Mário Costa, em Duas Curiosidades Lisboetas..., de 1956, falava ainda assim de uma personagem que morrera já há 36 anos mas que continuava a povoar o imaginário lusitano e, especialmente, alfacinha: “... o Dr. Carvalho Monteiro, o obcecado coleccionador de instrumentos medidores do tempo”.
António Augusto de Carvalho Monteiro, o “Monteiro dos Milhões”, nasceu no Rio de Janeiro em 1850. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e foi colega de curso de Guerra Junqueiro. Senhor de uma fortuna que ia para além da imaginação popular, os lisboetas passaram a ver nele um Cresus ou um Midas dos tempos modernos, baptizando-o de “Monteiro dos Milhões”. O dinheiro tinha por origem o monopólio do comércio dos cafés e pedras preciosas no Brasil.
Profundamente culto, Carvalho Monteiro era também um coleccionador persistente. Em Lisboa, no Palácio Quintela, adquirido pelo pai, organizou um autêntico museu, sendo famosas as suas colecções de borboletas, conchas, instrumentos musicais, mobílias, pratas e, obviamente, relógios.
Filantropo, foi durante muitos anos presidente da Sociedade
do Jardim Zoológico. Dominando o latim sem dificuldades, tinha uma Camoniana
extraordinária. Adquiriu em Sintra a Quinta da Regaleira, encarregando o
arquitecto italiano Luigi Manini de aí construir um palácio de concepção
romântica e iniciático-maçónica, a Mansão Filosofal que várias escolas
iniciáticas referem.
Com a sua morte, fragmentou-se a fortuna, e as suas colecções e alguns dos seus palácios foram, mais tarde alienados em condições deploráveis. De salientar que a sua biblioteca, uma das melhores do país, foi comprada em 1926 por Maurice Ettinghausen e enviada para Londres, com o intuito de enriquecer a colecção de livros portugueses antigos de D. Manuel II, então a viver ali o exílio. Mais tarde, foi adquirida por Maggs Brothers e vendida à Biblioteca do Congresso, em Washington, onde ainda hoje se encontra.
Quis o destino que às mãos de Carvalho Monteiro viesse parar um relógio particularmente complicado. A peça havia sido construída pela firma de relógios de precisão Leroy (ou Le Roy, ou ainda LeRoy), de Besançon, para um cliente moscovita de nome Nicolas Nostitz. O relógio fora vivamente apreciado na exposição parisiense de 1878 e posto à venda pouco tempo depois da morte do conde russo.
Carvalho Monteiro comprou o referido relógio em 1896 e, depois de o estudar minuciosamente, dirigiu à fábrica de Besançon uma carta na qual dava conta da sua insatisfação. Achava Carvalho Monteiro que o relógio do conde russo ficava muito aquém do que a ciência tinha para oferecer ao homem do final do século XIX, ao homem novo que viria com o século XX. Neste contexto, propunha-se a mandar construir um novo relógio que condensasse em si a evolução técnica e mecânica que até aí tinha sido conseguida nos mais variados níveis.
“Tal foi a complexidade da encomenda que a fábrica Leroy levou meses de reflexão, trocando correspondência assídua com Carvalho Monteiro, até iniciar a construção do novo relógio em Janeiro de 1897”, dizem Denise Pereira, Eduardo Geada e Luís Martins na obra em CD-ROM Quinta da Regaleira (edição de 2000).
A tarefa de construção do novo movimento coube ao relojoeiro Charles Piquet. Ao longo de quatro anos de trabalho necessários à execução do referido relógio, Carvalho Monteiro foi enviando instruções minuciosas sobre várias fases de construção do mecanismo. Os trabalhos foram intensificados para que o relógio pudesse estar patente na Exposição Universal de Paris de 1900, onde deixou o público e o júri atónitos pela exactidão funcional da peça e pela perfeição da construção. Ganhou o Grande Prémio do certame.
Além das funções tradicionais de dar horas, minutos e
segundos, Leroy assumiu o compromisso de incluir na mesma peça, os dias da
semana, o dia do mês, os meses e os anos, incluindo um calendário perpétuo.
O relógio incluiria ainda as informações relativas às estações do ano, solstícios, equinócios, equação do tempo e fases da Lua. Tinha também o cronógrafo com retorno a zeros, contador de minutos e horas e um indicador de reserva de marcha. Os toques, às horas, aos quartos e aos minutos, eram reguláveis em som forte ou médio, ou reduzidos ao silêncio, tocando como um carrilhão.
