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domingo, 2 de dezembro de 2018

Por ocasião da visita do Presidente da República Popular da China, panorâmica sobre meio milénio de "relações entre a esfera e o dragão"


O livro 500 Anos de Contactos Luspo-Chineses, de 1998

Para perceber um pouco mais das relações luso-chinesas, que existem desde há meio milénio.

A convite do Presidente da República, o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, acompanhado da Primeira-Dama, Peng Liyuan, e de uma extensa delegação de alto nível, realizará nos próximos dias 4 e 5 de Dezembro, terça e quarta-feira, uma visita de Estado a Portugal. Esta será a primeira visita de Estado do Presidente Xi Jinping a Portugal e a terceira de um Chefe de Estado chinês ao nosso país, depois das visitas de Jiang Zemin em 1999 e de Hu Jintao em 2010.

Este texto, comunicação lida em Dezembro de 2005 na Casa Veva de Lima, em Lisboa, parte essencialmente da investigação feita ao longo de um ano, em 1998, para a publicação de “500 Anos de Contactos Luso-Chineses”, e de Diálogos entre a Esfera e o Dragão, texto de contextualização do catálogo “Portugal Encontra a China”, editado para a exposição do mesmo nome que ocorreu em Beijing, no início de 2005, por ocasião da visita de Estado do Presidente Jorge Sampaio à República Popular da China.

O minúsculo Portugal, a imensa China. Colocados nos extremos da grande massa continental euro-asiática, protagonizaram os primeiros capítulos da globalização, esse processo de contactos civilizacionais, de trocas comerciais que terá começado em 1498, com a descoberta por Vasco da Gama do caminho marítimo para o Oriente.

Desde então que o fluxo geral da História Universal girou nesse sentido – de Ocidente para Oriente, com todas as relativizações e mal-entendidos que o processo gerou. Mas as coisas poderiam ter-se passado exactamente ao contrário, até era de toda a lógica que isso assim tivesse acontecido – o Oriente a caminho da “descoberta” do Ocidente. Ainda hoje não há explicação cabal para que tal não ocorresse.

Pode dizer-se que a “Expansão” chinesa começa quase ao mesmo tempo que a Expansão portuguesa. Se, em 1415, com a conquista de Ceuta, se dá o início da grande caminhada lusa pelo mundo, dez anos antes, um eunuco ao serviço do imperador da China, Zhang He (1371-1433), realizava a primeira de sete viagens para Ocidente. Com navios sete vezes maiores do que as caravelas, tripulações de dezenas de milhares de efectivos, preparação técnica e conhecimentos de marear muito superiores aos da Europa da altura, Zhang He não terá avançado mais do que aquilo que é hoje a costa norte de Moçambique. Depois, morreu, em Calicute, 65 anos antes de o Gama lá chegar. As especulações continuam sobre porque é que a China abandonou as suas expedições marítimas, porque é que Zhang He não teve continuadores. Desde logo, não havia proselitismo religioso na empresa chinesa. Depois, nem o imperador nem a corte estavam directamente empenhados no comércio, actividade que era desprezada pelas elites. Ocupação territorial, também não estava na agenda. Quanto a curiosidade científica por novos lugares e novas gentes, ela era também nula, para quem se achava “o centro do mundo”. Então, para que zarpou Zhang He? Para impressionar os Estados que se serviam do sistema de comércio tributário comandado pela China, para conseguir novos súbditos para o sistema. Por outras palavras, desde que os povos vizinhos aceitassem enviar regularmente uma embaixada de tributo ao imperador (subentendendo a sua superioridade divina), com presentes o mais raro e valiosos possível, a China ficava satisfeita. Quando Zhang He chegou à costa oriental da África, deparando-se com a falta de Estados organizados, logo sem tributários potenciais que impressionar, a missão chegava ao fim. Esta pode ser, como tantas outras, a explicação.

Desafio-os agora a fazer um exercício de imaginação histórica, sempre fascinante, sempre falível: Não poderíamos estar, hoje, a negociar a devolução, por parte da China, das Berlengas, depois de meio milénio de ocupação do minúsculo território, usado como placa giratória dos interesses comerciais da China continental e da sua rede de comunidades de chineses ultramarinos, presentes um pouco por toda a costa atlântica da África e da Europa? Em vez de Macau e Hong Kong, não poderíamos ter, deste lado do mundo, colónias asiáticas a serem, a pouco e pouco, devolvidas?

De qualquer modo, a História fez o seu fluxo de Ocidente para Oriente, mas tudo o que se vai ler a seguir terá que ser visto com olhos de quem pense: “as coisas poderiam ter-se passado exactamente ao contrário, uma armada chinesa bem poderia ter aparecido um belo dia no estuário do Tejo, em meados do século XV…”

Mas os factos são que, em 1488, Bartolomeu Dias dobra o cabo da Boa Esperança, provando que as águas do Atlântico e do Índico comunicam entre si. Em 1498, Vasco da Gama chega a Calicute, Índia, 65 anos depois de Zhang He lá ter morrido. Afonso de Albuquerque conquista Ormuz, no estreito que liga o Índico ao Golfo Pérsico, (1507), Goa (1510) e Malaca (1511). Os portugueses passam a controlar o fluxo marítimo do Oriente para o Mediterrâneo, em detrimento do monopólio até então exercido pelo Império Otomano e pelo seu principal interface ocidental, Veneza.

