Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Meditações - um relógio inglês

TEMPESTADE DOMESTICA

Às quatro horas da tarde d'este mesmo dia voltava Mr. Richard Whitestone a casa, com aquelle ar de satisfação ingleza, que já lhe conhecemos, e em passo vagaroso, como de homem que terminou as tarefas sérias e principiou a gosar as doçuras do não fazer nada. Parte da manhã passára-a com um compatriota, pae de uma nevada e loura lady, a quem de facto Mr. Richard estimaria ver matrimonialmente ligado o filho.

Como n'estas intenções do discreto inglez conseguira entrar a despenseira, não sabemos nós; mas é certo que, ou por força de logica ou por occulta inspiração, havia ella acertado, ao informar a snr.ª Joséfinha da Agua-benta. Comquanto o não ter sido acompanhado pelo filho n'aquella visita matinal houvesse algum tanto desagradado ao inglez, consolava-se, esperando que elle condescenderia em o acompanhar á noite, na segunda visita que tencionava fazer.

Ia pensando n'isto o velho commerciante, precedido da ligeira Butterfly, impaciente com a morosidade do dono, que tão a miudo a obrigava a retroceder.

Trauteando por entre dentes o predilecto: cheer, boys, cheer, caminhava vagarosamente Mr. Richard pela rua das Flores acima, e pascia a vista nas bem providas exposições de ouro, que adornam um dos lados da rua, quando de repente parou defronte de uma taboleta, como se impressionado por algum objecto que vira n'ella.

Por muito tempo durou este exame.

Havia alli o que quer que fosse que o inglez tomava a peito investigar. E não o conseguindo de fóra do mostrador, entrou na loja.

—Faz favor de deixar-me ver um relogio, que está ahi exposto?—disse elle para o ourives.

O ourives, com sorriso amavel e maneiras delicadas, satisfez-lhe promptamente ao pedido.

Mr. Richard examinou o relogio com minuciosa attenção.

—É um bello relogio!—dizia o ourives—Valioso por todos os respeitos.

Mr. Richard fez um signal afirmativo com a cabeça, e prosseguiu calado no exame.

—É inglês, não é verdade?—perguntou d'ahi a instantes.

—É, sim, senhor. De fabricantes muito acreditados.

—E então... mandou-o vir directamente da Inglaterra?

—Não, senhor...

O ourives principiou a olhar para Mr. Richard com mais cuidado. O que estava pensando, ao olhal-o assim, não sei; mas uma sombra de desconfiança parecia anuviar-lhe o semblante. Passados alguns instantes continuou:

—Para fallar com franqueza a v. s.ª, ainda não há muitas horas que o comprei.

—Ah! E... póde saber-se a quem?...

—Comprei-o a um rapaz, que eu conheço de vista, mas cujo nome ignoro... Supponho que é tambem inglez... Vinha em carro com uma senhora...

Mr. Richard abriu muito os olhos, fitando o ourives e repetiu:

—Com uma senhora?...

—Sim, uma senhora ainda nova, vestida de preto, que ficou á espera d'elle. O rapaz entrou aqui, disse que estava para ir para fóra da terra, e propôz-me a compra do relogio e da corrente... Entramos em ajuste...

—Bem, bem; pouco me importa isso—disse Mr. Richard, com ligeiras e convulsivas contracções de labios, que eram n'elle indicio de cólera reprimida.—Vamos a saber: Por quanto m'o vende agora?

O ourives fez valer os seus direitos a algum modico lucro, direitos que Mr. Richard não lhe contestou, vindo a final a comprar, pela segunda vez, o relogio e a corrente, com que havia já presenteado o filho.

Porque não havia para elle duvida, e escusa de a haver para o leitor, de que eram exactamente aquelles mesmos os objectos que tinha agora presentes.

Ao sair da loja, Mr. Richard ia com a physionomia outra vez serena, mas lá por dentro, quem o podesse perscrutar, encontraria um grau de irritação, a que raras vezes lhe subia o genio fleugmatico.

O criado, que estava á porta quando Mr. Richard chegou a casa, era o mesmo que recebera pela manhã a visita, que tanto indignára a snr.ª Antonia.

—A que horas saíu hoje o snr. Carlos?—perguntou Mr. Richard, em tom de voz sêcco e aspero.

—Ás... ás dez horas—respondeu, já sobresaltado, o criado.

—Só?

O rapaz teve vontade de dizer que sim, mas Mr. Richard fitava-o com um olhar, que lhe desvaneceu toda a impassibilidade precisa para isso.

—Só?—repetiu o inglez, com mais força.

—Não... não senhor...—respondeu o criado.

—Então?

—Com... com...

—Com quem?—perguntou Mr. Richard, cada vez mais imperioso.

—Com uma senhora, que... que veio procural-o... mas... era já de idade—acrescentou o homem, como correctivo.

Porém Mr. Richard já lhe havia voltado as costas, entrando para casa. Jenny estranhou-o. Habil na leitura d' aquella physionomia, nem uma só ruga, que accidentalmente a carregasse, podia passar-lhe despercebida e sem lhe excitar desejos de decifral-a.

