Decorre de 26 de Maio a 25 de Julho o III Curso sobre História da Maçonaria, promovido pelo Grupo de Investigação Memória e Historiografia do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Maçonaria: Símbolos e Ritos é o tema desta edição.
Estação Cronográfica investigou o Tempo maçónico quando escreveu a História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003) * e baseou muito do capítulo que dedicou ao tratamento do tempo pelos pedreiros livres a um trabalho publicado um ano antes por António Melo no suplemento que então dirigíamos no jornal Público, o Cronos - Pilares do Tempo.
Como a questão maçónica está na ordem do dia, aqui deixamos esse capítulo de História do Tempo em Portugal, onde se fala de Pisani Burnay, um dos grandes coleccionadores de memorabilia maçónica no século XX português e de relógios maçónicos que, após a sua morte, a família tem mantido expostos na Quinta da Regaleira, ela própria um sítio que se presta a vários graus de leitura iniciática e ou esotérica.
As explicações sobre o Tempo maçónico foram dadas por José Manuel Anes, à altura Grão-Mestre da Grande Loja Regular de Portugal.
O programa do curso
Pisani Burnay
[...] Falando de tempos iniciáticos, não podemos deixar de referir uma pequena mas especial colecção, dedicada à relojoaria de temática maçónica e de explicar um pouco os conceitos do tempo maçónico.
José Eduardo Pisani Burnay (1924-1998), foi um emérito coleccionador de objectos rituais maçónicos. Iniciou essa sua actividade de coleccionador ainda antes de ser iniciado, em 1957. Até ao fim da vida, procurou conservá-los e quem teve o privilégio de por ele ser guiado em visita à sua casa, na Rua da Junqueira, em Lisboa, diz que ali o tempo se escoava sem que alguém desse por ele.
Pisani Burnay era uma figura de indiscutível relevo nos meios maçónicos, onde atingiu o título de Soberano Oficial Comendador do Rito Escocês Antigo e Aceite, a esse título presidindo ao Supremo Conselho dos Altos Graus.
Iniciou-se na maçonaria no Grande Oriente Lusitano (GOL), onde foi grande secretário-geral dos grão-mestres Dias Amado e Álvaro Athayde.
Porém, na década de 80 afastou-se desta obediência de tendência agnóstica e acompanhou a formação da Grande Loja Regular de Portugal, deísta, o que não o impediu de conservar antigas e fortes amizades no GOL, apesar dos antagonismos que naturalmente acompanham as dissidências.
José Eduardo era bisneto de Ramalho Ortigão e filho do pintor Luís Ortigão Burnay e as suas tendências artísticas revelaram-se sobretudo no teatro. Seguiu o curso do Conservatório na década de 40 e trabalhou nas companhias de Alves da Cunha e Ribeirinho (Francisco Ribeiro).
Retirou-se cedo para o seu espaço de reflexão iniciática e, através do tempo, reuniu uma colecção de objectos ligados aos ritos maçónicos de reputação europeia.
Por sua vontade, parte dela encontra-se exposta ao público no Palácio da Regaleira, em Sintra, incluindo a de relógios. Dois exemplares de mesa, e vários de bolso, incluindo um de Cavaleiro Rosa Cruz, todos da segunda metade do século XIX, estão entre as peças expostas. Um calendário maçónico francês, semelhante aos que todos os anos as obediências maçónicas portuguesas publicam para os seus “irmãos” também faz parte desse espólio patente ao público.
Em cima: quatro exemplares da colecção Pisani Burnay, patentes na Quinta da Regaleira, em Sintra
Calendário maçónico para o ano civil de 1982 e maçónico de 5982. Segundo o Rito Francês, o ano maçónico começa a 1 de Março
As reuniões maçónicas principiam simbolicamente ao meio-dia e encerram os trabalhos à meia-noite. Chegado a este ponto, o venerável que preside à loja dirige-se ao vigilante e interpela-o com a frase ritual: “Que horas são?” Este puxa do relógio e responde-lhe, dentro da mesma cerimónia, com a indicação da hora profana.
É o momento de regresso às trevas, reentrar na noite das mentes não iluminadas pelo espírito insuflado do Grande Arquitecto — o tempo das coisas térreas. Porém, a hora que fica assente na acta da reunião é a do tempo humano, não a da meia-noite simbólica.
Em conclusão, o maçon tem de conhecer o seu tempo e saber às quantas anda, tanto no plano sagrado quanto no mundo profano. Daí, um certo culto pelas máquinas perfeitas que pontuam o tempo, na exacta medida em que também nos trabalhos da loja maçónica a sua abertura é assinalada pelos golpes de malhete, que o venerável empunha e com o qual, a seu tempo, dará igualmente por encerrada a reunião.
A passagem do tempo ao meio-dia maçónico, explica o grão-mestre da Grande Loja Regular e Legal de Portugal, José Manuel Anes, é a afirmação do sinal sobre o efémero, a superioridade do que é eterno sobre o que é fugaz. “Os trabalhos do meio-dia decorrem no templo [maçónico] e são por isso os de maior iluminação. Estão os irmãos reunidos e é assim que eles poderão aceder aos sinais. Só aqui a filosofia sagrada da maçonaria pode ser entendida.” Para o grão-mestre, “a leitura de obras especializadas pode levar à compreensão intelectual da simbologia maçónica, mas só a presença no templo permite o conhecimento [dessa simbologia]”.