Quando Diogo Lopes de Sequeira partiu à descoberta de Malaca, em 1508, levava instruções escritas e precisas de D. Manuel I sobre o Grão Cataio, a lendária China de que Marco Pólo e outros viajantes europeus da Idade Média tinham falado – o monarca português queria saber de onde vinham os “chins”, se era longe, quantas vezes por ano iam a Malaca e outros locais onde comerciassem, quantos barcos utilizavam, como estavam preparados militarmente, o modo de vestir, se eram cristãos, se no meio deles havia muçulmanos, como eram governados, etc.

Logo nos portos do Norte de Samatra (Sumatra, actual Indonésia), que foram escalados antes da chegada a Malaca, os portugueses terão contactado com os chineses (pelo menos, terão recebido porcelanas chinesas de presente por parte do sultão de Pedir). Por essa altura, a cidade de Malaca, na península malaia, era um centro económico transbordante de riqueza do Sudeste Asiático, onde mercadorias raras e valiosas se cruzavam numa azáfama febril. Tinha tratados de suserania com a China, provavelmente reafirmados quando Zhang He e as suas expedições tinham passado por lá.

À sua chegada a Malaca, a 1 de Julho de 1509, Sequeira encontrou dois ou três juncos chineses no porto. Contactou directamente os mercadores, comeu a bordo de um deles. Terá sido, de facto, o primeiro encontro luso-chinês de que há registo. Numa anónima Crónica do Descobrimento e Primeiras Conquistas dos Portugueses na Índia, manuscrito da segunda metade do século XVI existente no Museu Britânico, descreve-se o episódio, com realce para os rituais de saudação. O “língua” (tradutor) que acompanhava os portugueses não os entendeu, pelo que foi chamado “um mouro de Malaca que sabia a língua” dos “chins”. “Tanto que veio, falaram em muitas coisas, perguntando-se uns aos outros pelas coisas de seus reis e de seus reinos”.

Depois, a descrição prossegue com o quadro físico destes chineses, provavelmente provenientes de comunidades ultramarinas estabelecidas em toda aquela zona ou oriundas de zonas costeiras da China do Sul: “São homens alvos e bem-dispostos, não têm barba, salvo no bebedouro, os olhos pequenos e os lagrimais afastados dos narizes, cabelos compridos, quase pretos e ralos […]”. Compreende-se a dificuldade de entendimento entre portugueses e chineses, neste primeiro encontro, fruto de um diálogo indirecto, feito através de um “língua” local, que por sua vez transmitia o que ouvia, ora aos chineses, ora ao “língua” que Diogo Lopes de Sequeira tinha trazido consigo, e este aos portugueses. Daí que se possa perceber que o relato refira: “Dizem que são cristãos”. Os reinos europeus, cercados no mundo conhecido de então por um muro islâmico, ansiavam por comprovar lendas que falavam de reinos cristãos para lá desse muro, como o do Preste João. Os desejos moldavam-se à realidade. Estes chineses não eram muçulmanos, logo, eram cristãos…

Uma coisa terá aproximado, desde logo as duas partes: os portugueses tinham contactado até aí, no seu caminho para Oriente, com populações cheias de tabus religiosos do ponto de vista da alimentação. Ali, os “chins” mostravam-se abertos – “comem toda a vianda”, bebem vinho. Além disso, o cronista acha importante referir que estes mercadores, nas suas viagens, “trazem consigo mulheres”. Diogo Lopes de Sequeira regressou a Portugal em 1510.

Certamente munido das informações sobre a força militar em presença fornecidas por Sequeira, Afonso de Albuquerque conquista Malaca no ano seguinte. Um novo e amistoso encontro com mercadores chineses e os seus juncos ocorre ao largo da cidade, com os comerciantes a ajudarem ao transporte de tropas lusas. João de Barros, nas Décadas da Ásia, diz que Afonso de Albuquerque “enviou mensageiros seus” à China, mas não há outras fontes que confirmem esta primeira tentativa de “relações diplomáticas” com o Império do Meio.

Ao certo, em 1513, o capitão de Malaca, Jorge de Albuquerque, envia um oficial da coroa, Jorge Álvares, com o objectivo claro de, pela primeira vez, navegar até à China. Com um carregamento de pimenta de Samatra a bordo, chega a uma das ilhas do delta do rio da Pérola (Zhujiang), ao largo de Cantão (a actual Guangzhou). Cartas de mercadores italianos aludem a este primeiro contacto comercial luso-chinês conhecido, referindo que os portugueses “não foram autorizados a desembarcar; pois dizem que é contra os seus costumes deixar os estrangeiros entrar nas suas residências”. Mesmo assim, o negócio fez-se e Pires e companheiros venderam a mercadoria “por bom preço, e dizem que é tão lucrativo levar especiarias para a China como levá-las para Portugal; pois é um país frio e fazem muito uso delas”.

Ao encetar relações comerciais com a China, os portugueses estavam a imiscuir-se definitivamente, e nos primeiros tempos em monopólio, como ocidentais, na rede de comércio regional que ligava há séculos a Insulíndia ao Sul da China. No regresso, Pires levava produtos chineses para vender em Malaca, e não em Lisboa.

Em 1515 partia, desta vez de Goa, uma expedição portuguesa à China. Era comandada por Rafael Perestrelo e o destino, de novo, o delta do Rio da Pérola. Faz comércio e vai a Malaca vender o que comprou, com lucro “de vinte para um”. O cronista Fernão Lopes de Castanheda coloca na boca de Perestrelo a seguinte apreciação: “que os chins queriam paz e amizade com os portugueses, e que era muito boa gente”.

