Editadas no mercado português há três décadas pela RBA, as revistas Elle e Elle Decoração vão ser descontinuadas. As “profundas transformações no mercado das revistas femininas, aceleradas pela pandemia da covid-19” são as razões apontadas pela RBA Portugal num comunicado onde a editora informa que irá descontinuar a licença de publicação dos títulos, incluindo também a presença online da marca, pelo que “o número duplo de Março/Abril (n.º 388), já nas bancas, é o último”.
“Foram 32 anos a acompanhar de perto mudanças culturais e sociais e a contribuir para a consciencialização das questões femininas – da moda e beleza aos direitos cívicos passando pela maternidade, sustentabilidade e inclusividade”, sublinha a editora no mesmo comunicado. O encerramento dos títulos, avança a agência Lusa citando fonte ligada ao processo, deverá afectar sete profissionais.
Colaborámos várias vezes com a Elle, sobretudo durante a Direcção de Fátima Cotta.
Em Julho de 2008, por ocasião dos 20 anos da Elle em Portugal, escrevíamos:
20 anos de tradição, audácia e lição de sobrevivência
A revolução na relojoaria, à conquista da mulher
Fernando Correia de Oliveira*
O que mudou nos últimos 20 anos na Relojoaria? Tudo. A
entrada no mercado de grandes grupos de investimento ligados ao sector do luxo,
comprando manufacturas históricas; a ofensiva das marcas de moda, com a sua
linguagem comunicacional, fazendo cada vez relógios mais “relojoeiros”; a
resposta das manufacturas relojoeiras, fazendo cada vez mais relógios
respondendo à moda; o desenvolvimento de novos materiais; a impregnação de
estilos de joalharia em peças mecânicas, o equipar de jóias com movimentos
mecânicos sofisticados; o renascimento do relógio mecânico, mas também a
sobrevivência maciça do quartzo; a fusão disto tudo, aliado a um público
consumidor cada vez mais informado; e a batalha pelo público feminino, cada vez
mais forte e independente do ponto de vista económico, cada vez mais influente
na compra de relógios para si ou para “eles”.
Carlos Rosillo, Presidente da Bell & Ross, é um
observador privilegiado destas mudanças. Em Paris, perto da Place Vandôme,
epítome do luxo mundial, almoçámos recentemente com o responsável por uma marca
jovem, com apenas 16 anos, mas que cedo ganhou forte identidade num meio onde
isso é muito difícil de conseguir.
“O que é mágico e formidável no sector relojoeiro é que ele
não é demasiado grande, mas tem uma força enorme, uma visibilidade colossal”,
diz. “Isso não se passa em mais nenhum sector com as mesmas dimensões em termos
económicos”.
Para o consumidor, cada vez mais “marca” é o grande factor
de decisão na hora da compra. Enquanto em sectores como o da informática ou da
alimentação o conceito de “produto branco” ganha terreno (até pela crise
económica que se atravessa), no sector de luxo já não se compra “um relógio de
ouro” ou apenas “um anel”. A marca é tudo. “Há tantas escolhas possíveis, hoje
em dia, que se não se escolher bem a estratégia a seguir, não se é uma marca,
morre-se”, diz Rosillo, que tem como aliado poderoso nos mares
super-competitivos do luxo um nome de peso como é a Chanel, que tem
participação no capital da Bell & Ross.
A relojoaria é uma indústria muito marcada pelo passado,
pela tradição, mas desde há cerca de duas décadas que surgiu a chamada
relojoaria moderna. “Como na pintura, no início do século XX, houve uma
ruptura”, faz notar Rosillo. “Veja o exemplo da gastronomia, outro sector muito
tradicional, que começou a mexer mais ou menos pela mesma altura”.