Mr. Richard respondeu benignamente, mas em poucas palavras, ás perguntas de Jenny, e quiz saber se Carlos já tinha vindo para casa.

Recebendo resposta affirmativa, acrescentou que, antes de jantar, desejava ir ao quarto d'elle.

Era esta resolução tão extraordinaria, que Jenny, ao ouvil-a, olhou fixamente para o pae.

Conheceu que alguma cousa tinha occorrido, capaz de trazer após si uma d'essas scenas violentas, que ella tanto fazia por afastar.

Pretendeu conjural-a.

—Pois vamos—disse a sorrir, e dispondo-se a acompanhar o pae.

—Não, não—respondeu Mr. Richard, afastando-a com doce violencia.—Eu pretendo... preciso de fallar-lhe a sós.

Jenny soltou-lhe o braço, a que já se apoiára desanimada com a frieza, mal occulta, d'aquellas palavras.

Mr. Richard tentou abrandar a impressão do primeiro movimento, dizendo:

—É de negocios que se trata... Até já!... No entretanto, pódes mandar servir o jantar.

Jenny viu-o partir sobresaltada e procurando em vão adivinhar a razão d'aquella entrevista.

Mr. Richard n'este tempo appareceu no quarto do filho.

Muito longe de esperar aquella visita, Carlos, recostado no canapé, pensava... em Cecilia provavelmente.

Ao ver o pae, que tão raro o procurava no quarto, levantou-se com alvoroço e mal occulto espanto.

Mr. Richard caminhou para elle, e tirando do bolso o relogio e a corrente disse, quasi gaguejando, como sempre lhe acontecia quando sob o dominio de violenta commoção:

—Ahi tem. Quando vender as... as dadivas das... das... pessoas que... que o estimam... seja para... fins que... que o não envergonhem, nem... deponham tristemente contra... o seu caracter...

Á vista do relogio foi tal a commoção que se apoderou de Carlos, que nada pôde responder; baixou os olhos, confuso, corou intensamente, como se a consciencia lhe estivesse dizendo que a severidade das arguições do pae era merecida.

Estes signaes foram por Mr. Richard interpretados como tacita confirmação das suas suspeitas.

Cresceu n'elle com isto a irritação.

—Seja extravagante muito embora... mas... mas... nunca seja... nunca seja vil...

Carlos estremeceu ao ouvir aquella palavra, e levantou com vivacidade a cabeça.

—Senhor!—exclamou, mal conseguindo o respeito filial suffocar-lhe a indignação que sentira.

—Vil, sim—repetiu Mr. Richard com mais força, como se excitado por aquella apparencia de reacção.—Quero que não faça d'esta casa theatro das suas... aventuras... escandalosas.

—Mas...

—Lembre-se de que é aqui—proseguiu, sem o attender, o pae—aqui, debaixo d'estes tectos, que não tem a delicadeza de respeitar, que é aqui que embranqueceram os cabellos de seu pae... que foi aqui que sua mãe morreu... que é aqui que vive sua irmã.

—Creio que ainda não dei motivos para...

—Quem o procurou esta manhã? Com quem saiu de carruagem? Com que fim vendeu esse relogio?

Carlos calou-se. Parecia resolvido a guardar silencio, em relação áquellas perguntas; nem era de animo tão docil, que ouvisse, sem se irritar tambem, estas severas recriminações, feitas antes de julgamento minucioso.

O seu orgulho revoltou-se.

—Não posso explicar nada d'isso, mas dou-lhe a minha palavra que...

Mr. Richard atalhou-o:

—Nem eu quero tambem averiguar dos actos da sua vida. Teem-me chegado aos ouvidos rumores de muita extravagancia sua, de que não tenho feito caso. Mas quero, mas exijo... E inda tenho força bastante para o conseguir, póde crêl-o... Quero e exijo que se respeite o meu nome e... e a minha casa. Fique entendendo.

—Mas eu já lhe dei a minha palavra de honra de que todos os meus actos d'esta manhã não podiam deshonrar nem o seu nome, que é o meu tambem, nem esta casa, que eu respeito como...

—A sua palavra de honra! Não basta. Bem vê que tenho motivos para duvidar d'ella... e porisso...

—N'esse caso, como não tenho outra garantia a offerecer, calo-me. Depois de uma resposta como essa, quando é de um pae que a recebemos, não nos resta outro partido, além do silencio—disse Carlos, com decidida resolução de não continuar este dialogo, receiando com razão que a impetuosidade do genio o levasse a esquecer a qualidade da pessoa, que altercava com elle.

Mr. Richard calou-se tambem e deu em passeiar no quarto. Depois disse, ainda com severidade, mas em tom menos elevado:

—Parece-me que concordará commigo em que me assiste o direito de pugnar pelo decôro da minha casa?

Carlos não respondeu.

—É um dever imperioso de todo o chefe de familia. A excessiva benevolencia é também immoralidade—disse ainda o pae.

O mesmo silencio da parte de Carlos.

—Espero que não tenha deixado adormecer em si tão profundamente os sentimentos de honra, que não comprehenda já este dever da minha parte.

Nenhuma resposta ainda.

