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segunda-feira, 15 de maio de 2023

Coisas do Ephemera - um curso de relojoaria em português, sem data ou autor


Por aquisição recente do seu fundador, o Ephemera -Associação Cultural, biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira, tem um dossier, sem data ou autor, “Aulas de Relojoaria – 13 a 24”, dactilografado e com ilustrações coladas nas folhas.

O Núcleo do Tempo do Ephemera, de que somos responsáveis, procurou contextualizar este documento. Num país que conta apenas com uma Escola de Relojoaria – a da Casa Pia, a fonte alternativa possível do curso seria o que foi realizado durante décadas, por correspondência, em Portugal, Brasil e então colónias portuguesas de Angola e Moçambique, por iniciativa de Dimas de Melo Pimenta, um português emigrado, e responsável pela introdução da relojoaria moderna no Brasil, na segunda metade do século XX, tendo hoje em São Paulo um museu com o seu nome, o mais importante do seu género, com centenas de relógios.

Tal não parece provável, porém, dado o carácter quase artesanal destas 12 lições, de um curso que seria provavelmente composto por um total de 24.


Falando com o engenheiro Jaime Ferreira Ribeiro, antigo casapiano, e que, a dada altura, dirigiu o Curso de Relojoaria da instituição, propusemos três nomes – os mestres relojoeiros suíços Walter Sutter, Jean-Pierre Delay e Aldo Bernasconi – que nas décadas de 1940 a 1970 foram ali responsáveis pelo ensino de relojoaria.

“Não creio que seja o Sutter” – recorda Jaime Ribeiro. “Ele ditava os apontamentos (num português difícil…), fazia os desenhos no quadro, por vezes dava cópias dos desenhos e os alunos reproduziam tudo, à mão, em dois livros de folhas em branco. Um livro para a teoria e outro para os trabalhos práticos. É provável que o autor seja o Delay, já que o Bernasconi é do meu tempo e não me recordo desses papéis”.




Deixamos aqui as primeiras páginas dos 12 capítulos na posse do Núcleo do Tempo do Ephemera e excerto da entrada sobre a Casa Pia que escrevemos para o livro “Relógios & Relojoeiros – Quem é Quem no Tempo em Portugal” (Âncora, 2006):

ESCOLA DE RELOJOARIA DA CASA PIA DE LISBOA

                Já em meados do século XIX a Real Casa Pia de Lisboa pagava a grandes mestres relojoeiros da cidade para que estes recebessem alunos seus como aprendizes, em regime de externato. Com o incentivo de homens como Augusto Justiniano de Araújo (ver) ou Veríssimo Alves Pereira (ver), passa mesmo a haver uma oficina-escola, a partir de 1894, num palacete situado na rua de São João da Mata, nº 113, alugado pela Casa Pia. O ensino será depois transferido para o Mosteiro dos Jerónimos, pois em 1895, por iniciativa do Par do Reino e Provedor da Real Casa Pia de Lisboa, Simões Margiochi, Augusto Justiniano de Araújo passa oficialmente a director técnico da Escola de Relojoaria daquela instituição, que ele tanto pressionara para que se criasse. O seu amigo Veríssimo Alves Pereira é também lá professor. Segundo o plano de estudos apresentado por Augusto, o curso devia ter a duração de cinco anos, pois, como defendia, para se ser bom relojoeiro, é necessário “ser bom torneiro, bom serralheiro e ter conhecimentos gerais de química, física e mecânica”.

“A relojoaria é uma das artes mecânicas que exige maior número de conhecimentos teóricos e práticos”, refere o mestre Araújo. “O curso estabelecido para esta arte nas escolas estrangeiras e que igualmente se está tratando de completar na portuguesa”, explica ele, inclui uma parte prática (contemplando relojoaria de algibeira, de mesa, parede, torre e artes congéneres”, e uma parte teórica (onde se incluem noções de aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, mecânica, escrituração comercial, física, cosmografia, desenho, química, tecnologia e metalurgia).

Para mestre Araújo, havia quatro classes de relojoeiros: “negociantes, operários ou ajudantes, mestres ou repassadores e professores ou construtores”. A estes últimos corresponderia o grau de “Engenheiros Cronometristas”.

