Em Outubro de 1959, a Fundição de Sinos de Braga, de Serafim da Silva Jerónimo, encomendou 2 mil panfletos à Litografia Minho / Oficinas Gráficas Pax. Um deles acaba de chegar ao Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera, de que somos responsáveis.
Publicitam-se sinos, relógios e órgãos, operados mecanicamente. Mas, já então, começavam a aparecer mecanismos electrificados e mesmo dispositivos electrónicos.
É, no entanto, nas décadas de 1970 a 1990 que a Jerónimo intensifica
a substituição de relojoaria mecânica de torre, de norte a sul do país, por
dispositivos eléctricos e electrónicos. Além disso, cala o som dos sinos, que
passam a ser substituídos por megafones, que debitam toques e melodias através
de circuitos comandados a partir dos pisos térreos das igrejas.
Falta de padres e de sacristãos, a idade avançada deles, a
dificuldade de acesso ao cimo das torres, a força necessária para dar corda aos
mecanismos, a falta de manutenção, a insensibilidade perante património que
deveria ter sido preservado – tudo isso contribuiu para a hecatombe que se
abateu, na segunda metade do século XX, sobre a relojoaria grossa, monumental,
pública, de torre. Exemplares valiosos de arqueologia industrial foram para o
lixo, ou vendidos a peso. Quem sabia do seu valor, exportou-os às dezenas, se
não às centenas, para o estrangeiro, onde este tipo de memória de marcadores do
Tempo é protegida, mantida, dada a conhecer às novas gerações.
Nisto, como em tudo o resto, Portugal sempre teve dinheiro
para comprar, do melhor. Mas nunca teve mentalidade, disposição ou
sensibilidade cultural para manter.
A Fundição de Sinos de Braga
Serafim da Silva Jerónimo funda em 1932 a Fundição de Sinos
de Braga, centrando a sua atividade na fundição de sinos e carrilhões. Em 1947
introduz no seu leque de ofertas a indústria de relógios de torre mecânicos de
corda manual. Em 1964, e segundo as próprias palavras da empresa, “revoluciona
o mercado português com a introdução da automatização dos toques de sinos por
meios electromecânicos”. Data de 1983 a estreia, em parceria com a Universidade
do Minho, do projecto e desenvolvimento do primeiro relógio de torre
computorizado, com microprocessador, facilitando o toque dos sinos conforme o
uso e costumes locais. Gaba-se de, em 1994, iniciar o projeto Maestro – “o mais
evoluído e inovador relógio de torre e computador para carrilhões” – com o
apoio do PEDIP II (Programa Estratégico para o Desenvolvimento da Indústria
Portuguesa) e a colaboração do IDITE MINHO (Instituto de Desenvolvimento
Tecnológico do Minho).
Uma reportagem, em 2003
Em Novembro de 2003, enquanto editor do suplemento Primus – Objectos de Prazer do Público, publicámos uma reportagem sobre a Fundição de Sinos de Braga. Que aqui recordamos.
Entrevista a Carlos Jerónimo, da família do fundador da empresa:
Pode falar-se de uma escola portuguesa de sinos?
Os sinos entraram em Portugal vindos da Europa central.
Através de fundidores nómadas, que traziam consigo os seus conhecimentos. Cá,
as pessoas foram aprendendo com eles. O nosso modelo actual de sinos é
desenvolvido por nós. Estamos, inclusivamente, a desenvolver um perfil novo.
Procuramos maximizar o volume do som, minimizando o peso do sino. Fazemos
simulações por computador, usando as leis da física e fórmulas matemáticas.
É verdade que, em sinos, nunca se sabe o que vai sair?
Isso é um bocado lenda, produto mais dos defeitos e das
contingências que rodeavam as fases de produção. Também se dizia que as
mulheres não podiam estar presentes na fase crítica, quando se deita para as
formas o bronze líquido. Há duzentos anos, sabia-se muito pouco sobre que som
iria sair. Mas, hoje, a nossa empresa sabe muito bem como sairá o próximo sino,
qual o som que vai dar. Mesmo que tenha um perfil novo, nunca antes fabricado.
Fazem-se simulações, por computador, analisamos o espectro de frequências. Só
quando se não domina a técnica é que o produto final se reveste ainda de uma
certa aura de magia.
Quando recebe encomendas, aparecem muitos carrilhões?