Tal como na gastronomia, partiu-se da tradição, como base,
que se domina bem, mas integrando elementos da modernidade que não estão
directamente ligados à relojoaria. Isso passou-se com os materiais, com a
concepção, com as funcionalidades. Um relógio, hoje em dia, não tem
forçosamente que ser redondo, com três ponteiros e em aço ou ouro. “Houve uma
explosão de criatividade, que num sector tão tradicional como a relojoaria se
traduziu numa espécie de revolução”, explica Rosillo.
Um relógio continua a transmitir a sensação de domínio do
tempo, de reconhecimento social, de concentração de valor, continua a ser um
objecto muito cultural. Mas hoje, com o potencial que há de inovação, o sector
está muito fragmentado. Sem falar das marcas puramente de moda, o verdadeiro
desafio para as marcas relojoeiras é prosseguir o seu caminho, sem desbaratar o
ADN histórico, muitas vezes secular.
Segundo Rosillo, “prolongar esse caminho num ambiente
globalizado, mas com gostos muito diferentes, é muito difícil, pois há países
onde o luxo é acima de tudo não ostentatório e outros onde se passa exactamente
o contrário”. Em termos de ergonomia e de tamanho, o mercado também é muito
vasto. E, depois, há ainda o paradoxo tradição-modernidade, uma linha de tensão
que se nota cada vez mais sobretudo nas velhas manufacturas, obrigadas a mudar
sem descaracterizar.
No meio do palco global, uma marca pode ser pequena, se
ainda por cima aspira a um nicho, mas não pode permitir-se não ser
internacional. Tem que estar nas grandes meças do consumo, na rede dos melhores
pontos de venda mundiais.
O paradigma da globalização é, claro a Swatch. Um fenómeno
estudado nas faculdades de Economia e Gestão de todo o mundo e que é
considerado “o pontapé de saída” da tal revolução no sector relojoeiro. Tudo se
pode contar de uma maneira simples: a ofensiva do quartzo, em relógios baratos
e fiáveis, vindos do Japão, estava a tornar moribunda a indústria europeia
(suíça, sobretudo). Pelo preço, a batalha estaria perdida. Os bancos
helvéticos, donos inesperados de manufacturas históricas devido a créditos
malparados, desafiaram um investidor, Nicolas Hayek, a tomar conta do problema.
E, há um quarto de século, nascia o conceito Swatch – a primeira aliança entre
relojoaria e moda, entre design moderno e ritmos de consumo urbanos e globais.
Com o capital conseguido através da Swatch, Hayek foi modernizando as velhas
fábricas, comprando marcas atrás de marcas, tornando-se em apenas década e meia
no dono do maior grupo relojoeiro do mundo, com um portfolio que vai da Alta
Relojoaria aos relógios para crianças.
O problema, no sector, hoje em dia, parece ser o de conquistar
a juventude para o objecto relógio, cada vez menos usado como medidor de tempo,
dada a parafernália de gadgets – telemóvel, computador, leitor de música… – que
dão adicionalmente essa função.
Falámos recente com Nicolas Hayek, em Lugano, na Suíça italiana,
onde ele organizou mais um evento Swatch. O relógio desapareceu como simples
medidor de tempo? “ Mas isso foi uma das coisas que eu previ!”, responde esta
figura incontornável da relojoaria mundial, que acaba de fazer 80 anos. “Quando
lancei o Swatch tinha claro que não ia fornecer ao mercado um instrumento de
medição do tempo, mas antes um adereço puro de moda, um sinal de estilo de
vida. Já em Alta Relojoaria, não estou a vender um relógio nem um adereço,
estou a acenar com uma jóia, em ouro ou platina, cravejada de diamantes, que
tem no interior um mecanismo que é outra preciosidade. Trata-se de um
investimento, como se estivesse a comprar um quadro.”