Ao contrário de Álvares, que nunca mais regressaria a Portugal, Rafael chegou a Lisboa no verão de 1518, tornando-se, muito provavelmente, no primeiro português a concluir uma viagem de ida e volta entre Portugal e a China, sendo também o primeiro europeu a fazê-la seguindo uma via exclusivamente marítima.

Uma terceira expedição ordenada pela Coroa portuguesa à China partira, entretanto, de Lisboa, em 1515. Era comandada por Fernão Peres de Andrade. Chega em 1517 ao largo de Cantão. Os navios dispararam uma salva de canhão, uma prática corrente usada nesses tempos pelos portugueses em todo o Índico, num misto de saudação e de intimidação. Para os registos chineses fica “a conduta imprópria dos portugueses, que não só estavam ali sem autorização das autoridades competentes, como tinham cometido uma falta contra os costumes da terra”.

A principal missão de Peres de Andrade não era a de comerciar. Estava ali para tentar avistar-se com o Imperador. Numa reunião com os mandarins locais, eles julgaram estar perante mais uma visita de cortesia, no âmbito do comércio tributário. Procuraram nos registos imperiais por visitas anteriores dos folangji, o nome pelo qual os portugueses se apresentaram. Mas não encontraram nada.

Isto leva-nos a outro problema: quem eram os portugueses, aos olhos dos chineses? Habilmente, os portugueses chamavam-se a si vários nomes, a começar por folangji (não se sabe ao certo, mas será corruptela de “francos” ou “folang”, o nome pelo qual a generalidade dos ocidentais era conhecido na China, reminiscências seculares dos contactos terrestres havidos, através da Rota da Seda, e por intermédio dos árabes, com a Europa Medieval). Mas também se designavam “vindos do país do Ocidente, à beira de um grande mar”. Esta descrição levaria à classificação de Da Xi Yang Guo, a tradução à letra do conceito. Como o chinês não tem plural para estes casos, o registo nos livros tributários para Da Xi Yang Guo até podia significar vários países, pois os concorrentes dos portugueses, que iam chegando, para poderem comerciar também se acomodavam ao registo que melhor lhes convinha… e passaram a ser todos Grandes Reinos do Mar Ocidental…

Da comitiva de Fernão Peres de Andrade fazia parte Tomé Pires, boticário, que tinha alguma experiência da região da Ásia do Sueste e do mar da China. Foi ele o escolhido para chefiar um grupo de portugueses que ficou em terra, à espera de uma decisão das autoridades sobre a sua ida até à corte imperial, em Beijing. Só em 1520 saiu de Cantão e, ao chegar à capital, o primeiro “embaixador” português ia mal preparado: quando foi aberta a carta que D. Manuel I mandara ao imperador, descobriu-se que ela era num tom de igual para igual, entre soberanos, e diferia em muito da tradução que os intérpretes chineses tinham feito inicialmente, sendo por isso “descabeçados”. Depois, houve algum “azar” na missão de Tomé Pires, pois nessa mesma altura chegavam a Beijing familiares do sultão de Malaca, deposto pelos portugueses, e que ali ia pedir auxílio. Para somar a tudo isto, o imperador morria, em 1521. Com luto decretado, a corte mandou de volta Tomé Pires e o seu grupo a Cantão. É incerto o seu fim. Terão todos morrido em prisão domiciliária. Fernão Mendes Pinto, na Peregrinação, fala de ter vistos descendentes destes portugueses, fruto de ligações com chinesas. Aliás, um terço da Peregrinação é dedicado à China, “mais abastada que todas as terras quantas há no mundo”, com um governo “que a todas as outras terras pode fazer inveja” e com um povo “muito hábil e engenhoso em todo o negócio mecânico, e de agriculturas”.

Macau

Antes de Macau, os portugueses terão estabelecido uma espécie de feitorias na costa da China – há relatos de postos mercantis em Liampó (Ningbo), no norte da costa chinesa, no Zhejiang, mais a sul, e no Chinchéu (Zhangzhou), mais a sul, na província de Fuquiém (Fujian). A existência dessas feitorias, onde portugueses, malaios, japoneses, javaneses se misturavam com chineses do continente e ultramarinos teve vida efémera e não há, que conheça, restos arqueológicos dessa passagem dos portugueses pelos circuitos comerciais regionais, especialmente nas trocas com o Japão.

Não se sabe ainda hoje, ao certo, como se iniciou o estabelecimento de Macau, apesar de a historiografia das últimas duas décadas – chinesa e portuguesa – ter avançado bastante sobre o assunto. De qualquer modo, o embrião desse estabelecimento poderá ser visto, de forma indirecta, no chamado “assentamento” de Leonel de Sousa. Um acordo firmado oralmente entre este capitão e as autoridades marítimas do delta do Rio da Pérola previa o pagamento de uma taxa alfandegária para comerciar, ou a oferta de presentes às autoridades locais.

Ao certo, em 1557 já existia em Macau uma pequena colónia de portugueses, além de mercadores de outros países. Em 1560 já havia uma espécie de governo rudimentar do pequeno território, com “capitão-de-terra”, ouvidor e bispo, bem como uma guarnição militar permanente. Pagava-se, desde o início, às autoridades regionais o chamado “foro de chão”, como que o reconhecimento de que a soberania chinesa não era posta em causa – era uma espécie de “leasing” do território.