Mr. Richard, que conhecia o filho, percebeu que em vão esperaria d'elle defeza ou desculpa.

Saiu portanto do quarto.

Quando fechou atraz de si a porta, Carlos atirou ao chão, com movimento de raiva, que havia muito a custo reprimia, uma preciosa jarra da China, que se fez pedaços; em seguida pôz-se a percorrer o quarto a passos largos, e ai do objecto que encontrava na passagem!

A campainha soou emfim, chamando para o jantar.

Carlos tentou dar á physionomia um aspecto de serenidade, no que foi mal succedido. Lá estava o olhar de Jenny a espial-o, e não era ella a que se illudiria com estes fingimentos pueris.

Imagine-se como correu o jantar, principiado sob taes auspicios.

O tinir dos talheres e dos crystaes era o unico ruido que interrompia o solemne silencio da sala. Até os criados andavam em bicos de pés, dominados por aquella como atmosphera pesada, que se respirava alli dentro.

Jenny ainda tentava sorrir ás vezes, mas, coitada, gelava-se-lhe o sorriso nos labios, á vista das frontes ligeiramente contrahidas do pae e do irmão. E sem poder descobrir o motivo d'aquella animadversão entre elles! Como tão de repente se condensára esta tempestade, que ella nem tempo tivera para tentar desvanecer?

O jantar terminou como começára, silencioso e triste. Carlos foi o primeiro a levantar-se da mesa. Mr. Richard não teria d'esta vez companhia para o seu tão apreciado pospasto.

O inglez começava a sentir mentalmente os effeitos de uma mudança de pensar. Estava-lhe já parecendo que havia sido muito severo para com o delicto do filho.

Podia muito bem ser que tivesse peccado por inexacta a interpretação que dera ao facto, e ainda quando não fosse, era a final uma leviandade de rapaz, que talvez não merecesse tão asperas censuras.

O tolerante inglez só esperava por o primeiro ensejo para naturalmente, airosamente, realisar a reconciliação com o filho. Onde ia já o seu resentimento?

Ficou pois devéras mortificado, assim que viu Carlos levantar-se para saír, levando comsigo as esperanças do almejado ensejo.

Olhou para Jenny, a ver se d'ella partiria alguma tentativa para reter o irmão.

Jenny, absorvida a estudar a physionomia de Carlos, não deu pelo gesto do pae.

Já Carlos ia no meio da sala, quando Mr. Richard disse, em voz alta, as primeiras palavras que, desde que se sentára dissera:

—Chegou hontem á noite... Mr. Smithfield, de Londres...

Carlos parou, ficando por alguns instantes a olhar para o pae, como se esperasse ouvir d'elle mais alguma cousa; depois continuou a caminhar para a porta.

—Chegou Mr. Smithfield e a filha, Alice Smithfield—disse ainda Mr. Richard.

Carlos tornou a parar, e vendo que o pae não acrescentava mais nada, deu ainda alguns passos.

—É um homem, a quem a nossa casa deve muitos favores, tanto commerciaes como... pessoaes—disse Mr. Richard.

Estas palavras suspenderam outra vez Carlos, que ia já proximo da porta.

E como Mr. Richard se calasse, o filho estendeu a mão para o reposteiro.

—Estivemos lá, esta manhã, eu e Jenny.

Carlos não disse nada; esperou ainda.

Mr. Richard acrescentou:

—E ficamos de voltar esta noite... Elles partem ámanhã para o Minho e... Perguntaram por... por ti.

Mr. Richard realisára um grande esforço: pozera de parte o tom ceremoniatico com que até ahi tratára o filho.

Carlos, que já desviava o reposteiro, vendo que o pae não proseguia, curvou-se respeitosamente e saíu, como se não tivesse comprehendido o sentido d'aquellas insinuações.

Mr. Richard viu-o saír, e de novo se lhe carregaram as feições, que haviam já desanuviado de todo; ao mesmo tempo estalava-lhe entre os dedos uma avelã, com que estivera brincando, tal foi a força, de que a contrariedade lhe animou n'aquelle momento os musculos.

Jenny vira tudo isto, afflicta e irresoluta. Para sanar o mal, era necessario conhecer-lhe a causa, e ella ainda a não sabia. Levantou-se e foi encostar-se ao hombro do pae.

—Que tem?—disse-lhe com voz affectuosa.

—Faço quanto posso para viver em paz, mas já vejo que não é possivel.

—Então por quê?

—Pois não viste?

E levantou-se, dando alguns passos agitados na sala.

—Carlos tem vinte annos—acrescentou, passeiando ainda.—Aos vinte annos, ha já deveres para todo o homem... E se elle se esquece de que os tem e de que os deve e ha de cumprir... eu que sou pae...

À entrada de um criado interrompeu-o.

Mr. Richard sentou-se, pôz-se a ler o Times e recaiu no silencio, de que nada mais o tirou. Seria o Times que o absorvia assim? O que é certo é que em toda a tarde não desviou os olhos da primeira columna do jornal.

Muito enigmatica devia vir esta primeira columna, que tanto custava a ler!

Jenny dirigiu-se ao quarto do irmão.

Júlio Dinis, Uma Família Ingleza

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