha bom movimento; isto é, que se não atrase ou adiante
consideravelmente em o espaço de seis horas, que é o maior intervalo que pode
mediar entre as duas observações; e depois pela resolução do mesmo problema se
vem no conhecimento de quanto o mesmo relógio anda atrasado, ou adiantado.
[...] Depois ajustar a observação com o relógio; isto é, marcar a altura
observada, ao tempo que o relógio mostra um certo número de horas, e minutos.
Advertindo que se o relógio se adianta ou atrasa consideravelmente em o espaço
de 24 horas, deve-se fazer conta com a parte proporcional do erro do relógio,
para se saber exactamente o intervalo de tempo decorrido entre as duas
observações”.
Em Coimbra, mercê da reforma decretada pelo Marquês de
Pombal, funcionava desde 1773 na Universidade um Gabinete de Física
Experimental. A colecção inicial de instrumentos veio do Colégio dos Nobres, em
Lisboa, entretanto extinto.
Resistindo ao tempo e a alguns desmandos humanos, a colecção
de instrumentos científicos do Gabinete é hoje uma das mais importantes do
país. Como já referimos anteriormente, é lá que se encontra um dos poucos
relógios do “estrangeirado” João Jacinto de Magalhães – uma pêndula reguladora.
O Gabinete possui ainda outro relógio de Magalhães, embora
instalado naquele que é, sem dúvida, um dos instrumentos científicos mais
valiosos da colecção, a chamada Máquina de Atwood. Trata-se de um relógio de
pesos, com a sua pêndula, a qual, ao mover-se, faz soar, de segundo em segundo,
uma campainha montada no alto do mostrador. No centro deste, bem como na
superfície da pêndula, lê-se a seguinte inscrição: “J. H. Magellan Lusitanus
invenit atque fieri Curavit Londini”. João Jacinto de Magalhães não só nos
informa que acompanhou a construção, em Londres, deste exemplar da Máquina de
Atewood, como nos declara que o pêndulo que ali se encontra é de sua invenção.
A Máquina de Atwood foi até muito recentemente o melhor instrumento que se
inventou para o estudo da relação entre o espaço percorrido por um móvel e o
tempo necessário para o percorrer.
Este exemplar é um dos mais valiosos da colecção, “não pela
qualidade do seu material ou pela beleza das suas linhas, mas por ser um dos
primeiros exemplares da famosa máquina de Atwood, da própria época do inventor,
e também por ter feito parte do material científico enviado de Londres por João
Jacinto de Magalhães”, diz-se no excelente catálogo O Engenho e a Arte, editado
em 1997, aquando da exposição com o mesmo nome, no âmbito da “Europália”, sobre
os instrumentos científicos do Gabinete.
Mas há ainda outros instrumentos científicos, feitos a
partir de ideias de Magalhães, como duas balanças de precisão ou um barómetro.
Durante as primeiras duas décadas do século XIX, o
fornecedor principal do Gabinete foi o fabricante Jacob Bernard Haas, que
possuía uma fábrica de instrumentos científicos em Lisboa. Este artífice,
nascido na Alemanha em 1753, trabalhava em Londres quando foi contratado pela
corte portuguesa a vir trabalhar para Lisboa, onde chega por volta de 1800. A
trabalhar na Cordoaria Nacional, à Junqueira, a casa Haas publicava em 1813 um
anúncio no Jornal de Coimbra, afirmando-se apta a fabricar barómetros, termómetros,
higrómetros, balanças hidrostáticas, uma grande quantidade de quadrantes
solares e relógios de sol, pluviómetros, óculos de teatro (binóculos), etc.
(93)
Mas, para uma História do Tempo em Portugal, além do relógio
de Magalhães, deverão referir-se ainda os instrumentos de autoria de George
Adams, pai e filhos, que neste caso não são relógios, não marcam o tempo, mas
usam mecanismos relojoeiros para trabalhar. (o Gabinete possui ainda uma
magnífica bússola dessa oficina).
Desde logo, uma espectacular roda para medir distâncias, que
terá vindo do Colégio dos Nobres e será da autoria do pai. “Oito estádios são
uma milha. Quarenta percas ou dez cadeias são um estádio. Quatro percas ou cem
círculos de ferro são uma cadeia. Sete 92/100 polegadas são um círculo de
ferro”, lê-se, em latim, no seu mostrador.
A Assembleia Nacional francesa iria aprovar, em 1790, a
constituição de um sistema unificado de pesos e medidas que pusesse cobro à
confusão que existia no país. Para a unidade de comprimento, estabeleceu-se que
o padrão seria uma fracção do comprimento do meridiano terrestre. A missão foi
confiada a Jean-Babtiste Delambre e Pierre Méchain que, de 1792 a 1799,
partindo um de Dunquerque, o outro de Barcelona, atravessando a França
revolucionária, mediram as distâncias mais com métodos trigonométricos do que com
as rodas do tipo Adams. Estava achado o metro-padrão, seguindo-se, nas tabelas
decimais que a França exportou para o Mundo, o quilograma-padrão. (94)
Houve também a tentativa de dividir o dia em 10 horas, cada
hora em 100 minutos, cada minuto em 100 segundos. Esta proposta, de 1793, foi
abandonada dois anos depois, mas ainda se construíram relógios com mostradores
“decimais”.
Terminamos com outra peça Adams existente no Museu de Física
– Departamento de Física da Universidade de Coimbra: trata-se de um autómato,
representando a figura de um centauro, com o habitual emprego de mecanismo
relojoeiro. Estabelecido em Fleet Street, Londres, George Adams foi, juntamente
com os filhos, George Adams Jr. E Dudley Adams, um dos principais construtores
de instrumentos científicos do seu tempo, tendo a casa sido fornecedora em
exclusivo do rei Jorge III. Fundada em 1734, a casa Adams de Fleet Street só
viria a acabar em 1817, por falência.
“Pensamos que o centauro terá sido adquirido a Adams filho,
pois esta peça entrou para o Gabinete já em Coimbra, logo depois de 1773 e
Adams pai morre em 1772”, explica-nos Ermelinda Ramos Antunes, directora do
Museu.
Sendo assim, Adams filho utilizou um pequeno centauro, em
prata, assente em caixa octogonal, de madeira preta, munindo-o de mecanismo
para o lançamento de setas. O centauro segura, com o braço esquerdo estendido,
um arco flexível de aço. O braço direito está dobrado, como que prestes a
lançar uma seta. Tem um cinturão a tiracolo e uma aljava onde se encontram duas
setas. A peça foi adquirida por João António dalla Bella, um italiano de Pádua,
professor no Colégio dos Nobres, primeiro, e na Universidade de Coimbra,
depois. Serviu o centauro para o ensino da Mecânica.
Os autómatos são um importante capítulo na História da
Relojoaria e quase não os há em Portugal. O centauro de Adams, avariado há
muito no seu mecanismo, merecia decerto um restauro cuidado e uma exposição
mais consentânea com a sua importância.



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