Costumamos dizer aos clientes que, sendo uma construção
nova, a torre sineira deve prever um número grande de sinos. Mesmo que, de
início se encomende um só. Por questões financeiras, é muito frequente isso
acontecer. Mas, uns anos mais tarde, podem encomendar-se mais uns tantos, a que
se juntam depois outros. Essa é a solução ideal, ir crescendo à medida das
possibilidades, mas ter à partida construção que aguente um carrilhão de
grandes dimensões. Preferimos vender um sino de mil quilos do que trinta sinos
a pesar mil quilos, que mal se conseguem ouvir. Além disso, quanto mais pequeno
é um carrilhão mais o chamado “efeito de caixa de música” é notório. Ouvir um
sino de oito ou nove toneladas, em Mafra, comparando com um de duas toneladas,
sente-se logo a diferença – o som mais grave, profundo, do primeiro, é
impossível de se conseguir com o segundo.
Qual a encomenda mais cara que lhe foi feita?
Não há limite. Um grande carrilhão, com muitos sinos, muito
pesados é uma encomenda cara. Mas temos feito obras grandes para igrejas
pequenas e obras pequenas para igrejas grandes. O cliente diz que melodias quer
que os sinos toquem, nós dizemos quantos sinos e que de que dimensões deve ser
composto o carrilhão.
Qual a melodia mais solicitada?
É, de longe, o Ave de Fátima. Mas temos procurado dizer aos
clientes para que não se limitem a isso. Há uma banalização da melodia. Depois,
vem o Hino da Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven.
Há toques especiais, que se estão a perder, porque os sacristãos estão a desaparecer e não transmitem um saber que não está escrito, não é verdade?
Todo o conjunto de toques é um património cultural de
Portugal, e cujo levantamento só agora começa a ser feito. Estamos a criar uma
Associação de Campanologia, que vai ter um “site”. Vamos apelar a todas as
pessoas, nas paróquias, que conheçam os toques, para que os enviem para lá,
ficando assim registados. Temos, por exemplo, o toque específico usado em Évora
quando uma parturiente estava em dificuldades.
Em Barcelos, quando lá fomos, o sacristão falou-nos de um
“repique inglês”, que tinha copiado quando ouviu uns toques de sinos, na
televisão, de uma igreja inglesa. Os repiques são toques sucessivos, usam-se na
chamada para a missa, para anunciar casamentos, baptizados... há o repique
normal, o patriarcal – tocado em cinco sinos ao mesmo tempo, e depois os
repiques de cada sacristão, que com o seu jeito próprio, desenvolveu. É esse
último que nós respeitamos mais, é o que as pessoas da terra estão habituadas a
ouvir. Se ele é “importado” da diocese ao lado, as pessoas reagem mal,
estranham...
Um dos toques que se perdeu, é o do rebate a incêndio, que existiu em Lisboa até ao início do século XX.
Também em Braga. Cada igreja tinha o seu toque especial e,
quando se ouvia, sabia-se que o incêndio era numa determinada zona, orientando
os bombeiros e a população. É claro que isso já não tem sentido, com os meios
de comunicação disponíveis, mas deveria preservar-se o acervo de toques.
Estamos a tentar recuperar o sistema aqui em Braga. Ele consistia numas caixas
em ferro, nas torres sineiras, onde estava assinalado o número de toques. Em
Guimarães, no antigo hospital, ainda existe essa caixa. Vamos tentar
recolocá-las aqui. Não para a função que tinham, mas para que as pessoas possam
ver como era.
Quais as encomendas que tem em mãos?
Estamos à espera dos sinos da Basílica da Estrela. Temos em
mãos a recuperação dos sinos do Mosteiro de Alcobaça. Está-se a recuperar e a
reconstituir os cabeções (as partes de suporte superior do sino, em madeira).
Aplicam-se próteses, em madeira exótica africana, a bobinga, muito dura e
resistente ao tempo, de forma a salvaguardar o máximo de madeira original.
Depois, há que tratar da parte ornamental dos sinos – desenhos, inscrições. “Os
sinos falam de duas maneiras – por um lado, tocam, e cada toque ou conjunto de
toques tem um significado particular; por outro, as suas inscrições são
elementos muito importantes para o estudo da História, pois elas registam
muitas vezes os nomes e os cargos de personalidades políticas e eclesiásticas,
que completam outras fontes ou só se encontram mesmo no bronze”.