Jerôme Lambert, quando chegou à Jaeger-Le Coultre, no final
dos anos 90 do século passado, tornava-se no mais novo Presidente de uma
manufactura relojoeira suíça. E que manufactura. A “Grande Maison”, nome como é
tradicionalmente conhecida na região do Valée de Joux, comemora em 2008 os seus
175 anos. Com grande pujança. A marca, que faz parte do universo Richemond, o
maior grupo de Alta Relojoaria do Mundo, fabrica apenas relógios com os seus
próprios calibres, coisa rara numa indústria onde a maior parte dos “motores” é
adquirida à mesma fonte, o Swatch Group. Hoje com 39 anos, Lambert reconhece
que a marca tem ainda muito que avançar no mercado feminino, onde as
potencialidades são enormes. “A Jaeger-LeCoultre é vista como uma das grandes
marcas relojoeiras puras, com calibres do melhor que se fabrica, mas com caixas
quase exclusivamente masculinas”, diz-nos ele em Miami, onde acaba de lançar
novos modelos da mítica linha Reverso. “Mas as coisas estão a mudar, investimos
muito nos últimos anos nos modelos femininos, e a nossa designer principal até
é uma mulher, Magali Metrailer, coisa única na indústria”.
Philippe-Leopold Metzeger, Presidente da Piaget, uma das
manufacturas mais tradicionais, e talvez aquela que melhor consegue fazer a
aliança entre relógio e jóia, fala-nos em Genebra, onde acaba de inaugurar o
Museu da marca, em plena Rue du Rhone, o coração do luxo genebrino. “O desafio,
hoje em dia, para uma casa como a Piaget é sermos criativos sem deixar de ser
clássicos; contemporâneos sem descaracterizar uma personalidade muito própria,
desde sempre ligada aos segmentos mais exclusivos do luxo”, diz. A Piaget,
fundada em 1874 e adquirida em 1988 pelo Grupo Richemond, faz hoje também parte
do portfolio do maior grupo de Alta Relojoaria do mundo. “Fazer sempre mais do
que o necessário”, mote do fundador, Georges Edouard Piaget, continua a ser o
segredo dos mestres das “jóias animadas”.
O relógio-jóia é, especialmente nos mercados ocidentais, um
segmento puramente feminino, que tem ganho importância crescente nas duas
últimas décadas. Mas não é apenas neste segmento elevado que as coisas estão a
mexer. Nestes mercados consolidados, conquistado e explorado o segmento
masculino, é no feminino que ainda há muita coisa a fazer e todas as marcas,
sejam elas joalheiras, relojoeiras, tradicionais ou de moda, estão a investir
muito nisso.
A Audemars-Piguet, por exemplo, uma das poucas grandes
manufacturas que permanece independente (a par da Rolex ou da Patek Philippe),
e que se orgulha de ainda estar nas mãos das famílias fundadoras, conseguiu na
última década lançar modelos femininos com design moderno, aliando o aspecto
exterior “jóia” ao miolo puramente relojoeiro e com calibres altamente
complicados. Nos corredores do último Salão Internacional de Alta Relojoaria, o
clube privado do luxo relojoeiro, que concentra anualmente em Genebra muito do
que de melhor e mais exclusivo se faz, o Presidente da Audemars-Piguet,
Georges-Henri Meyland, afiança-nos que a manufactura quer elevar de 20 para 30
por cento, nos próximos cinco anos, as vendas em relógios femininos.
