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domingo, 5 de julho de 2015

Meditações - tempo que se vê, se escuta, se apalpa

O alpendre no canavial

A Romero Cabral da Costa

1

Do alpendre sobre o canavial
a vida se dá tão vazia
que o tempo dali pode ser
sentido: e na substância física.

Do alpendre, o tempo pode ser
sentido com os cinco sentidos
que ali depressa se acostumam
a tê-lo ao lado, como um bicho.

Ou porque no deserto, em volta,
da cana oceânica e sem ilhas,
ou poros, mais ávidos, se abram
e a alma se faça menos fibra,

ou porque ele próprio, o tempo,
por contraste com a vida rala,
se condene, se faça coisa,
que se vê, se escuta, se apalpa.

Como quer que seja: a verdade
é que o tempo ali pode mesmo
ser sentido, literalmente,
e até como sabor e cheiro;

cheiro de fumo, de fumaça,
de queimado, de coisa extinta,
como o de uma coivara longe,
extinta mas fumaçando ainda,

cheiro sempre de coisa extinta,
qual se o tempo fosse resíduo,
já nos tocasse já passado,
apenas com o rastro, já ido,

cheiro que às vezes mais se adensa
e é sabor leve, e sobre a língua,
de cheiro longe de fumaça
se faz sabor leve de cinza.

2

Do ermo que vai em derredor,
das várzeas de cana somente,
passarinhos buscando pouso
vem aterrissar neste alpendre.

Onde cada um com a receita
herdada dentro da família
se põe a demonstrar que o tempo
não soa sempre em água lisa.

O tempo então é mais que coisa:
e como capaz de linguagem,
e que ao passar vai expressando
as formas que tem de passar-se.

Patativas, papa-capins,
xexéus, concrises, curiós:
e então que se escuta o tempo
que passa e o diz, de viva voz.

Sabiás, canários-da-terra,
cantando de estalo e corrido:
uns gaguejando, qual telégrafo,
outros contínuos, como um trilho.

Sanhaçus, galos-de-campina,
ferreiros, com ferro no estilo:
todos vêm mostrar como passa,
em sintaxes de todo tipo,

o tempo que de nós se perde
sem que lhe armemos alçapão,
nem mesmo agora que parece
passar ao alcance da mão,

nem mesmo agora que chegou
tão perto, tão familiarmente,
certo atraído pela sesta
avarandada deste alpendre.

3

Se no alpendre é a hora do trem
que vai a estação do lugar,
o tempo para de correr:
começa a se depositar.

Então, dir-se-ia que o tempo
interrompe toda carreira,
entorpecido pela tensão
do mundo à espera e à espreita.

Então, dir-se-ia que o tempo
tem cãibras, ou fica crispado,
impedido de fluir livre
entre esperas, bolsas de vácuo.

Então, ele faz tão espesso
que é palpável sua substância;
tão espessa que ao apalpá-la
se tomaria por membrana;

tão espessa que até parece
que já nunca mais se dissolve;
tão espessa como se a espera
não fosse de trem mas de morte.

(Quando mais espessa, eis que o trem
com a explosão, a histeria,
bruta e de ferro, de cidade,
rompe a membrana distendida.

E só depois que ele reparte
com sua exaltação maníaca
é que os rotos fiapos duros
de tempo coalhado em bexiga

voltam a diluir-se no vazio
que vai diluindo, dia a dia,
ferros velhos de uma paisagem
posta à margem, fora da via.)

4

Deste alpendre num meio-dia
caindo no mundo de chapa,
é que se chega a ver que o tempo
sabe moderar a passada.

Tudo então se deixa tão lento,
só presente, tudo tão lasso,
que o próprio tempo se abandona
e perde a esquivança de pássaro.

E, se não chega a se deter,
gavião-peneira, imóvel no ar,
ele assume a camara lenta
que é da preguiça, do embuá,

e esse caminhar mais viscoso
de mel-de-engenho, água em remanso,
o gesto enorme da borracha,
borracha de pássaro manso.

Então o alpendre e a bagaceira
se transformam em laboratório:
pois vistas a esse tempo lento,
como se sob um microscópio,

as coisas se fazem mais amplas,
mais largas, ou mais largamente,
e deixam ver os interstícios
que a olho nu o olho não sente,

e que há na textura das coisas
por compactas que sejam elas;
laboratório: que parece
tornar as coisas mais abertas

para que entremos por entre,
através, do fundo, do centro;
laboratório: onde se aprende
a apreender as coisas por dentro.

João Cabral de Melo Neto - Serial (1959 - 1961); in: A educação pela pedra. Pista dada por Raul Malaquias Marques

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