Cerca de 1582, no anónimo Livro das Cidades e Fortalezas Que a Coroa de Portugal Tem no Estado da Índia, uma espécie de relatório feito para Filipe II de Espanha, o novo soberano das coroas ibéricas, afirma-se: “ […] posto que a terra seja do rei da China que nela tem os seus oficiais que recebem direitos que ali se pagam, são governados pelas leis e ordenações deste reino de Portugal […]”. Macau surge, pois, caracterizado como território chinês sob administração portuguesa, a fórmula encontrada para os anos de preâmbulo do desfecho deste processo, em 20 de Dezembro de 1999, quando o território voltou à administração chinesa.

Desde o início que a Companhia de Jesus esteve ligada ao destino de Macau (os três primeiros padres chegaram ao território em 1562). Fundada como resposta de Roma ao movimento da Reforma, a nova ordem religiosa aproveitou a Expansão portuguesa, “colou-se” a ela, onde quer que ela fosse. O Oriente não foi excepção. O objectivo era “conquistar” pela fé aqueles desconhecidos, imensos e superpovoados territórios. E Macau, onde o primeiro bispo “do Japão e da China”, D. Melchior Carneiro, chega em 1568, era a antecâmara do Padroado Português do Oriente (monopólio religioso concedido pelo papa a Lisboa), que ali preparava os seus agentes evangelizadores no contacto com os hábitos e a língua dos gentios. Mas a resistência da China à entrada dos padres era grande.

Um dos religiosos dessa época, Francisco de Sousa, relata que, em 1582, ocorreu um incidente “do qual com maior fundamento se podia esperar serem os portugueses lançados de Macau, que os padres admitidos na China”.

Beijing tinha mudado de vice-rei de Cantão, a província que tinha poder administrativo sobre Macau. O novo mandarim acusava os portugueses de estarem a usurpar a justiça imperial, por levantarem tribunais ou decidirem causas. Além disso, estariam a “meterem estrangeiros em terra firme”, especialmente japoneses e cafres. Mandou o vice-rei que o Capitão de Macau e o seu Bispo, Belchior Carneiro, comparecessem perante si, em Chaoqin, no continente, onde residia. Os portugueses enviaram em nome do Capitão, o Ouvidor; em nome do Bispo, os religiosos Miguel Rugieri e Francisco Pacio.

Depois de um primeiro encontro, aprazível, em que a delegação ocidental apresenta sedas e cristais de presentes ao vice-rei (que as paga), faz-lhe chegar posteriormente a informação de que dispunha de “uma máquina de aço toda de rodas por dentro, que continuamente se moviam por si mesmas, e mostravam por fora todas as horas do dia e da noite, e ao som de uma campainha dizia o número de cada uma delas”.

E, perante a curiosidade ansiosa do vice-rei, dá-se o facto histórico: a 27 de Dezembro de 1582, os italianos Rugieri e Pacio fazem o que se pensa ser a introdução do primeiro relógio ocidental na China. Seria, segundo o que se sabe, um relógio de mediana grandeza, “obrado por excelente artífice”, e mandado da Europa ao padre português Rui Vicente, que o destinou à missão da China.

Apresentado o relógio, nas palavras de Francisco de Sousa, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.

Segundo alguns historiadores chineses contemporâneos, o presente do relógio mecânico ao vice-rei de Cantão foi essencial para lhe ganhar as boas graças e conseguir a permanência dos portugueses em Macau. Sustenta ainda que foram os relógios – e outra mercadoria rara e idolatrada, o âmbar cinzento – que abriram a corte imperial, em Beijing, aos jesuítas, que tinham facilidades de comércio em toda a região.

Ganhar as graças do vice-rei de Cantão, era uma coisa. Mas chegar a Beijing, a milhares de quilómetros de distância, era outra. Os fundadores da Missão católica na China, os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, acompanhados de outros jesuítas, como os portugueses António de Almeida e Duarte de Sande, conseguiram atingir, depois de longa e complicada viagem, a corte imperial — estava-se a 24 de Janeiro de 1601. A embaixada religiosa levava consigo vários presentes. É claro que os relógios não podiam faltar. Os objectos não eram entregues directamente ao imperador, mas antes ao grupo de eunucos que verdadeiramente detinha o poder na Cidade Proibida.

Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.

Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem.

Na visão dos historiadores chineses já referidos, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, como veio a acontecer).

Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”. Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau.

Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira.

Este último, nascido em 1645, em São Martinho do Vale, concelho de Barcelos, foi uma das figuras mais polifacetadas e curiosas entre os jesuítas portugueses a servirem no Oriente.

Em 1672, estando ele em Macau, o imperador Kangxi (já da dinastia Qing, grande admirador das técnicas ocidentais, apaixonado pelos relógios, chegando a fazer poemas sobre eles), mandou chamá-lo a Beijing, devido às referências que ouvira dele por parte de outro jesuíta, o belga Ferdinand Verbiest. Ficou por lá os 35 anos seguintes, até morrer, em 1708. Músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.