Já Fawaz Gruosi, fundador há apenas 15 anos da marca de
Grisogono, fez tremer as grandes marcas joalheiras, primeiro, relojoeiras
depois, mercê da sua audácia estética e comunicacional. Casado com Caroline
Gruosi-Scheufele (a família Scheufele é dona da Chopard, que por sua vez detém
49 por cento da de Gruosi), Fawaz tem usado como estratégia privilegiada de
comunicação festas mundanas que já se tornaram célebres, sejam elas no Mónaco,
em Hong Kong ou Palm Beach. Os concorrentes passaram a imitá-lo, mas o ambiente
de Grisogono continua a ser o reino do barroco e de uma certa beautiful people
que não se encontra em mais lado nenhum. Fawaz abriu em 1993 a sua boutique
joalheira na Rue du Rohne, um dos espaços mais belos desta Meca do luxo. Lançou
em 1996 a moda do diamante negro, apresentou em 2000 a sua primeira colecção de
relógios. Que marcaram desde logo pela aliança entre o arrojo estético e a
inovação mecânica ao mais alto nível. Estivemos na gala dos 15 anos da de
Gruosi, em Genebra, três dias de permanente festa e onde o castelo de Fawaz, à
beira do lago Le Mans, serviu de base para mais de 200 convidados
internacionais. “A mulher é tudo, é o desafio supremo, e os relógios e jóias
que desenho para ela são hinos à sua beleza, à alegria de viver, ao prazer
puro”, diz-nos este mago do barroco contemporâneo.
A Raymond Weil orgulha-se de ser uma marca independente,
familiar, com o fundador ainda vivo e com a gestão a transitar da primeira para
a terceira geração. Oliver Bernheim, actual Presidente da empresa, é genro do
sr. Raymond, e os seus dois filhos já têm cargos de responsabilidade numa marca
com um prestígio forte em Portugal, um dos primeiros mercados onde se lançou.
“Em meados dos anos 90, vendíamos 35 mil relógios por ano em Portugal, criámos
um mercado de relojoaria de luxo que não existia no país”, diz Olivier
Bernheim, para quem o mercado português continua a ser “histórico”. E onde,
como observador privilegiado, tem assistido a “uma violenta polarização da rede
de pontos de venda, especialmente nos últimos cinco anos, onde há uns poucos
muito bons, ao nível do melhor que se encontra no mundo, e uma maioria que terá
que se modernizar, sob pena se perecer, especialmente num momento de crise como
o que se está a atravessar”.
Falámos com Olivier numa das suas frequentes passagens por
Lisboa. O que mudou nos últimos 20 anos? “Tudo, absolutamente tudo”, atira, sem
hesitar. “Há 20 anos, quando o meu sogro fundou a Raymond Weil, havia como
concorrentes apenas a Rolex, Cartier, Omega, Fabre-Leuba, Longines, Ebel. Todas
as outras marcas estavam adormecidas ou não existiam”.
Para ele, “todo o dinamismo que se vê hoje na relojoaria
surgiu nos últimos 20 anos. Até então, os relógios eram apresentados pela sua
beleza e, subsidiariamente, tinham uma marca. Hoje, temos as marcas, que
declinam modelos, é uma filosofia completamente diferente. Havia poucas
empresas que fabricavam relógios, havia muitos relógios belos que, por acaso,
até tinham marca”.
Há 20 anos não havia a bipolarização que há hoje em dia
entre relógio de moda e relógios “relojoeiros”, mas antes entre peças de gama
alta, média e baixa. Era o preço, e não o estilo, que dividia o sector. “O
relógio feminino dominava o mercado, pelo seu lado joalharia, bijou; o relógio
de homem era apenas de quartzo, havia muito poucos mecânicos”, recorda.
Depois, o mercado feminino de relojoaria diminuiu ao longo
dos anos devido ao surgimento de uma enorme quantidade de acessórios para
senhora, que entraram em directa concorrência com o objecto relógio. Isso
enquanto o relógio de homem cresceu no mecânico, tornou-se naquilo que era o
automóvel, símbolo, estatuto. “E com o andar da carruagem, com velocidades
limitadas, combustível cada vez mais caro, questões ecológicas, o relógio
tenderá a ganhar cada vez mais ao carro em termos de objecto de culto…”, atira
Olivier Bernheim, que vê também problemas futuros no sector
relojoeiro-joalheiro, devido ao aumento do preço das matérias-primas como o
ouro. Quanto à Raymond Weil, reconhece: “Investimos, como a maioria das casas
relojoeiras tradicionais, muito nos últimos anos no relógio de homem, vamos
investir fortemente no relógio de senhora, onde está agora o mercado mais
apetecido”.