Os sinos são fontes documentais das mais perenes, mais do
que livros ou outra informação em suporte de papel.
Dos sinos portugueses que já ouviu, quais as peças que mais lhe agradam?
Sem dúvida que os sinos de Mafra. Conseguem harmonizar um
som grave, macio, agradável ao ouvido. Quando deles saem as melodias do Hino
Nacional ou da Avé Maria, ninguém fica indiferente. São sinos que mexem
connosco... Nos sinos, quanto mais grave é o seu som, mais agradável se torna.
Quanto pesam os maiores sinos que fazem actualmente?
São peças de 2.700 quilos, como o que estamos a ultimar para
um carrilhão para a Sé do Funchal ou como um outro que seguiu para Goa.
No projecto dos carrilhões, deve ter-se em conta o peso e saber se a estrutura onde vão ser colocados aguenta...
Nos projectos para as igrejas novas, damos logo os cálculos
de carga estática e dinâmica dos sinos aos projectistas. Quando são trabalhos
em estruturas já existentes, como foi o caso da Sé de Braga – onde colocámos um
carrilhão com dez toneladas – teve que ser feito um estudo prévio de
resistência.
Dão importância à parte estética de um sino?
Como fundidores, devemos preocuparmo-nos com o som que o
sino dá. Como artífices, temos a obrigação de valorizar a peça, de forma a
deixar um legado com alguma qualidade. Isto para que, daqui a um ou dois
séculos se possa dizer, como hoje dizemos em relação ao passado, que estamos
perante peças dignas de admiração. Isto para que não aconteça com alguma
arquitectura, especialmente em igrejas, que tem sido feita nos últimos tempos e
que é demasiado pobre em simbologia. Para que não digam que os sinos do séc. XX
só lá têm registado o ano e o nome do fabricante.
Houve alguma escola de sineiros em Portugal?
Isto é uma escola. As pessoas entram aqui, aprendem
connosco, como nós aprendemos com outros. O meu bisavô aprendeu noutra
fundição.
Os sinos e o Euro 2004
O município e a região de turismo escolheram o sino como símbolo para promoção da imagem da cidade de Braga durante o Euro 2004, e provavelmente para continuar depois do evento.
Antes do jogo inaugural no novo estádio, vai ser feito um
concerto a envolver as igrejas do centro histórico de Braga. Vão ser espalhados
alunos do Conservatório de Música pelas várias torres sineiras, que vão treinar
previamente. O que se quer é que cada um toque num determinado período, um
determinado número de acordes, respondendo uns aos outros.
Quem estiver nessa altura na cidade, vai ouvir sinos por
todo o lado. Quem vai coordenar isso tudo é Abel Chaves, o organista de Mafra.
Quando os sinos dobram
Um sino é constituído pelo sino, propriamente dito, pelo badalo (elemento metálico de percussão suspenso na zona superior do sino) e pela asa (argolas que se encontram na zona superior do sino). Habitualmente está dotado de um cabeçalho (estrutura que suspende o sino).
Os sinos têm voz, os toques. Estes, são extremamente
codificados, e a adequação de cada toque específico à sinalização acústica de
cada momento diferenciado do tempo da comunidade encontra expressão na
multiplicidade de designações que o vocabulário encerra como sinónimos para
fazer tocar o sino: cantar, chorar, picar, repicar, badalar, bater, rebater,
tanger, destanger, correr, bombear, abombar, bamboar, bandear, dobrar, etc.
O toque de picar (usando geralmente um único sino) é
executado puxando o badalo contra a parede interior do sino, e cada impacto tem
a designação de badalada. O toque de bombear é executado fazendo oscilar o
conjunto sino-cabeçalho de modo a que o sino vá embater no badalo, devido ao
seu movimento alternado, para trás e para a frente. O repicar designa o toque
simultâneo de vários sinos.
Sino, sinal
Os romanos designavam os sinos por tintinnabulum ou tintinna, numa solução onomatopaica evidente. Os gregos chamavam-nos de kódones. Mas o vocábulo latino mais vulgar para significar sino é signum, porque servia para dar um sinal. Campana é outro nome por que são designados os sinos, provavelmente porque os sinos da região italiana de Campania eram de grandes dimensões e de boa qualidade.