Os jesuítas, a elite europeia daquele tempo, eram gente de muitos talentos, não se limitando ao conhecimento da mecânica aplicada à relojoaria. Fabricavam outros instrumentos científicos, como lunetas. Sabiam da língua, fazendo os primeiros dicionários e gramáticas de chinês para línguas ocidentais; sabiam de cartografia, desenhando as primeiras representações do novo mundo a uma corte chinesa habituada a “estar no meio”; sabiam de música, de pintura, eram diplomatas. Quase todos eles eram também astrónomos. A previsão acertada de um eclipse solar em Junho de 1629 permitiu aos jesuítas, com o seu método, ganharem aos “adversários” que a corte lhes tinha apresentado – adeptos dos métodos tradicional chinês e islâmico. Nesse ano, são nomeados os primeiros astrónomos ocidentais para o chamado Tribunal das Matemáticas, até então sob direcção de quadros islamizados (Adam Schall, Gabriel de Magalhães, Manuel Dias, Ferdinand Verbiest, Tomás Pereira, Terrencius são alguns dos jesuítas que ascendem ao mandarinato, responsáveis pela modernização do pensamento científico chinês no século XVII). Este Tribunal das Matemáticas, crucial na administração do poder, interface entre os deuses no céu e o Imperador-deus na terra, destinava-se a fazer os calendários, a prever os eclipses, a fabricar e manusear os instrumentos científicos necessários a essas missões.

Matteo Ricci, em carta para Roma, em 1605, dizia: “Estes globos, relógios, esferas, astrolábios, e outros, que fiz e cujo uso ensino, deram-me a reputação de ser o maior matemático do mundo. Não tenho um único livro de astrologia, mas apenas com a ajuda de algumas efemérides e almanaques portugueses, prevejo por vezes eclipses mais acuradamente” que os 200 funcionários chineses e árabes empregues pelo imperador para a feitura do calendário.

Os padres, aos olhos dos mandarins chineses, tinham muito menos uma função religiosa ou de proselitismo (quando os jesuítas seguiam esses caminhos eram expulsos ou tinham outros problemas) e muito mais uma função de especialistas técnicos. Esse Tribunal das Matemáticas não era mais do que um Observatório Astronómico, que aliás ainda hoje existe em Beijing, embora a maioria dos instrumentos que lá estão sejam réplicas (os genuínos, anteriores à chegada dos ocidentais ou construídos pelos jesuítas, foram pilhados por assaltos sucessivos de revoltas internas ou invasões estrangeiras).

Os jesuítas tinham outros observatórios astronómicos instalados nos terraços das suas residências, em Beijing. Com as observações de eclipses, determinavam com exactidão as coordenadas geográficas das várias cidades chinesas.

Na Academia das Ciências, em Lisboa, há relatos dessas observações astronómicas. Uma diz respeito ao eclipse solar ocorrido a 15 de Julho de 1730, medido pelos padres André Pereira e Inácio Kegler. André Rodrigues faz, no final do século XVIII, um balanço que manda para aquela instituição, das dezenas de observações de eclipses solares e lunares entre 1753 e 1794. Dos globos construídos pelos ocidentais em Beijing, conhece-se hoje apenas um exemplar, e que se encontra na British Library, Londres. A esfera, de madeira pintada e lacada, com diâmetro de 59 cm, correspondendo a uma escala de 1/21.000.000. O chamado globo chinês, executado em 1623, baseia-se nos conhecimentos geográficos da época mas, especialmente, está apoiado no planisfério desenhado por Matteo Ricci em 1602. São seus autores os jesuítas Manuel Dias, o Jovem (Castelo Branco, 1574 – Beijing, 1659) e Nicolo Longobardi (1559, Sicília – 1654, Beijing).

Sabe-se que Gabriel de Magalhães produziu em Beijing pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir. Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões externas que já referimos.

Um “estrangeirado”, João Jacinto de Magalhães, estando a viver em Londres, escrevia em 1782 ao governante português Martinho de Melo e Castro, sobre os instrumentos científicos que lhe tinham sido encomendados e destinados ao bispo de Beijing (continuava a preocupação portuguesa e da instituição Igreja de abrir as portas do Império do Meio através de uma superioridade técnica e científica).

O mesmo João Jacinto de Magalhães tinha escrito em 1768 ao seu compatriota Ribeiro Sanches (na altura a servir como médico na corte russa, em São Petersburgo) dando-lhe conta de que fora ver umas “máquinas prodigiosas e preciosas” que, de Inglaterra, iam ser remetidas aos imperadores da China e do Mogol (Índia), constituídas por figuras de animais, que eram movimentadas por um sistema de relojoaria.

O diálogo epistolar entre Lisboa, Londres, São Petersburgo e Beijing, no final do século XVIII, protagonizado por portugueses e estrangeiros, religiosos e laicos, e tendo essencialmente como tema as observações astronómicas, a troca de informações sobre fauna e flora, terá sido o auge do diálogo científico que trouxe o Oriente ao Ocidente.

Se em 1640 Portugal recupera a independência de Espanha, quatro anos mais tarde instala-se no Trono do Dragão uma nova dinastia imperial. Os portugueses tinham chegado ao contacto com a China no final da dinastia Ming, a partir de 1644 passam a tratar com os Qing, manchus que duraram até 1911, quando a República é proclamada.

São desse tempo as grandes missões diplomáticas da Coroa portuguesa enviadas à China – Manuel de Saldanha (1670), Bento Pereira de Faria (1678), Alexandre Metello (1727), Pacheco de Sampaio (1753) numa diplomacia própria, muito auxiliada em Beijing pelos jesuítas, e que fazia a inveja do resto da Europa. É também o tempo do contacto directo com três grandes imperadores chineses – Kangxi, Yangzheng, Qianlong (de 1661 a 1799) – e de alguma simpatia particular que o primeiro deles e alguns sectores da corte sentiam por Portugal, em detrimento de outras potencias ocidentais. Muitas vezes, por intercessão dos padres, jogava-se, e ganhava-se nessas audiências a continuidade do estatuto de Macau.