Um dos mecanismos mais complexos e interessantes prendia-se com o sistema astronómico, que informava sobre o estado do céu no hemisfério boreal no momento do dia indicado pela data, com a representação do céu e do horizonte de Lisboa ilustrado com 560 estrelas. O céu de Paris continha 236 estrelas. Na zona do hemisfério austral podia ver-se o céu e o horizonte da cidade do Rio de Janeiro, com 611 estrelas.
Um outro dispositivo mostrava a hora exacta em 125 cidades capitais do mundo e a hora do nascer e do pôr-do-sol em Lisboa. Completavam este extraordinário sistema um termómetro metálico, um higrómetro de cabelo, um barómetro, um altímetro que contava até 5000 metros, um mecanismo que permitia acertar o relógio sem o abrir, e ainda uma bússola. Tudo isto no interior de uma caixa em ouro, com 71 mm de diâmetro e 228 gramas de peso.
As 24 diferentes complicações relojoeiras, mais os outros utensílios, faziam deste “Leroy 01” o mais complicado do seu tempo. Clara Meneres, que se refere à peça na sua tese de doutoramento, L’Horloge et le Concept de Temps en Occident (1982, ainda inédita), classifica-o de “último dinossauro”, coroando toda uma dinastia de objectos notáveis, “o sinal faustoso de uma decadência”.
Até que o regresso ao gosto pelo mecânico veio reeditar os esforços, nos anos 80 e 90 do século XX, para a realização de relógios ainda mais complicados, como o apresentado em 1989 pela manufactura Patek Philippe (o célebre Caliber 89, que comemora os 150 anos da casa), que só então destronaria o relógio de Carvalho Monteiro como “o mais complicado do mundo”.
Quando, finalmente, em 1901, se fez a última afinação ao relógio encomendado, Louis Leroy telegrafou a Carvalho Monteiro, comunicando-lhe que se tinha conseguido terminar com êxito a tarefa.
O “Monteiro dos Milhões” respondeu na volta do correio, pedindo muito prosaicamente que o “Leroy 01” lhe fosse remetido por via postal. Leroy terá ficado perplexo e apavorado. Não podia aceitar que um relógio de ouro, peça única no mundo e pela qual o cliente já pagara a avultada soma de 20 mil francos, que custara ao mestre relojoeiro da empresa quatro anos de trabalho, fosse simplesmente expedido por correio para Lisboa.
Quando, em desespero de causa, se preparava para viajar até Portugal, sem saber como iria contornar a severa vigilância da alfândega, surge inesperadamente a solução. Encontrava-se de passagem por Paris o rei D. Carlos. Leroy solicita de imediato uma audiência ao monarca, também ele seu cliente, e mostra-lhe o famoso relógio, dando conta das suas preocupações.
Maravilhado com a peça, o rei aceitou ser portador do relógio e atravessou a fronteira sem que suspeitasse de tal “contrabando”.
Estava-se em Dezembro de 1904. D. Carlos chama ao Palácio das Necessidades, onde residia, o capitalista do momento – António Augusto de Carvalho Monteiro. E faz-lhe a entrega do Leroy 01.
Já falámos do interior do relógio, da arte relojoeira propriamente dita. Mas a caixa, também ela obedecendo aos critérios de Carvalho Monteiro, é em si uma outra obra de arte. Para o projecto e desenho da caixa, o capitalista recorreu uma vez mais a Luigi Manini, o homem que lhe fizera o esquiço da Regaleira. O ouro foi esculpido e cinzelado pelo artista francês V. Burdin, especializado na mitologia clássica. Manini conseguiu resumir na pequena superfície os anseios que dominaram o homem no final do século XIX.
A descrição iconográfica da decoração contida no tampo da
caixa pode dividir-se em duas intenções principais: uma homenagem a quem
encomendou a obra, visível no monograma AM, no centro; e, obviamente, o Tempo.
Na orla que limita o círculo figuram a esfera armilar, as quinas de Portugal, a
cruz de Cristo e a cruz de Santiago, envoltas por cordas e nós. Na face
posterior, no mostrador, a ciência humana que controla o “tempo” e o “espaço”
opõe-se ao círculo zodiacal do destino e da sorte descritos pelos astros.