No norte da Gália e na região renana empregava-se a palavra
clocca ou glogga.
A Voz de Deus
É ao campanário da igreja, em que se instala a partir do séc. VI, e ao seu uso cerimonial pelo Cristianismo que o sino está mais fortemente associado e desde os séculos XIII e XIV que a sua forma e as suas técnicas de fabrico se encontram estabilizadas.
A evolução de técnicas a que se assiste entre os sécs. XII e
XIV prende-se com o início da produção de sinos de grandes dimensões. A
estagnação dessas técnicas será resultante da ausência de estruturas
corporativas entre os fabricantes de sinos e aos seus modos de transmissão dos
saberes e seus segredos, que se efectuavam oralmente, de pais para filhos.
Na Europa, o uso do sino de torre como instrumento musical
parece ter surgido inicialmente no séc. XIV, com o carrilhão, um conjunto de
sinos relacionados tonalmente e accionados a partir de um teclado.
Itinerante durante a Idade Média, o fabrico de sinos em
Portugal esteve inicialmente a cargo de picheleiros e artilheiros e apenas no
séc. XVII, em Braga, é fundada a primeira fábrica de sinos. O surgimento da
indústria sineira naquela cidade deve ter tido origem na necessidade de
reconstrução da capela-mor da Sé e na proximidade de Santiago de Compostela, de
onde mestres sineiros teriam sido chamados para essas obras, vindo
posteriormente a fixarem-se no Norte do país. É aliás aqui que se referenciam hoje
as duas únicas fábricas de sinos existentes entre nós, uma em Rio Tinto e a
outra em Braga, onde fizemos esta reportagem.
O sino é a Voz de Deus. Instrumento eclesiástico de
sinalização acústica dos vários momentos do calendário cerimonial religioso,
quer nas celebrações quotidianas ou semanais, quer nas festividades centrais do
ciclo temporal – o Natal e a Páscoa, o sino é ainda sujeito no ciclo santoral,
sobretudo no dia do orago da povoação. Mas ele assinala igualmente os ritos de
passagem do indivíduo (baptizados, casamentos, mortes), os tempos de trabalho e
de descanso rurais.
Alertador de desastres (incêndios, inundações, assaltos...),
o sino está igualmente associado ao tempo meteorológico, pois o seu som,
mediante a intensidade e direcção, indica aos mais experientes a aproximação de
chuvas ou tempestades.
Bronze insubstituível
Um sino é feito por uma liga binária de cobre (78 por cento) e estanho (22 por cento), o bronze. Têm sido feitos testes em Universidades, para se encontrar materiais alternativos, mais leves, menos sujeitos à corrosão, mas até agora não se encontrou nenhuma liga que possa substituir o bronze como elemento vibrante.
A duração do som depende do tamanho. Mas um sino com 2.700
quilos, depois de ter sofrido três impactos, fica uma média de dois minutos e
meio a vibrar de forma audível.
A abertura e o tamanho do sino é que dão depois a nota
musical. O timbre do sino é o resultado do seu perfil (diferentes espessuras e
alturas). O sino primitivo, chamado “cónico”, tinha uma espessura sempre igual
ao longo do seu corpo. A zona do impacto, onde o badalo ia bater, era a
primeira a fragilizar-se, e o sino começava a partir-se por aí. Então, começou
a fabricar-se sinos em que, a dada altura, a sua grossura alarga, terminando na
bordadura em vértice. É essa a forma actual de um sino. Só que, com essa
revolução na forma, o som do sino muda radicalmente. E isso vai obrigar a uma
investigação acústica.
Internacionalmente, considera-se que, a partir de um
conjunto de 21 sinos, se está perante um carrilhão. O chamado Grande Carrilhão
tem sempre muitos mais sinos, muito maiores e pesados, sendo capaz de
reproduzir um conjunto de melodias mais alargado.
Para se fazer um sino, são necessárias duas formas, uma
interior (a que se chama macho) e uma exterior (a fêmea). E um espaço vazio, no
meio, com a forma do sino que se quer fazer.
Bibliografia
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in Monumentos, Março de 2002, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, Ministério do Equipamento Social.
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Arquitectónico.
Rebello da Silva & Cª – Notícia histórica da Industria sineira, Braga, 1910.
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