Estabelecida esta distinção entre iniciado e profano, pode tentar discorrer-se sobre o conceito de tempo na maçonaria regular. A primeira, já se disse, é a da sua definição simbólica, repartida entre o meio-dia e a meia-noite. O número 12, dentro do qual se inclui este tempo, tem o seu significado. Representa a divisão perfeita do círculo em 12 partes de 30 graus cada; é o desenvolvimento do hexágono a partir da sua forma original de dois triângulos equiláteros; é o caminho do quadrado para o círculo — a unidade da matéria e do espírito.
Doze são os raios solares que irradiam da “aditya” hindu, doze são os apóstolos de Cristo, doze os cavaleiros da Távola Redonda e doze os membros do conselho circular do Dalai Lama. Poderia estender-se a analogia à simbologia chinesa do “yin” e do “yang”, mas aqui entendida como o hexagrama que transporta mal em si o equilíbrio feminino e masculino, sendo por isso fonte de contestação e infortúnio.
Outra reflexão tem que ver com a morte, por definição atributo do que é humano, ou seja, um corte no tempo sagrado, que é eterno, sem medida. O do Outro Mundo, que no universo gaélico irlandês se denomina de “sidh” e a que alguns humanos de eleição acedem, mas unicamente no dia 1 de Novembro. Nesse momento, quando no calendário irlandês antigo se mudava de um para outro ano, o tempo podia suspender-se. Graças a isso, aquele que fora ao “sidh” não ficava atingido pela intemporalidade quando regressava a Este Mundo.
Desta temporalidade humana se constrói igualmente o ritual de passagem de Hiram, o arquitecto do templo de Salomão. Depois de erguida a magnífica obra e de ter sido agraciado pelo rei bíblico, Hiram foi morto por três dos seus companheiros que tentaram, em vão, arrancar-lhe os segredos da construção. Golpeado de morte na garganta, no coração e na cabeça, nenhum segredo ele revelou, porque sabia que eles não estavam preparados para o receber. Envergonhados pela sua façanha, os invejosos companheiros enterraram-no, a ele, num lugar vazio e enterraram-se eles na noite para escapar ao castigo. Pensavam o saber de Hiram perdido, mas assim não aconteceu. Através da acácia que brotou do seu túmulo, Hiram ressuscitou e pôde transmitir o conhecimento aos companheiros que souberam esperar pelo seu “tempo” de iniciação.
“O objectivo de todas as correntes iniciáticas é conseguir romper com a limitação material do tempo e do espaço, à qual está confinado o ser humano”, explica José Anes. A maçonaria persegue esse intento e entende que é através da espiritualidade que se superam as contingências humanas. O “aprisionamento no tempo” é, em última análise, o efeito da “queda” do espírito na matéria — num corpo. Para o transcender, o espírito deve seguir o caminho que o leva das trevas à luz. Findo este caminho iniciático, está em condições de “passar ao Oriente Eterno”, onde poderá ressuscitar para a eternidade, à semelhança de Hiram, num lugar de luz. Fecha-se assim um círculo, comparável ao que o Sol realiza diariamente desde tempos imemoráveis.
O que existe para lá desta memória dos homens é o momento inicial, esse ponto de perfeição que é o centro do círculo — melhor dito, da esfera. Ali se concentram todas as propriedades que dele irradiam. Ele é sede do tempo e do espaço; para ele, todas as horas são idênticas, assim como nada diferencia o espaço que separa o mícron do ano/luz. São tudo extensões do mesmo sopro ou momentos da sua expansão.
O que aconteceria se desse centro deixassem de irradiar os seus feixes? A resposta lógica é a impossibilidade de isso acontecer, porque o centro é sempre um centro de outro centro, e nesta repetição concêntrica se esvai o tempo e se conta o espaço, que tanto pode ser o que contém um grão de areia como o que se expande pelo universo — infinito, em ambos os casos.
O calendário maçónico baseia-se no calendário luni-solar hebraico. O ano principia no equinócio da Primavera (21 de Março) ou, segundo outras obediências (que adoptam o calendário de 12 meses solares), em 1 de Março, e abrange os doze ou treze meses lunares seguintes. Para a contagem dos anos são também seguidos diversos métodos consoante o rito. Assim, há os que acrescentam 4 mil anos ao ano em curso ou era vulgar, partindo do pressuposto de que a criação bíblica ocorreu no ano 4004 a.C (anno lucis). Outros remontam o seu calendário ao ano em que o segundo Templo foi principiado por Zorobabel (anno inventionis), acrescentando para o efeito 530 anos à era comum.
Quanto à idade do maçon, conta-se desde a sua iniciação na Maçonaria. Contudo, a sua idade simbólica é-lhe atribuída em função do grau e de acordo com o ritual do grau. Um Aprendiz tem 3 anos; um Companheiro 5; um Mestre 7. Um Mestre Secreto, um Mestre Perfeito ou um Escocês Trinitário têm uma idade maçónica de 81 anos. O Cavaleiro Kadosh (30º grau) tem um século e mais.
Em cima, quatro exemplos de iconografia maçónica, Cemitério dos Prazeres, Lisboa
* Para saber mais, e para além da História do Tempo em Portugal, poderá consultar outras obras dedicadas ao Tempo português, aqui.
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