Apoiado por fundos da União Europeia, envolvendo o poder municipal e instituições como o Laboratório Nacional de Engenharia Civil ou o Instituto Superior Técnico de Lisboa, o projecto dirigido por Jorge Custódio, especialista em Arqueologia Industrial, culminou em 1999, quando a recuperação da Torre das Cabaças, ou do Relógio, se completou e, ao mesmo tempo, se promoveu uma exposição e se editou um livro sobre o assunto.
Editado pela Câmara, Torre das Cabaças, Núcleo Museológico do Tempo, é já hoje uma obra incontornável na história da relojoaria em Portugal, especialmente a sua vertente férrea ou grossa (em contraste com a chamada relojoaria fina, que se ocupa de relógios de menor porte).
Com artigos de arquitectos, historiadores, mestres relojoeiros, a obra apresenta não apenas o caso de Santarém como o contextualiza face ao país e ao mundo e avança algumas interpretações sobre o património relojoeiro monumental português, tão abandonado e destruído que está.
Os estudos medievais e renascentistas de Maria Ângela Beirante, citados na obra, permitem recuar a existência da Torre do Relógio de Santarém (ou do Alpram, quando ainda pertencia à Coroa) a pelo menos 1462, em pleno reinado de D. Afonso V. Mas há quem arrisque que ela podia estar erguida, com essa função de medição e anunciação do tempo à comunidade desde o início da dinastia de Avis, embora não haja documentação que sustente a cem por cento essa tese.
Um documento do tombo da Igreja da Alcáçova regista precisamente em 1462 a nova toponímia local – “O Rellogio freguesia de Marvila”. Por volta de 1535 a rua mais próxima já se chamava “do Relógio”. “Durante os reinados de D. Afonso V e de D. João II, os relógios mecânicos de pesos, rodas de ferro e escape tornam-se moda em Portugal”, refere Jorge Custódio num dos artigos que escreveu para a obra citada.
“O relógio de Santarém foi uma decisão dos oficiais da Câmara, pois existem documentos de treslado, confirmando que na Torre de Alpram, pertencente ao Rei, se instalou o Relógio. O Rei concedeu-o ao senado local para seu uso e gestão, ‘enquanto o tiverem concertado e tanger’”, explica Jorge Custódio. Também lhe era garantida a posse dos prédios de habitação do relojoeiro.
Maria Ângela Beirante refere-se a um José Fernandes do Relógio, vivendo na Vila, em 1496, mas ninguém garante que fosse ele quem estava encarregado de cuidar do Relógio em análise.
No assento do livro do Tombo do Concelho de 1586 estavam declarados a casa do relojoeiro, sobrada e outros bens anexos, sendo o município que pagava ao relojoeiro, um tal Diogo Nunez, mandado para Santarém por D. Sebastião em 1576 e que também era armeiro e serralheiro (aliança de misteres muito habitual na época, dada a mestria em mecanismos e fundição de metais que era necessária para os três). O seu ordenado em 1585 era de 2.400 réis, dois moios de trigo, quatro alqueires de azeite e seis alqueires para untar o engenho do relógio. Tinha ainda que consertar avarias e acertá-lo, bem como tanger o sino.
Do mecanismo primitivo nada se sabe quanto ao autor, mas entre 1586 e 1604, em período dos Filipes, é esse Diogo Nunez quem faz uma intervenção de fundo no conjunto, fabricando um novo, recebendo por isso 75.000 réis. Recebeu ainda 11.000 réis por ter empregue um quintal de ferro extra (terá fundido o antigo?). A colocação foi paga com outros 6.000 réis.
“A descoberta do pêndulo nos meados do século XVIII, enquanto princípio regulador do movimento, talvez contribuísse para a mudança da máquina, entre os finais do século XVII e os meados do século XIX”, diz Jorge Custódio. “Sobre essa presumível máquina setecentista não dispomos de qualquer informação”.
As actas da Câmara, de Agosto a Dezembro de 1876, dão-nos indicações sobre a máquina que veio a substituir essa e que perdurou até hoje. Trata-se de um mecanismo francês, feito industrialmente em Morez du Jura. A sua estrutura e componentes são em ferro fundido, aço, bronze e latão, com pêndulo e mostrador, com numeração das horas em romano, “dando horas e meias horas, no mesmo sino, e repetindo as horas três minutos depois”.
Por 200 mil réis, o negócio foi celebrado com Augusto Cezar dos Santos, estabelecido com oficina e loja de relojoeiro no Largo do Pelourinho, em Lisboa. Com corda para oito dias no movimento do pêndulo e para trinta e seis horas no movimento das horas, o relógio e seu assentamento ficaram protegidos por vitrine de madeira envidraçada. O custo total da operação foi de 6.050.000 réis, pagos em prestações.
Foi sobre este conjunto mecânico que ocorreu a intervenção feita no final da década de 90 do século XX. “A Torre do Relógio de Santarém integra-se numa das primeira gerações de relógios mecânicos construídos em Portugal”, garante Jorge Custódio. Tendo resistido aos terramotos de 1531, 1755 e 1908, apruma-se hoje como dos poucos monumentos da relojoaria do ferro totalmente recuperados em Portugal.
Dez anos volvidos sobre a recuperação da torre, é pena que o projecto de ali se instalar um “Núcleo Museológico do Tempo”, uma exposição permanente de peças de relojoaria, entretanto adquiridas pela autarquia, tenha ficado sem concretização.
Mas a visita ao conjunto arquitectónico vale sempre a pena. A nossa pista da semana é pois Santarém e a sua Torre das Cabaças.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
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