Os presentes que a Coroa portuguesa enviava a Beijing eram cada vez mais espectaculares. Na embaixada de Bento Pereira de Faria, por exemplo, seguiu um leão, caçado em Moçambique, levado para Goa, daí transportado para Macau e, depois, para a capital do império. Kangxi, acompanhado de dois filhos, foi ver de imediato o animal, mesmo antes de receber a embaixada. “As crianças ficaram radiantes”, relata o jesuíta Verbiest. A embaixada de Metello, ao tempo de D. João V, terá sido a reedição asiática da enviada a Roma. “Na Corte fiz a minha entrada tão estrondosa que entendo se não tinha visto acção tão luzidia em toda a Ásia, e assim o confessam os que se prezam de ter notícias”, diz ele. Era, na verdade, uma comitiva impressionante, composta por 326 pessoas, 30 andores amarelos para transportar os presentes ao imperador, 12 azuis para o guarda-roupa do embaixador, 24 carros com os móveis da sua casa, 40 cavalos ajaezados de veludo guarnecido de prata e ouro…

No Museu de Física da Universidade de Coimbra há uma espectacular peça, “Magnete chinês contido numa coroa”, e cujo elemento central é um bloco de magnetite de dimensões invulgares, pesando cerca de 12 kg. Desconhece-se a sua origem exacta mas, segundo a tradição, a pedra teria sido encontrada na China e vindo para Portugal como oferta de Kangxi a D. João V. A pedra encontra-se envolvida numa coroa real de metal dourado e todo o conjunto se encontra suspenso, por meio de uma corda, de uma trave horizontal de madeira assente em duas colunas verticais. Um sistema de roldanas permite elevar e baixar a pedra. Na sua versão original, uma esfera armilar encimava o conjunto, desconhecendo-se hoje o seu paradeiro.

O auge da influência dos jesuítas junto do imperador da China ocorre no reinado de Kangxi. Ele fora educado por Verbiest, admirava as coisas do Ocidente – escreveu poemas louvando os óculos, outra invenção introduzida na altura, além de estrofes aos relógios.

Em 1688, Kangxi nomeia o já referido padre Tomás Pereira, que tinha sido seu mestre de música, para integrar uma expedição político-militar que seguiu para norte, para conferenciar com representantes do czar russo sobre questões de fronteira na região do Amur. O outro estrangeiro na missão, actuando também como “técnico”, era o padre francês Jean-François Gerbillon. Actuando como intérpretes-mediadores, os dois jesuítas, usando o latim e o chinês, desempenhariam um papel crucial na negociação do Tratado de Nerchinsk, o primeiro acordo internacional feito por um governo chinês e documento-base na delimitação das fronteiras entre os dois gigantes asiáticos, que funcionou praticamente até à actualidade.

A cartografia moderna foi uma das principais contribuições científicas desse tempo. O padre Francisco Cardoso, chegado à China em 1710 e falecido em Beijing em 1723 fez parte de uma equipa de jesuítas que elaborou mapas de várias regiões do país, incluídos num Atlas publicado na capital chinesa em 1718. E o primeiro mapa da China a aparecer num Atlas europeu, como sublinha o historiador Joseph Needham, é da autoria do jesuíta português Jorge Ludovico.

Grato pelo papel dos jesuítas na negociação do tratado de Nerchinsk, (só assinado em 1689), Kangxi faria publicar, em 1692, um célebre édito de tolerância, onde a fé cristã era aceite como religião institucional no império. Mas o édito seria pouco depois revogado pelo seu sucessor.

A primeira tentativa de evangelização da China é feita pelos nestorianos, nos séculos VII e VIII. Esta corrente do cristianismo, iniciada pelo patriarca Nestório, de Constantinopla, considerada heresia a partir de 431, expande-se fortemente na Ásia, a partir do Egipto, atingindo a Pérsia, a Índia, chegando à China no tempo da dinastia Tang. Os núcleos cristãos tinham há muito desaparecido quando os jesuítas chegaram a Beijing. Mas, em 1625, foi descoberta perto de Xian (antiga capital) uma enorme pedra de mármore negro, com duas toneladas e 2,79 metros de altura, assente sobre uma gigantesca tartaruga. Estava esculpida e cheia de inscrições. Além do chinês, descobriu-se mais tarde, contava uma história em siríaco. Era o “Memorial da propagação na China da religião luminosa vinda de Daqin”. A tal “religião luminosa” era a pregada por Cristo e Da Qin significava o Império Romano. Foi um jesuíta português quem, em 1628, fez a tradução para a linguagem corrente chinesa dessa estela, de grande importância para os jesuítas, que assim legitimavam historicamente, e no tempo, a sua religião. Na sua obra Relação da Grande Monarquia da China, Semedo relata o episódio e transcreve a tradução.

O jesuíta António de Magalhães seria o primeiro “embaixador” chinês enviado a Portugal, formalmente empossado por Kangxi. A Gazeta de Lisboa de 24 de Dezembro de 1722 relata que ele, na qualidade de “Embaixador da China e seu Mandarim de letras”, teve “audiência particular de Suas Majestades”. O aspecto de Magalhães, vestido de mandarim, todo de vermelho e de longas barbas, surpreendeu Lisboa.