No capítulo do relógio desportivo, a TAG-Heuer é líder
mundial. Inserida no universo LVMH, o maior grupo de luxo do mundo, tem
conseguido manter essa liderança, aliando uma estratégia de comunicação muito
própria a um desenvolvimento tecnológico de ponta, seja ele nos movimentos
mecânicos ou nos de quartzo. A política de “embaixadores” é a trave mestra
comunicacional da marca, e as mulheres (desportistas) ganham cada vez mais peso
na imagem TAG-Heuer. “Independentemente de o relógio ser mecânico ou de
quartzo, o cliente tem que ser bem tratado, ter um serviço pós-venda impecável,
saber da fiabilidade do produto que acabou de adquirir”, diz-nos o seu Presidente,
Jean-Christophe Babin. Anfitrião recente do novo Museu da marca, em La
Chaux-de-Fonds, no coração relojoeiro suíço, Babin veste bem o espírito da
casa: ostenta uns óculos TAG (as iniciais significam Tecnologia de Avant-Gard),
produto lançado há pouco mais de um ano com grande êxito, explorando a imagem
forte da marca, que agora se aventura também no mundo dos telemóveis topo de
gama.
Mesmo para gente pouco atenta ao mundo da relojoaria, o nome
de Franck Muller não passa despercebido. Este aluno brilhante de relojoaria,
mestre relojoeiro revolucionário, criador da sua própria marca (hoje
pertencente a um grupo de um investidor arménio), foi dos primeiros a fazer
despertar para a relojoaria uma nova vaga de consumidores, ávidos de adquirir
estatuto e símbolo de sucesso. Mercê de linhas arrojadas para a época,
facilmente identificáveis, esteticamente perfeitas, com movimentos mecânicos ultra-complicados,
os relógios Franck Muller têm já um lugar de referência na história da
relojoaria contemporânea.
Franck passou recentemente por Lisboa, onde lançou mais um
modelo exclusivo para o mercado português, ávido de edições especiais.
Almoçámos com ele num dos pátios interiores da Fundação Ricardo Espírito Santo
Silva, em cujas oficinas foi feito o estojo de madeira da edição limitada dos
relógios Proud of Portugal.
“Nos últimos 20 anos, acima de tudo, mudou a tecnologia”,
diz aquele que se projecta como Mestre de Complicações. “Quando estudei e
depois me lancei como fabricante, ainda era tudo feito à mão, hoje em dia o
processo micro-mecânico avançou muito, podendo fazer-se com linhas de produção
totalmente robotizadas coisas inimagináveis em tamanho, fiabilidade, precisão”.
“Como somos uma marca nova, desde logo começámos a pensar os
relógios femininos de forma separada, não seguindo a tendência geral que era
fazer relógios masculinos apenas mais pequenos, a que se acrescentavam
diamantes…”, diz Franck Muller. “E a mulher manda, manda sempre, seja nas
compras para ela ou para ele. Qual é o homem que se atreve a comprar, mesmo
para ele, sem saber se isso é também do gosto da companheira?”, pergunta com
ironia.
Quanto ao futuro, onde o grande inimigo é as novas gerações
preferirem o telemóvel último modelo ao relógio, Franck Muller tem uma visão: a
fusão suprema, em que no pulso, deles ou delas, haverá um instrumento que seja
ao mesmo tempo relógio (que também diga as horas, falando), telefone, máquina
fotográfica, scanner, medidor de tensão arterial… “A tecnologia já existe toda,
falta conseguir criar um modelo que fuja do gadget barato e seja assumidamente
um objecto de desejo e de luxo”.
