A cunha na hora
Foi há precisamente nove anos. Tal como acontecerá daqui a pouco, a hora mudava nessa noite.
Aquela figura da Geringonça; olhou para mim com um ar perplexo, quando deixei cair, em conversa, que podia estar interessado num determinado cargo oficial.
Essa pessoa ouvira-me, desde há muito, jurar a pés juntos que não estava disponível para exercer qualquer lugar no âmbito do Estado. E alguns tinha recusado. Por isso, alguma coisa não batia certo.
- Eu era capaz de aceitar uma certa função oficial. Que julgo não ser remunerada, note-se...
Bom, isso já podia ter algum sentido, deve ter ele pensado, julgando que eu estava a meter uma discreta cunha para algum lugar de prestígio.
- É um cargo que, posso dizer agora, ambiciono desde há cerca de três décadas.
Isso atirava para os anos 80. A pessoa pediu-me que concretizasse. Mandei vir mais um whisky e anunciei:
- Era para membro da Comissão Permanente da Hora.
A Comissão Permanente da Hora?! O que faz essa comissão? Expliquei, com ar de quem sabe da poda, que, por lei, compete a essa Comissão estudar, propor e fazer cumprir as medidas de natureza científica e regulamentar ligadas ao regime de Hora Legal e aos problemas da hora científica; (não disse isto com esta precisão, claro).
Ora eu tinha reparado, há muito, numa falha na lei: era inconcebível que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não estivesse representado nessa comissão, pelas implicações que o regime da hora legal tem nas relações internacionais e na ligação com as instituições comunitárias. Impunha-se, desde logo, uma revisão da legislação nesse sentido.
- Tem lógica, disse ele.
Mas, pondo os pés na terra, logo refletiu: mas por que é que eu queria esse lugar, um lugar não remunerado, numa ignota comissão que reunirá, talvez, uma vez por ano? E o que é que eu sabia do assunto para me qualificar para essa função?
Pacientemente, expliquei que tinha passado por mim, noutros tempos, a questão do regime europeu da hora, pelo que sabia tanto ou mais do assunto como qualquer outra pessoa do MNE.
- Lá isso é verdade. Mas estás mesmo a falar a sério? Queres o lugar?
O Luís já me tinha trazido o Bushmills novo, sem gelo, em copo normal, que ele sabia que eu queria, para a mesa do Procópio onde estávamos. Fiz pose e dei um trago.
- Claro que sim e agora tenho mais tempo, o que deve ser importante para um organismo que trata precisamente das questões da hora...
- Mas, se o MNE não tem lá um representante, seria necessário mudar a lei. E o governo teria de decidir isso. Pode demorar...
- Bela frase! É tua?
- Não, é do Saramago.
O assunto não andou para a frente, claro. Fiquei sempre na dúvida sobre se esse meu amigo acreditou mesmo no que lhe disse. É que, na mesa dois do Procópio, entre as coisas ditas a sério e as que pareciam brincadeira havia uma zona cinzenta que só um mestrado em ironia permitia esclarecer.
Só eu é que tenho tempo para estas brincadeiras. Mas, pensando bem, ter num cartão de visita "membro da Comissão Permanente da Hora"; dava cá um sainete!
Embaixador Francisco Seixas da Costa (aqui)
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