Quando Qianlong ascende ao poder, em 1736, o português mais proeminente em Beijing era o jesuíta Félix da Rocha, que chegou a Presidente do Tribunal das Matemáticas. Mas, em Portugal, com o Marquês de Pombal, os jesuítas eram extintos e expulsos, prelúdio da sua extinção a nível internacional. Na China, a Questão dos Ritos (guerra teológica com Roma) ajudava à sua perca de peso. Sintomaticamente, foi um franciscano, D. Frei Alexandre de Gouveia, Doutor em Matemática pela Universidade de Coimbra, nascido em Évora, que D. Maria II nomeou em 1783 como Bispo de Pequim mas que, aos olhos do imperador, era apenas um “técnico” mais – e que ele tinha expressamente encomendado de nacionalidade portuguesa – para substituir no Tribunal das Matemáticas um Félix da Rocha já muito velho e que viria a falecer em 1781.

Muitos dos jesuítas ocidentais que morreram em Beijing estão enterrados no cemitério de Chala (Sha Lai Um Di), também conhecido como o Cemitério dos Portugueses. Foi inaugurado quando Matteo Ricci ali foi enterrado, em 1622. As estelas funerárias (algumas delas vindas mais recentemente de outros cemitérios da cidade) mostram um curioso e significativo estilo que mistura a cosmogonia tradicional chinesa (dragões) com os sinais cristãos. Hoje, nas suas instalações funciona uma Escola de Quadros do Partido Comunista.

Das igrejas construídas pelos jesuítas em Beijing, só a Catedral do Sul (Nan Tang) está aberta ao culto, tendo sido recentemente restaurada.

Quanto ao observatório, Gu Guan Xiang Tai, permanece hoje de pé (está actualmente a ter obras de restauro na zona do terraço), fica situado num dos lados da avenida Xang’an, a maior da capital, atravessando-a de leste a oeste.

O começo do declínio da dinastia Qing na China, à morte do imperador Qianlong, em fins do século XVIII, coincide com a extinção da Companhia de Jesus, em 1773, e a crescente fraqueza do Estado português. Essas circunstâncias abrem as portas à consolidação de outros Estados europeus que, ao longo de mais de um século, tentavam já substituir Portugal nas suas posições asiáticas, e sobretudo substituir-se a Portugal no relacionamento privilegiado que mantinha com o Trono do Dragão. Avizinhavam-se tempos diferentes, porventura tristes, em que duas nações fracas eram instrumentalizadas pelas novas potências e pelos seus interesses na Ásia. São dessa época as duas Guerras do Ópio e aquilo que os chineses chamam de Tratados Desiguais.

Data apenas de 1887 o primeiro documento assinado e ratificado entre os Estados chinês e português, o Tratado de Amizade e Comércio, um documento que Lisboa força um tanto “a reboque”, imitando britânicos, franceses, russos, americanos…

Macau era nessa altura entreposto importante no comércio do ópio e na não menos sensível “exportação” de mão-de-obra chinesa, os “coolies”. Eça de Queiroz, diplomata de Portugal em Cuba, chega a defender a melhoria das condições desses trabalhadores e é um sinófilo que escreve bastante sobre um Império do Meio idealizado. Já antes Camões, Bocage, ou depois Camilo Pessanha e Venceslau de Morais, tinham passado pelo território, inspirando-se nas suas realidades exóticas.

Não resisto a ler-vos um poema de Bocage, que esteve no território de 1786 a 1790, como militar:

Um Governo sem mando, um bispo tal,
De freiras virtuosas um covil,
Três conventos de frades, cinco mil,
Nh’s e chins cristãos, que obram mal,

Uma Sé que hoje existe tal e qual,
Catorze prebendados sem ceitil,
Muita pobreza, muita mulher vil,
Cem portugueses, tudo em um curral;

Seis fortes, cem soldados, um tambor,
Três freguesias cujo ornato é pau,
Um vigário geral sem promotor,
Dois colégios, um deles muito mau.
Um Senado que a tudo é superior,
É quanto Portugal tem em Macau.

O século XX

Numa daquelas coincidências históricas que não podem deixar de ser assinaladas, as duas últimas dinastias em Portugal e na China tiveram nascimento e morte praticamente em simultâneo. Os Braganças, no poder em Lisboa desde 1640, foram destronados pela República em 1910. Os Qing (que, diga-se, não eram chineses, mas Manchus), que estavam no poder desde 1644, iriam cair em 1911-12. E, se a República portuguesa mal conseguiu afirmar-se, até cair no golpe militar de 1926, seguindo-se a consolidação do salazarismo, o regime republicano chinês nunca existiu a não ser no papel, com o país mergulhado no caos da guerra civil, ocupação japonesa, divisão de território entre senhores da guerra locais. De notar que o líder patriótico Sun Zhongshan (Sun Yatsen), médico de profissão, chega a exercer em Macau. O sentimento nacional chinês (germinado curiosamente a partir de uma elite que se educou no Japão e tomou como exemplo a posição de firmeza anti-ocidental nipónica) foi aumentando e Macau teve episódios esporádicos de agitação anti-portuguesa.

Durante a II Guerra Mundial Macau foi ocupado de facto pelo exército nipónico mas, mais uma vez, miraculosamente, o frágil poder luso no território conseguiu sobreviver.

A estabilização, ditatorial, no continente, apenas ocorreria a partir de 1949, com a tomada do poder pelos comunistas, sob a liderança de Mao Zedong. Por essa altura, o regime de Salazar estava no auge da sua força. As relações entre Portugal e a China, apesar de governados por regimes ideologicamente opostos, e mergulhados num clima de Guerra Fria, regem-se, até 25 de Abril de 1974, por um inteligente gerir de interesses mútuos.