Futuro da “guerra” Estética versus Técnica
Falámos também com quem acompanha mais directamente o
mercado português – importadores, retalhistas, históricos há dezenas de anos no
sector, mas também representantes de uma nova geração, num negócio que continua
a ser muito de família e onde a tradição e a relação pessoal com o cliente pesa
cada vez mais. Num futuro onde a dicotomia Estética versus Técnica poderá estar
a esbater-se. Ou não…
Nas últimas duas décadas, o conceito de relógio feminino
(pequeno, versão reduzida e adaptada do modelo masculino) mudou bastante, mas
como será o futuro?
António Luís Moura, que vem de uma família dominante na
importação de relógios no século XX português, e que está no sector há quase 40
anos, diz que se vivem “tempos de exclusividade, em que cada pessoa quer uma
peça adaptada à sua própria personalidade”, e onde o relógio feminino “é um
campo com enorme potencial de crescimento, à medida que os fabricantes forem
sendo capazes de ir pensando ‘out of the box’ e criando novos designs, novos
conceitos para uma nova mulher consumidora, independente”. Simoneta
Gómez-Acebo, Directora de Relações Públicas e Imprensa da Cartier Ibéria,
baseada em Madrid, é mais concisa: “o relógio feminino continuará a evoluir na
medida em que o mundo também vai evoluindo”. Já Marta Torres, sexta geração de
uma dinastia que começou a sua actividade no ramo em 1910, a partir de Torres
Vedras, e que acaba de tomar responsabilidades de direcção na empresa familiar,
a Torres Distribuição, líder nacional na importação de Alta Relojoaria, diz-nos
que “o segmento que mais tem evoluído mundialmente é precisamente o do relógio
feminino, pois as marcas procuram responder ao gosto específico da mulher,
desenvolvendo linhas inteiramente dedicadas a ela” e que “a utilização de novos
materiais, como peles de cobra piton ou de raia, o denim, a cerâmica, permitem
adaptar o relógio ao gosto contemporâneo, preservando-o como objecto de
desejo”. Marta Torres salienta uma tendência recente: a entrada do relógio
mecânico no sector feminino, com os calibres à vista, incluindo turbilhões.
Cristina Kolinski, da importadora Tempus Internacional e da cadeia de retalho
Boutiques dos Relógios (líderes nos respectivos segmentos de mercado), acha que
os últimos anos têm visto “os relógios femininos a serem desenhados e
desenvolvidos de raiz, a pensar nos gostos e nas características femininas,
deixando de ser modelos adaptados apenas das versões masculinas”. Paulo Santos,
outro caso de sucesso de uma nova geração com raízes familiares no sector (da
cadeia de lojas Manuel dos Santos), pensa que os pulsos femininos
“democratizaram-se”, pois as mulheres passaram a usar o relógio como um
“acessório” de moda, conjugando-o com a roupa, estilo ou até com a disposição do
momento. “Em vez do tradicional relógio para sempre, normalmente em tamanho
reduzido ou mini, é possível encontrar uma forma muito diferente de ‘vestir’ o
pulso, variando entre o extra-large mais desportivo e o tradicional mini, mais
festivo, com todas as marcas a fazerem um esforço de criatividade dedicado em
exclusivo à mulher”.
O relógio-jóia continua a ser mais valorizado pelas pedras e
metais preciosos empregues do que pelo mecanismo que tenha no seu interior, e
isso passa-se particularmente no relógio feminino. Poderá haver uma
"cultura relojoeira" feminina?
