Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Memória - C'est chic... ou pas?*

Um mistério para a sociologia: porque é que nunca houve relógios de bolso femininos? A relojoaria de bolso, conseguida a partir do momento em que a mola helicoidal é usada como corda (força motriz) dos mecanismos, atinge o seu apogeu em todo o século XIX, com o relógio de bolso a transformar-se por excelência no ícone de toda uma classe, a burguesia.

Assim como Ford proletarizou o automóvel, foram os esforços de Roskopf que permitiram reduzir o número de peças de um relógio de bolso e torná-lo acessível às classes trabalhadoras.


Mas as mulheres ficaram completamente de fora desse fenómeno de massificação, portabilidade e privatização do tempo. Seria uma questão de bolso? O relógio, pendurado numa corrente, era acolhido tradicionalmente no bolso do colete ou das calças, e a maneira de vestir lançada por mulheres intelectuais como George Sand não chegou para fazer a mulher vitoriana mudar de hábitos…


Claro que a questão não é apenas de bolsos, antes deriva do facto de o tempo privado de há um século estar nas mãos dos homens, fossem eles os pater família, os patrões ou os operários da fábrica onde era preciso chegar a horas.


As poucas mulheres que tinham então relógio usavam-no como objecto precioso, pendurado ao pescoço ou ao peito, mais como jóia do que como instrumento de medição do tempo. Desde sempre, desde os tempos do governo fundamentalista de Calvino em Genebra, no século XVIII, centro da relojoaria privada moderna, que o relógio feminino ganhou estatuto de adereço, de jóia.
Curiosamente, terá sido a mulher a usar pela primeira vez relógio de pulso, adaptando essas jóias que trazia ao peito ou ao pescoço, atando-lhe um fio e enrolando-o na mão. Ninguém sabe ao certo como a moda começou, pois que de moda se tratou, primeiro entre a nobreza, mas ela passou a ser seguida por muita senhora burguesa, em todo o século XIX.

O relógio de pulso para homem (segundo reza a lenda, uma encomenda particular do brasileiro Santos Dumont ao seu amigo Cartier, em Paris, para poder medir o tempo enquanto conduzia o avião) não teve grande sucesso no início e a maioria dos homens encarava-o como um objecto marcadamente efeminado. Essa resistência ao uso do relógio de pulso por parte dos homens, e a preferência pelo relógio de bolso, comentada na imprensa da época, só viria a ser abalada aquando da I Guerra Mundial, quando centenas de milhares de soldados norte-americanos desembarcaram na Europa e muitos deles, sobretudo oficiais, traziam no pulso um relógio, uma forma mais prática de ver (e sincronizar) o tempo em cenário de combate.


É por essa altura que se vulgariza, também em quadro de guerra, o relógio de peito nas senhoras – a Cruz Vermelha Internacional tinha sido fundada e o seu quadro maioritariamente feminino usava no uniforme um relógio, pendurado num dos lados do peito. Não por razões de moda, mas por questões de higiene. Ainda hoje, em todo o mundo, o relógio de enfermeira é uma tradição de fim de curso, e o seu uso, embora mais limitado, mantém-se pelas mesmas razões higiénicas (o contacto com os doentes e o material usado torna rapidamente um relógio de pulso num foco de infecções, como as gravatas dos médicos, tema recorrente no debate sobre o ambiente que se quer asséptico em certas situações).


O relógio de bolso resistiu até praticamente à II Guerra Mundial, mas a partir daí o relógio de pulso passa-o pela primeira vez em termos de números de venda mundiais, para nunca mais deixar de alastrar. E, hoje, o relógio de bolso é mais tema de coleccionador do que de outra coisa. No feminino, o relógio de pulso ganha cada vez mais importância pela sua utilidade intrínseca (as mulheres estavam nas fábricas em cada vez maior número desde o primeiro conflito mundial, sendo conquistadas também elas para o tempo industrial). Mas nunca deixaram de ser encarados como jóias ou adereços por casas joalheiras, que iam fabricando peças de eleição para uma clientela reduzida.