Lisboa esteve para reconhecer o regime comunista em Beijing, com Jorge Jardim a ter quase partido para a China, como enviado secreto, para negociar isso, mas a ala mais dura do regime, em Lisboa, impediu o intento.

Em Dezembro de 1966, com o continente mergulhado na Revolução Cultural, dá-se em Macau o episódio conhecido por “Um, Dois, Três”, e em que Guardas Vermelhos no território humilharam o poder português. Mas tornava-se claro que Mao Zedong não queria recuperar Macau, antes usar o território como porta dos fundos por onde entrava ou saía muita da ligação política e económica clandestina de um regime isolado internacionalmente. O início da década de 70 do século passado, com Portugal também cada vez mais isolado internacionalmente e mergulhado numa guerra em África, assiste à reafirmação dessa posição de Beijing: por pressão chinesa, Macau sai da lista das Nações Unidas de territórios a descolonizar.

Sobre o que se passou depois do 25 de Abril, talvez ainda seja cedo para falar. Mas muitos dos intervenientes directos das negociações, pelo lado português, ainda estão vivos, e sei que alguns planeiam escrever, dentro em breve, sobre o que se passou.

Não quero terminar sem assinalar um episódio que confesso ter desconhecido até há pouco tempo, e com que me deparei quando estava a preparar esta comunciação.

Como devem saber, em 1953, o embaixador de Portugal em Londres era Rui Enes Ulrich, marido de Veva de Lima. Perante um dos ciclícos episódios de agitação chinesa contra a presença portuguesa no território (houve incidentes entre tropas nacionais e as tropas comunistas, de um lado e de outro das Portas do Cerco), Salazar instruiu o seu representante na capital britânica, a diligenciar junto do ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, no sentido de que este manifestasse, por intermédio do seu encarregado de Negócios em Beijing, J.C. Hutchinson, ao “Governo central chinês [a] preocupação com que está seguindo [os] acontecimentos [na] fronteira [de] Macau”.

No dia seguinte, Ulrich foi recebido pelo lorde Reading, secretário parlamentar do ministro dos Negócios Estrangeiros, Anthony Eden. O embaixador português solicitou que a missão diplomática britânica em Beijing “fizesse [uma] diligência junto [do] Governo chinês acentuando [os] nossos propósitos de boa e amigável vizinhança e [a] nossa surpresa perante [os] acontecimentos verificados e manifestando [o] apoio da Inglaterra e [o] seu desejo [de] solução amigável”. O secretário parlamentar afirmou que “ia telegrafar imediatamente” para Beijing a diligência pedida. Todavia, a sua “realização […] ficaria ao critério [do] Encarregado [de] Negócios” atendendo às “difíceis relações entre a Inglaterra e a China”.

No dia 5 de Agosto, J.C. Hutchinson respondeu para Londres que atendendo à natureza da diligência esta “deveria, dado o seu carácter transcendente, ser realizada, por um funcionário de alta categoria acreditado junto do Governo Chinês, como por exemplo, o embaixador sueco ou o ministro da Suíça”. O chefe da repartição dos assuntos da China e das Coreias do Foreign Office, R.H. Scott, informou Emílio Patrício, conselheiro da embaixada portuguesa em Londres, que o estatuto do Encarregado de Negócios britânico em Beijing era precário, pois não era reconhecido como tal pelas autoridades chinesas, e as relações entre a Inglaterra e a China Continental eram tensas devido à decisão do Privy Council, do passado dia 28 de Julho, de atribuir aos americanos a propriedade dos aviões da China National Aviation Corporation (CNAC) e da Central Air Transport Corporation (CATC) em Hong Kong (Clayton, 1997, pp. 112-113 e 242). Caso o governo português continuasse a insistir na execução da diligência, Hutchinson sugeria várias alternativas. Uma delas seria a “entrega de uma mensagem dirigida pelo Governo Português ao Governo de Pequim”. Outra seria o envio de um telegrama ao primeiro-ministro chinês, Zhou Enlai, cujo teor seria simultaneamente divulgado pela comunicação social. O responsável pela repartição da China e das Coreias do Foreign Office receava que uma intervenção britânica poderia prejudicar as negociações que, entretanto, tinham tido início em Macau.

Duas semanas, mais tarde Salazar rejeitou as sugestões britânicas. Na sua opinião, os governos da Suécia e da Suíça não se disponibilizariam a praticar uma “diligência a favor [do] Governo Português com receio [de] diminuir [a] posição [dos] seus negócios e [a] serem acusados [de] tomarem [o] partido [das] potências imperialistas”. Assim, recomendou ao embaixador Ulrich que desistisse da diligência junto do governo britânico, mas que lhe solicitasse o envio de instruções ao governo de Hong Kong para que este auxiliasse a “vencer [a] crise [dos] abastecimentos [a] Macau[,] quanto caiba nas suas forças”. Em simultâneo, instruiu o vice-cônsul de Portugal em Hong Kong a “esforçar-se”, “na medida do possível”, “junto [das] autoridades britânicas [no] sentido [de] não serem levantadas dificuldades [ao] comércio com Macau para aquele fim”.

Para saber mais:

http://www.ics.ul.pt/publicacoes/workingpapers/wp2005/wp2005_2.pdf

Fernando Correia de Oliveira
Jornalista e investigador


"500 Anos de Contactos Luso-Chineses" foi traduzido para chinês

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