António Luís Moura acha que isso depende mais dos
fabricantes do da mulher consumidora. “Compete a estes definirem conceitos e
estratégias que sejam atraentes para a mulher”, diz. “À medida que as mulheres
forem investindo mais dinheiro na compra de bons relógios, irão começar a
exigir a intemporalidade das peças, e isso quer dizer, na maioria dos casos,
não estarem dependentes de uma pilha”. Simoneta Gómez-Acebo acha que o
relógio-jóia continuará a ser rei como peça aspiracional no universo feminino,
mas reconhece que, nos últimos tempos, as mulheres começam a interessar-se
igualmente por aquilo que está dentro, pelo funcionamento do relógio e pelas
suas particularidades técnicas (mecânicas). Marta Torres admite que o
relógio-jóia continua a ser uma peça de eleição, muitas vezes exemplar único,
feito por encomenda, factor de comunicação de imagem de luxo e exclusividade de
algumas marcas, mas sublinha que grandes manufacturas, com calibres mecânicos
complexos, como a Jaeger-LeCoultre, conseguem introduzi-los em jóias, dando
assim o melhor de dois mundos em peças de eleição. “Existe sem dúvida uma
cultura relojoeira feminina, que não está necessariamente desligada do sentido
técnico de manufactura relojoeira”, defende. Posição idêntica tem Cristina
Kolinski, pois “apesar de ainda serem em menor número, há já muitas mulheres
que não escolhem somente os relógios pela marca ou design, mas sim pelas suas
características tecnológicas, procurando saber se o relógio é ou não
automático, se tem função cronógrafo, etc.” Paulo Santos acha que a mulher
estará sempre mais focada no aspecto estético e o homem mais no aspecto
técnico, isto à semelhança do que acontece em outros sectores, como o
automóvel. “Elas demonstram mais curiosidade técnica quando estão a comprar
para oferecer ao homem, mas quando compram para si ou para oferecer a outra
mulher, a preocupação é mais com a estética”. E remata com alguma ironia:
“Diria que podemos vender um relógio menos feliz esteticamente a um homem,
porque ele está fascinado pelo movimento, e isso (a meu ver bem) é quase
impossível ocorrer com uma mulher”.
As estratégias de moda invadiram a linguagem comunicacional
do sector relojoeiro, e as grandes marcas de moda fazem todas relógios sob o
seu nome. A mulher tem procurado mais, na decisão final de compra, o estatuto
dado pela marca do que o dado pela tradição relojoeira?
Simoneta Gómez-Acebo acha que o sector tem estado atento e,
ao aperceber-se de que a mulher se interessa cada vez mais pelos aspectos
técnicos, dirige parte da sua comunicação nesse sentido. “A mulher tem cada vez
mais exigências na hora da escolha – não se fica só pela aparência, quer saber
como funciona”, diz a representante da Cartier. António Luís Moura acha que a
questão não é de sexos: “A marca é, hoje em dia, um factor fundamental na
escolha de um relógio, seja pela mulher ou pelo homem e, por regra, as grandes
casas relojoeiras do passado são actualmente também grandes marcas”. Cristina
Kolinski reconhece que “o mercado feminino continua a preferir ter mais
relógios em quantidade a um preço razoável do que uma peça de Alta Relojoaria”
e que, muitas vezes, “a marca sobrepõe-se à qualidade intrínseca de um
relógio”, mas “essa tendência está, a pouco e pouco, a mudar”. Marta Torres dá
uma visão mais alargada da questão: “Existe hoje em dia uma tendência de
diversificação de produto nas grandes casas de moda internacionais, pois, para
além do vestuário, têm vindo a desenvolver uma vasta oferta de acessórios (perfumes,
cosméticos, óculos, jóias, relógios, etc.), obedecendo todos a standards
máximos de qualidade (no caso dos relógios, os casos Versace ou Chanel, por
exemplo, procuram a legitimidade relojoeira suíça)”. Paulo Santos diz que há já
uma minoria de clientes da Manuel dos Santos “que procura o estatuto da marca,
conjugado com a tradição relojoeira, mas o público feminino compra sobretudo
marcas de moda, depois marcas joalheiras, e no final da lista aparecem as
marcas com tradição relojoeira”.
Haverá ainda um "relógio feminino" hoje em dia,
quando se sabe a tendência de aumento dos tamanhos das caixas e do êxito que
têm tido relógios masculinos comprados de e para mulheres?