Francisco Simões Margiochi emite uma carta circular dirigida a diversos directores e chefes de repartições de Obras Públicas, solicitando a sua cooperação em favor da Escola de Relojoaria e o próprio Ministro do Reino, João Franco Castello Branco, faz o mesmo, enviando uma carta circular em favor da escola às Repartições do Estado. Relógios avariados, que os mandassem para a Escola da Casa Pia... Não se sabe ao certo o que terá levado ao rápido desentendimento entre mestre Augusto e a escola que ajudou a criar. O que fica para a História é que ele próprio mandou imprimir e andou a distribuir pessoalmente uma folha avulsa, intitulada Protesto público por perdas e danos contra a Real Casa Pia de Lisboa. É que o ministro das Obras Públicas da altura, Conselheiro Elvino de Brito, tinha ordenado a extinção da Escola de Relojoaria, escassos anos depois de ter sido fundada (também não se sabe ao certo porquê). Augusto protestava porque a extinção não dera lugar a indemnização, assegurada no seu contrato com a provedoria da Casa Pia.

Durante meio século, o ensino da relojoaria na Casa Pia prossegue, embora com intermitências, devido em grande parte à falta de mestres relojoeiros dispostos a trocar uma actividade altamente rendosa pela filantropia do ensino, problema que se repetirá ao longo da história do estabelecimento, único no seu género no país.

Já no século XX, com a reforma do ensino de 1948 e a criação dos Cursos de Formação Industrial e Comercial, e dando resposta à preocupação manifestada na revista Belora (ver), o Governo contrata a vinda da Suíça do mestre Walter Sutter (ver), para dar início a um ensino profissional que, até hoje, nunca mais foi interrompido. A Escola começou efectivamente a funcionar em 1 de Outubro de 1950, com seis alunos, de idades rondando os treze anos.

Durante a década em que mestre Sutter se manteve à frente da Escola, os seus alunos obtiveram vários primeiros lugares em concursos internacionais de trabalho, na área da mecânica de precisão. Sutter saiu depois da Escola e foi director técnico da Fábrica “A Boa Reguladora” (ver), em Famalicão. A Belora chegou a sugerir, aproveitando a presença do mestre suíço no único centro fabril relojoeiro do país, a criação de um curso de Relojoaria na Escola Industrial de Vila Nova de Famalicão, mas a ideia não deu frutos.

Sucederam-lhe no cargo os ex-alunos Urbino Santos, Carlos Moreira e Jaime Ribeiro, os dois últimos engenheiros, exemplo do elevado número de alunos que, após o curso de Relojoaria, realizava estudos superiores.





Em 1963, dá-se um salto qualitativo importante, com reflexos que chegaram até hoje: um consórcio designado genericamente por Indústria Relojoeira Suíça, formado pela Federação Relojoeira Suíça e pelo Grupo Ebauches SA, estabelece com a Provedoria da Casa Pia de Lisboa um “Acordo de Cooperação Técnica” com a finalidade de reestruturar, modernizar e alargar o âmbito do ensino da relojoaria em Portugal. Nesse sentido, a parte suíça equipou completamente a antiga Escola, e enviou para Portugal um mestre de elevado gabarito, Jean-Pierre Delay (ver), que tinha a vantagem de ter passado uns anos no Brasil, pelo que dominava o português. Durante dez anos, e a partir deste acordo, a Indústria Relojoeira Suíça assegurou todas as despesas de funcionamento das Escola […].

[…] Em 1969, com o fim do contrato de Delay, passa a dirigir a Escola o também suíço Aldo Bernasconi (ver), que passara igualmente pelo Brasil […]. Com cerca de duas dezenas de alunos, segue-se um período de intensa actividade, devido à revolução tecnológica que a electrónica trouxe à indústria relojoeira.

Mesmo assim, em 1970, a revista Belora ainda lamenta o facto de “os proprietários das oficinas de relojoaria – não todos, felizmente, mas a maioria – não admitirem os jovens relojoeiros-reparadores diplomados, preferindo os curiosos”. […]

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