Até praticamente aos anos 70 do século passado, o relógio feminino era sobretudo um produto da forma, onde a marca não tinha grande importância (a excepção Rolex ganha força a partir dos anos 50, num pós-guerra americano de abundância e procura de estatuto de uma classe média emergente).


Com o aparecimento do relógio de quartzo, vindo barato e em quantidades avassaladoras de uma Ásia a despertar, homens e mulheres passam a encarar o relógio como um objecto menos sacralizado e o preço acessível faz com que todos tenham vários ao longo da vida.


Essa tendência aumenta no feminino quando as marcas puramente de moda descobrem a função adereço de um relógio, para além da tradicional função de jóia. A partir dos anos 70, aliado ao fenómeno do quartzo, surge a explosão da forma, dos materiais, da cor.


E, hoje, obrigadas pela concorrência feroz, as estratégias de comunicação de marcas relojoeiras tradicionais assemelham-se cada vez mais às das clássicas Casas de Moda, com produção a ser ditada pelos ritmos Primavera/Verão e Outono/Inverno, alinhando em cores e estilos que têm que fazer conjunto com os que são ditados pelos desfiles de Paris, Londres ou Nova York.


A maior parte das marcas de moda licencia internacionalmente o seu nome, que depois passa a ser usado em óculos, relógios, cosmética… Algumas vezes, quem produz sob licença alinha conceitos com a casa-mãe, mas a maior parte das vezes não o faz, limitando-se a explorar durante alguns anos um logótipo forte e a não lançar relógios que estejam “fora da temporada”.
O que é mais notável é que algumas Casas de Moda procurem legitimidade relojoeira pura, equipando os seus relógios com movimentos que vão comprar às melhores manufacturas suíças.


O caso mais recente é o da Chanel, que encomendou a adaptação de um calibre Audemars Piguet para equipar um modelo automático da sua linha J12, um dos maiores sucessos recentes no sector. Além disso, a Chanel tem participação na marca relojoeira Bell & Ross, explorando em conjunto novos materiais, como a cerâmica.

O que é mais normal, porém, é que grandes grupos internacionais, como o norte-americano Timex, procurem ganhar para o seu portfólio o maior número de marcas possíveis, trabalhando-as sob licença (neste caso, nomes como Versace ou Valentino).


Na eterna dicotomia entre forma e função, o mundo do relógio de pulso feminino é um universo em crescimento acelerado, e todas as marcas, sejam elas joalheiras, de moda, relojoeiras, de artigos de luxo, estão com as suas estratégias apontadas especialmente para ele. Porquê? Desde logo, porque a mulher adquiriu autonomia financeira (ainda recente nos mercados emergentes como a China, a Índia ou a Rússia); depois, porque o mercado masculino está saturado há mais anos; finalmente, porque a compra por impulso continua a ser comandada mais por ela que por ele…


Mas, afinal, de que estamos a falar hoje, quando falamos de um relógio de pulso?


“Os relógios são coisas engraçadas”, diz Maria Doulton, viajante insaciável e colaboradora do Financial Times . “Na verdade, não precisamos deles, o que, numa maneira perversa, os tornam ainda mais desejados. E quanto menos precisamos de uma coisa, como um relógio-jóia, sapatos de salto alto, malas de mão exasperadamente pequenas, e vestidos de noite absurdamente leves e vaporosos, mais atractivos eles se tornam”, dizia ela numa colaboração recente para a revista da Patek Philippe.


“Diamantes resplandecentes, generosas curvas douradas e cristais facetados transcendem a lógica e elevam o relógio a um estatuto para lá do seu objectivo original. Que ele também nos dê o tempo, bom, isso é um bónus, uma cedência ao prosaico, e uma justificação para aqueles que possam andar à procura dela”, afirma esta observadora atenta da moda internacional. “Um relógio-jóia é 99 por cento emoção e um por cento mostrador”.