Marta Torres recorda Yves-Saint Laurent, recentemente
falecido. “Ele foi mestre na arte de tornar feminino até o mais emblemático
ícone do vestuário masculino, o smoking, e isso não tornou as mulheres menos
femininas”, diz, para lembrar que “os gostos femininos evoluíram, dos relógios
pequenos e discretos (os diamantes apenas eram usados em ocasiões especiais)
para tamanhos de caixas maiores, com materiais, formas e cores mais ousados,
aproximando-se dos gostos masculinos”. Esse gosto pelos relógios cada vez
maiores levou a que a mulher tivesse adoptado alguns modelos criados
inicialmente para homem, “mas continua sem dúvida a haver uma cultura muito
feminina na relojoaria contemporânea”. António Luís Moura vai mais longe:
“Haverá cada vez mais ‘um relógio feminino’, e isso não está dependente do
tamanho da caixa, mas antes do design e da comunicação da marca”. Simoneta
Gómez-Acebo recorda que a incorporação da mulher no mundo laboral,
originalmente masculino, fez com que ela adoptasse códigos identificados com o
homem. “Dantes, tinha-se apenas um relógio ‘bom’ e hoje são cada vez mais as mulheres
que têm varas peças, que lhes permitem variar em estilo, jogando com formas e
tamanhos”. Cristina Kolinski acha que “o tamanho da caixa não é relevante para
que um relógio seja feminino ou não, apesar da tendência ser o aumento do
tamanho, pois o que faz a diferença são os pequenos detalhes: material do
mostrador, indexes, braceletes, mistura de materiais…”. Paulo Santos pensa que,
apesar das tendências comuns, “continua a existir o relógio feminino
puro”.
A compra por impulso, muito própria do universo feminino,
tem atingido principalmente o relógio barato, que se compra numa dada estação,
por ter a cor da moda, e é encarado como mais um adereço. Como aumentar a
apetência pelo relógio mais caro, visto como investimento, satisfação pessoal,
estatuto, valor seguro?
Cristina Kolinski defende: “No mercado feminino, é preciso comunicar intensivamente que o relógio não é só um acessório, devendo ser considerado antes como uma jóia, competindo com colares, anéis, bricos, etc.… Um investimento que, tal como se vê no mercado masculino, deve ser encarado como valor material e sentimental, que mais tarde se deixará de herança aos filhos, passando a ser o relógio também uma jóia de família”. António Luís Moura diz que “a compra por impulso ocorre tanto nos relógios baratos como nos Topo de Gama” e que “a apetência por relógios mais valiosos tem aumentado, tanto por parte de homens como de mulheres, bastando comparar o que se passa hoje com o que existia há 10 ou 15 anos com marcas como Chanel, Chaumet, Cartier, Audemars Piguet, Patek Philippe e outras”. Marta Torres faz-se porta-voz de uma geração: “Desde pequenas que gostamos de acessórios, usamos pulseiras e brincos de fantasia, mais tarde são os relógios de plástico de marcas mais ou menos conhecidas, começamos a desenvolver o nosso próprio sentido estético. Os gostos evoluem, o conhecimento aumenta e valores como luxo, tradição, inovação, exclusividade e excelência ganham sentido pleno, com os relógios das grandes manufacturas a serem objecto dos nossos sonhos”. Paulo Santos faz o contraponto: “A realidade económica também está presente no consumo… sendo que, naturalmente, o universo feminino é mais sensível à moda – e isso torna mais previsível que, em termos de relojoaria, as compras se situem mais na gama baixa ou média”. Para se aumentar a apetência por um determinado produto, “é necessário fazer chegar ao consumidor certos conhecimentos e informação, com a imprensa, sobretudo a escrita, a ter um papel importante na defesa e pedagogia da história, do conceito, da tradição ou da exclusividade”. Simoneta Gómez-Acebo tem a última palavra: “Ao fim e ao cabo, os valores seguros dão confiança e segurança à pessoa que os usa”.
*Jornalista, investigador do Tempo, da Relojoaria e da evolução das Mentalidades
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