O motivo central da iconografia do “Leroy 01” são as Moiras, três divindades da antiguidade grega. Tecem o fio da vida, presidem ao destino do homem e regulam a vida de todos os seres. A primeira deusa, Cloto, simboliza o momento presente e o nascimento, segurando nas mãos uma roca de onde brota o fio da vida. Repousando a cabeça sobre o universo luso, figura a deusa Àtropos, que ostenta uma tesoura e ameaça cortar a vida futura. Impiedosa, desfia o tempo e a vida, assinalando o carácter irredutível do destino. Àtropos assinala o perigo que paira sobre o futuro da pátria Lusitana, suspensa por um fio e ao sabor da sorte. Laquésis, a última deusa, enrola a vida passada no fuso, fazendo-o girar com o movimento uniforme do eterno retorno. “Talvez uma alusão ao desejo de regresso a tempos de glória nacional”, dizem Denise Pereira, Eduardo Geada e Luís Martins no já citado CD-ROM sobre a Quinta da Regaleira.
O ideário da eternidade é reforçado pela presença da ampulheta de areia, símbolo da queda eterna do tempo. No fim da linha da vida que nasce da roca de Cloto está, naturalmente, a morte, representada pelo deus Saturno na sua iconografia tradicional, acompanhado da foice ou gadanha. O facto de Saturno nos aparecer na forma de uma figura alada merece a estes três estudiosos mais alguns comentários: “O planeta Saturno, cuja luz fraca e ténue foi desde sempre evocadora de tristezas e de provações da vida, representa a existência humana desde a ruptura do cordão umbilical até ao envelhecimento que conduz à morte”, dizem. “As asas são símbolo da missão que Saturno assumiu de libertar o homem da sua prisão terrestre e, neste contexto, a morte encerra em si mesma a promessa da ressurreição das almas. No centro das quatro figuras estão as portas do além e da plenitude do tempo eterno”.
Sabendo-se das ligações de Carvalho Monteiro ao simbolismo e às escolas iniciáticas, estaremos perante um relógio, ele também, iniciático?
O jornal O Século de 25 de Outubro de 1920 traz na primeira página a notícia da morte em Sintra do “abastado capitalista e proprietário”, acompanhando o artigo com uma fotografia de Carvalho Monteiro, de longas barbas brancas e chapéu alto.
“O sr. Carvalho Monteiro era extremamente económico, no que não dissesse respeito às suas colecções ou à protecção que dispensava à pobreza envergonhada e aos artistas que a ele recorriam”, diz o jornal. “Apesar de, ostensivamente, não se ter metido em política, foi preso, após a primeira incursão monárquica, sendo-lhe apreendidas as armas e tendo constituído a sua prisão um verdadeiro acontecimento”.
Dois dias depois, o mesmo jornal afiançava “não ter o menor fundamento o boato de que o falecido legara algumas das suas colecções à Universidade de Lisboa”, dado que Carvalho Monteiro “não deixou testamento nem fez sobre o assunto qualquer determinação”. O “Monteiro dos Milhões” deve ter sido um bom cliente da casa Leitão & Irmão, já que O Século destaca, a 28 de Outubro, quando faz a descrição do serviço fúnebre, ocorrido no dia anterior, duas grandes coroas de crisântemos e malmequeres brancos, uma da família e outra dos “antigos joalheiros da Coroa”.
Jazigo da família Carvalho Monteiro, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa (foto Fernando Correia de Oliveira)
Só 33 anos após a morte de Carvalho Monteiro os seus herdeiros demonstraram interesse em vender o “Leroy 01”. A peça foi primeiramente adquirida por um joalheiro português, que o levou a uma exposição a Besançon. Foi assim que as forças vivas da cidade, de grande tradição relojoeira, ficaram a saber da possibilidade de puderem vir a recuperar uma peça que tinha sido feita por um dos seus mestres.
A cidade lançou uma subscrição pública nacional para recolher os dois milhões de francos pedidos pelo ainda então “relógio mais complicado do mundo”. A 26 de Março de 1955, o relógio que pertencera a Carvalho Monteiro passa a figurar no Museu do Tempo de Besançon, onde ainda hoje se encontra.
A peça voltaria por breves dias a Lisboa. Em Novembro de 1967 ocorre no Hotel Ritz uma “Jornada do Relógio Francês”. Por essa ocasião, foi exposto “o relógio mais complicado do mundo”, o L1, como também é conhecido.
O Le Roy que pertenceu a Carvalho Monteiro é a peça central do Museu do Tempo de Besançon
A Paródia, 30 de Abril de 1903. Onde se anuncia a próxima
linha telefónica Lisboa-Porto. E onde se protesta pelo preço (nove tostões cada
período de três minutos) e se conclui que o telefone é para ricos - como
Carvalho Monteiro.
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