Quando se fala em relógio-jóia está-se marcadamente com os pés assentes no luxo, não?
Uma das papisas da Moda foi Coco Chanel. Pois, segundo ela, “luxo não é o contrário de pobreza, mas antes de vulgaridade”.

Num mundo cada vez mais global e massificado, há uma certa angústia latente por parte de uma grade maioria de consumidores (as), que não sabem por vezes muito bem o que usar como forma de distinção de personalidade, estatuto, de fuga à vulgaridade. E os relógios fazem parte desses códigos de linguagem em constante mudança.

Luxo, estilo, chic? Estamos a falar da mesma coisa?


O que é chic? “É uma das poucas coisas que, recusando vergar-se e adular a moda, não é esmagado pelas rodas desse rolo compressor”, segundo um artigo do New York Times de 1877, muito citado, especialmente a partir do momento em que o jornal passou a ter para consulta on-line todo seu soberbo acervo editorial. “O chic está para a moda como a poesia para a prosa. O que é chic pode, num certo sentido, estar na moda, mas o que está na moda muitas vezes não é chic”, refere-se nessa feliz definição, que é afinal ainda mais actual do que quando foi escrita.
As coisas não estão na moda a menos que muita gente as façam , as usem, as comprem, até que, horror dos horrores, possam ser consideradas vulgares. Já o chic é inimitável, e o que é chic numa pessoa não resulta geralmente noutra.


“Se alguém lhe diz que isto ou aquilo não está na moda, mas você consegue responder que ‘não, mas é chic’, ganhou o seu dia”, decreta com humor o Financial Times. “A moda está sempre à cata do chic, mas o chic não se deixa apanhar”.


Uma das estrelas em ascensão em Hollywood, Anne Hathaway, definia há dias quem é chic: “alguém que consegue fazer muito com muito pouco”.


A tensão omnipresente nos media, com campanhas de publicidade multi-disciplinares, entre luxo, marca, estilo, moda, tem levado a um sincretismo onde não se sabe muito bem quem faz o quê, onde estão as fronteiras de cada coisa.


Segundo Voltaire, a moda “é uma deusa volúvel e bisonha, caprichosa nos seus gostos, louca nos seus adereços, que vai e vem, e nasce sempre de novo”.


Contra esta Fénix devoradora não há muito a fazer, se não alinhar com ela. Já chic, por outro lado, para a baronesa Blanche Staffe, uma das mais famosas socialites francesas do início do século XX, “é uma mistura de charme, distinção, pose, espontaneidade, simplicidade e originalidade, mas evitando decididamente a excentricidade”, pois “quem é chic é bafejado pelo tacto, bom senso e discernimento… e por um sentimento de elegância e harmonia”, escrevia ela em 1907 num guia para raparigas ambiciosas de estatuto.


Nos anos 60 do século passado, quando socialmente as coisas mudaram verdadeiramente, Geneviève Antoine Dariaux, autora de um incontornável Guia de Elegância, dizia: “A quintessência da sofisticação casual, o chic é um tudo menos estudado que a elegância, e um pouco mais que o racional. Trata-se de uma qualidade inata, e aqueles que a possuem são geralmente inconscientes desse dom”. E dá exemplos: A família Kennedy era chic; a família Truman não. Marlene Dietrich e Greta Garbo eram chic; apesar de toda a sua beleza, jóias e sumptuosos vestidos, Rita Hayworth e Elizabeth Taylor não eram”.

Em resumo: perante o dilema da escolha de um relógio, está à procura do quê? De um medidor puro de tempo? De um símbolo do seu sucesso material? De um simples e descartável adereço de moda? De um valor perene que vai transmitir à geração seguinte, depois de eventualmente o ter herdado da geração anterior? De tudo um pouco? Seja o que for, está na hora de decidir. Eis algumas sugestões, para todos os gostos, bolsas e ocasiões. C’est chic? On sais jamais…

*Publicado na Máxima, no final de 2008

Sem comentários: